Nos último anos, o período de inverno no Brasil é marcado pelos incêndios em áreas florestais e de plantio agrícola, sobretudo nas regiões do Sudeste, Centro-Oeste e Norte. Neste ano de 2024, mais de 15,61% da área do Pantanal já foram queimadas, segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ) perdendo aproximadamente 2.356.800 hectares.
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a Amazônia pelo segundo ano consecutivo de seca, enfrenta um aumento dos focos em relação a 2023, apesar da queda do desmatamento. Já o estado de São Paulo bateu o recorde de focos de calor medidos em quase 30 anos, registrando a maior quantidade de focos de incêndio de toda a série histórica do país iniciada em 1988.
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Para a pesquisadora Yamila Goldfarb, integrante da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) o aumento dos focos de queimadas não pode ser creditado somente às mudanças climáticas. “É evidente que este período de estiagem histórico que vivemos, diretamente relacionado às mudanças climáticas, explica a velocidade e a dimensão do espalhamento dos focos. Mas, não nos enganemos! O que explica o fogo não é unicamente a emergência climática”, afirma no artigo “Fogo, grilagem e violência: como o agronegócio avança botando lenha no crime”, publicado em 12/09/24 no site Fundação Rosa Luxemburgo.
Quem ganha com esses incêndios?
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Goldfarb no artigo diz que os incêndios em algumas regiões é uma pratica tradicional em algumas áreas como o cerrado com finalidade de manejo para plantio, mas o aumento da incidência das queimadas no país mostra que a pratica está sendo utilizada para outros fins.
“A presença do fogo como instrumento de manejo da agricultura em alguns biomas, em particular no cerrado, já é conhecida há tempos. Também a própria ocorrência de fogo como processo natural, a partir de descargas elétricas (raios) nos períodos de maior estiagem. No entanto, não é desse tipo de queimada que se tratam os números. Do que se trata então? Por que a maior parte dos focos de incêndio é comprovadamente criminosa? Quem ganha com isso?”, indaga no artigo.
O fato é que esses incêndios não destroem somente os biomas, aumentando a emissão de gases do efeito estufa e afetando a saúde das pessoas, mas, sobretudo, visam provocar o deslocamento de populações, povos originários e quilombolas que habitam áreas protegidas. É neste momento em que o agronegócio aproveita para expandir suas fronteiras agrícolas, avançando por novas terras férteis para seguir o seu projeto de lucro incessante, financiado pelo Estado brasileiro, colocando literalmente fogo no Brasil para atingir seus objetivos.
Goldfarb diz que com a reforma do Código Florestal, foi criada a possibilidade da existência de áreas de reserva legal não contínuas em uma propriedade. “Então, por exemplo, você desmata uma área de reserva legal ou Área de Proteção Permanente (APP), de uma propriedade propiciando, de alguma forma, uma compensação ambiental, tendo uma área de proteção preservada numa outra propriedade, o que é um absurdo. É aberta uma área de cultivo ou para colocar gado nas áreas de preservação permanente. Depois se regulariza isso, grilando uma área preservada em outro lugar. Por isso tem tanto conflito com terra indígena, com território quilombola, com as terras devolutas. Porque onde tem área de comunidades tradicionais, área preservada, que são visadas por esses proprietários que colocam fogo e desmatam tudo para se apropriarem dessas áreas e depois regularizarem a situação ambiental.” - explica a integrante da ABRA.
Políticas públicas regularizam o ilegal
Yamila explica que o processo de avanço por terras funciona da forma em que o crime de incêndio acaba servindo na pratica de roubo de terras em áreas de preservação. Incrivelmente, de forma surreal, a pratica de incêndio quando constada é feita a autuação, servindo como prova para a regularização da grilagem.
“Então se bota fogo para avançar a fronteira, ou em uma outra área, para poder se apropriar dela ilegalmente. A multa recebida acaba se tornando um comprovante legal para futura regularização fundiária, pois indica que o incêndio foi promovido a partir de uma área particular. Assim, o incêndio acaba sendo uma “arma” para a grilagem de terras”, denuncia.
A pesquisadora cita a plataforma “Agro é fogo” que disponibiliza um dossiê com levantamentos sobre a situação dos desmatamentos e deslocamentos provocados pelo agronegócio no Brasil.
A partir de um material produzido pelos pesquisadores Diana Aguiar e Mauricio Torres foi constatado que “a massiva incorporação ilegal de terras públicas assume algumas formas jurídicas comuns, como, por exemplo, a falsificação na origem do título ou no tamanho da área do imóvel. De forma grosseira, é comum que mesmo documentos que não valem como comprovação de propriedade (como certidão ou título de posse ou mesmo certidão de abertura de processo demandando alienação da área) sejam utilizados como título original para registro da venda do imóvel” - descrevem.
Aguiar e Torres destacam que além disso estão sendo utilizadas novas formas como o uso do Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento de gestão ambiental previsto no Novo Código Florestal (2012), como se fosse uma comprovação de posse, apesar de isso estar expressamente vedado na lei.
Neste cadastro, o suposto proprietário ou possuidor declara a extensão da área, a localização da reserva legal obrigatória etc. para fins de regularização ambiental do imóvel. Mas, em razão de seu caráter autodeclaratório e da escassez de análise e validação das declarações por parte do Estado, o cadastro tem sido, em realidade, um facilitador da grilagem, em especial de uma nova modalidade, muitas vezes chamada de “grilagem verde”. Quando fazendeiros e empresários declaram que terras públicas e territórios tradicionais são de sua propriedade, buscando consolidar fraudes cartoriais.
Neste aspecto a atuação da bancada ruralista no Congresso Nacional é fundamental para legitimar essas ações. Yamila Goldfarb cita em seu artigo que existe uma série de políticas públicas, um verdadeiro arcabouço, que vão aceitar como prova de posse, o desmatamento de imensas áreas. O Programa Terra Legal, criado pela Lei 11.952/2009 e alterado pela Lei 13.465/2017, por exemplo, aceita como prova para datação de ocupação o registro de desmatamento em imagem de satélites.
Segundo a pesquisadora, desde a aprovação da Lei 13.465/17 (MP 759/16), também apelidada de “Lei da Grilagem”, é autorizada pelo Estado uma massiva transferência das terras públicas para grandes fazendeiros, em que diversas alterações legislativas foram sendo aprovadas no sentido de renovar os prazos de anistia e aumentar as áreas anistiáveis.
“Temos um Congresso completamente dominado por essa bancada, a bancada do agro. Eles aprovam constantemente as anistias aos desmatamentos, a ampliação das áreas passíveis, regularizando a grilagem”, afirma.
Incêndio usado como arma de controle territorial
“O que temos então é que, tanto os incêndios florestais como a queima de casas, roças e espaços comunitários constituem armas na disputa pelo controle territorial na esteira da expansão do agronegócio. Tratam-se de modalidades distintas, mas que possuem o mesmo fim”, explica.
Para Yamila Goldfarb, o uso criminoso do fogo pela cadeia do agronegócio é mais um elemento que deixa clara a relação intrínseca entre a questão ambiental e a questão agrária no Brasil. Ela entende que para cessar essa destruição, é preciso tirar a possibilidade de que a terra pública e as terras de uso comum sejam apropriadas de forma privada. Por isso, a reforma agrária e a destinação de terras públicas como territórios tradicionais, como terras indígenas e Unidades de Conservação, conforme consta na constituição são fundamentais.
Com isso, as terras seriam convertidas em porção não passível de ser grilada. Se não de forma absoluta, ao menos ajuda nesse processo. “Urge cessar com o apoio incondicional a esse modelo agroexportador de commodities que não alimenta a população brasileira e é altamente subsidiado pelo Estado. Questionar com profundidade esse modelo é essencial. Esse seria um bom modo de parar de colocar lenha na fogueira”, finaliza.