CINEMA! Esta palavra para você é um elogio? Tipo quando queremos dizer que algo é grandioso, fotografado de forma bastante pictórica, com narrativa em enquadramentos luxuosos? Vamos falar, portanto, do remake cinematográfico da novela "Renascer", escrita em sua versão original pelo mestre Benedito Ruy Barbosa, e agora, em 2024, atualizada por seu neto Bruno Luperi.
É curioso que nosso cinema brasileiro extremamente premiado lá fora não possui necessariamente o mesmo acolhimento de público e/ou bilheteria caseira. No máximo as produções oriundas da produtora Globo Filmes, que algumas pessoas poderiam dizer que são filmes mais próximos da estética popular das novelas. Mas e quando as novelas se aproximam da arte do nosso cinema? Não que inexista arte em novela habitual, mas é uma arte de conteúdo diferente do de cinema.
Cada vez mais nossos profissionais do cinema estão nas plataformas caseiras, seja nas maravilhosas séries do streaming, cujo sucesso se deve a muitos nomes do nosso cinema (tão injustamente ainda desprestigiado no circuito comercial), sejam novelas com propostas mais ousadas. Vide o sucesso do ano retrasado com o remake de "Pantanal", que ajudou muitíssimo a audiência de sua emissora na batalha de streamings.
Agora, chega o remake de "Renascer" prometendo resgatar as mesmas sensações do evento anterior. E, logo em suas sequências iniciais, já lançou mão de referências diretas ao clássico "Deus e o Diabo na Terra do Sol" do saudoso mestre Glauber Rocha. Quadro a quadro. E, como sempre, relembremos aos leitores a diferença entre referência e cópia: Referência não é cópia quando utilizamos uma escolha estética ou de estilo, em homenagem a outrem, só que para corresponder a novas proposições, e não para responder da mesma forma aos mesmos desafios com que o homenageado já respondeu. Foi o que fizeram ao usar Glauber inteligentemente pra regressar à Bahia, em outras circunstâncias, não mais na seca, mas na abundância do cacau, e pra reiterar uma crítica ao velho coronelismo, agora acrescentando realismo maravilhoso à famosa cena de Corisco interpretado por Othon Bastos, e juntando duas referências a uma nova fusão: a imagética de Corisco com o famoso monólogo de José Inocêncio na primeira fase, outrora Leonardo Veira e ora Humberto Carrão:
"Enquanto o meu facão estiver encravado aos seus pés, nem eu nem você haveremos de morrer... Nem de morte matada... nem de morte morrida!"
Outro ponto interessante é que "Renascer" é mais uma exceção pro horário, a filmar enquadramentos cada vez mais elaborados, o que, com certeza, com a rotina apressada de filmagem de vários núcleos e personagens, decerto é mais custoso. Ainda mais com o porte do empreendimento de tais riscos em trabalhar mais a imagem e a marcação de atores nessas locações exuberantes, perante a luz e os contrastes com a natureza, além da conjugação com o desenho de som e a trilha sonora na pós-produção antes de entregar o produto final diário prontinho pra exibição na TV (afinal, só domingo não tem novela na rotina do brasileiro).
Mesmo assim, os ângulos aproximados no rosto dos artistas, típicos de folhetins habituais, aqui não soam como obviedade da técnica reiterada dos outros horários, pois criam real contraste entre os planos abertos e a iluminação no olhar de cada personagem, do brilho no suor ou nas lágrimas. Essa valorização do olhar, especialmente em planos holandeses (com a câmera torta, na diagonal) e em perspectiva com o rosto de outros personagens, logo atrás, permitiu ampliar as crenças e fé de cada um na parte do realismo maravilhoso (principalmente a de Inácia, interpretada pela grande Chica Xavier na original e que agora ia ser pela saudosa mestra Léa Garcia, e foi substituída com deferência por Edvana Carvalho). Esse olhar aproximado traz uma visão pra além do sincretismo religioso numa época em que ainda era tabu como retratado na novela.
É justamente esse olhar aproximado, não só para os closes nos rostos, mas também nos planos-detalhes, que mostra o quanto os objetos de cena também são encantados: Desde a famosa garrafa com o cramulhão que deverá ser bastante popular, como foi na original, e já é espiada de soslaio no primeiro episódio; ao protagonismo do cacau, não apenas pelas grandes plantações, como na mão e sob os pés de cada personagem; bem como o jequitibá-rei e até as ervas, contas e búzios de Inácia, cuja trilha sonora em cena evoca "a prece do pescador" à Iemanjá na sequência de cura, toda em plano-detalhe e alternando o foco de forma encantada, mesmo em ambientação noturna.
Mas o destaque logo do princípio do remake também não pode deixar de notar a troca de olhares entre José Inocêncio e o boi bumbá (com seus chifres e tudo), em outro close intrigante, um dentro do olhar do outro, já prenunciando o duelo entre o protagonista e o pai de sua amada Maria Santa, interpretada pela revelação Duda Santos (outro vértice do realismo maravilhoso que permanecerá na novela como um espírito encantado ou um delírio a conversar com Inocêncio).
É bastante interessante o uso dos varais de roupa na mise-en-scène desta relação, especialmente na cena que culminou no grande beijo do casal principal nesta primeira fase ao final do terceiro episódio. Aliás, os três capítulos iniciais poderiam ter sido um filme, de tão completos e bem integrados narrativamente. Voltando ao varal, a colcha de retalhos que Maria Santa (Duda Santos) se encontra estendendo, ao cantarolar "A estrela atrás da lua, a estrela atrás da lua, e eu atrás do bem querer", metaforiza uma alegoria direta ao cordel como referência lúdica - especialmente para o amor entre os dois protagonistas.
Cordel advém, originalmente, da tradição de pendurar folhetos com poemas e xilogravuras em cordas, ou seja, em cordéis, algo típico culturalmente no nordeste brasileiro. Então, esteticamente falando, o ato de pendurar cores e histórias, figurativa ou literalmente, como na sequência de desfecho do terceiro episódio de "Renascer", alude à escrita do romance principal que será permeado de fabulação, para além da vida, pois a personagem de Duda irá permanecer aparecendo para o protagonista mesmo após a morte, seja em delírio ou realismo maravilhoso. E o José Inocêncio de Humberto Carrão abrindo os lençóis para desvendar a cachoeira como se fossem páginas de uma literatura descortinada é um ato poético e cênico ao mesmo tempo, pois faz parte do enquadramento e da imersão sensorial do personagem e do espectador.
O ângulo, mais uma vez em plano conjunto, olhando agora não para a cachoeira e sim mirando de frente para a câmera, inverte de novo o eixo da cena, outra marca importante da fotografia até aqui. E traz a interação de uma das personagens para as costas da outra, por cima do ombro, como no profundo olhar de Maria Santa para o ponto cego da câmera (quase pra nós) e para José Inocêncio, o que levará com que ele cubra a jovem logo depois com a colcha de retalhos, com a própria tessitura da história e da trilha que tomam a ambientação, dedilhando o romance nas cordas da trilha sonora. Mas serão marcados pelo divino ou pelo tinhoso? Afinal, Inácia acendeu vela pra ambos...
Outra técnica que podemos apontar com grande apuro visual é também o uso de mise-en-abyme e foreshadowing acentuados de forma caprichada nas filmagens do remake. Para entender melhor o que significa, a primeira expressão supracitada foi usada pela primeira vez por Andre Gide, significando uma narrativa em abismo, ou uma narrativa dentro de outra; e a segunda expressão quer dizer "sombreamento adiantados", ou seja, servem pra dar dicas que antecipam acontecimentos da narrativa que servirão depois como elementos de conexão do início com o final da história.
"Renascer" está primando por quadros dentro de quadros que não estão ali apenas para ser belos, e sim para demonstrar que há narrativas se cozinhando dentro de outras narrativas, e que dão dicas do que vão acontecer (foreshadowing). Prova dos nove, aliás, de toda a mise-en-abyme da intertextualidade com os dois períodos da novela, antes mesmo de darmos o salto no tempo, que em breve irá fazer as personagens envelhecerem, e fará igualmente muitos artistas serem substituídos por intérpretes mais maduros, é a quebra da quarta parede assumidamente realizada pelo personagem do grande Matheus Nachtergaele, que não teria sido convidado se não tivesse um bom desafio para seu trabalho, à altura do ator.
A trama que mais está se utilizando do mise-en-abyme, não à toa, é a do embate do casal Quitéria e Venâncio, interpretados por Belize Pombal e Fábio Lago, respectivamente, de forma brilhante. Todo o patriarcado geracional ali contido já está prenunciando a emancipação ansiada para Quitéria..., e talvez alguns segredos em negação de Venâncio, inclusive da outra filha desaparecida. Por isso mesmo, seus enquadramentos incluem 2 a 3 quadros dentro uns dos outros, como quadros clássicos de mise-en-abyme, vide "As meninas" de Velázquez e o "autorretrato" de Johannes Gumpp. Belos exemplos podem ser vistos no enquadramento com a cabeça chifruda do boi bumbá entre os dois portais da casa, além das janelas e cortinas que separam os pais da filha Maria Santa. Outro exemplo forte é a relação da mãe com o trabalho dela como símbolo de sua tenacidade e certeza de justiça, como o quadro em que está costurando e podemos entrever entre ela e a máquina de costura as roupas brancas secando na corda lá fora ao vento; bem como o lindo enquadramento no qual Venâncio cobra Maria Santa por trás do lençol e Quitéria é vista lá atrás no batente da porta dos fundos até sair do background e vir pro primeiro plano, atrás do lençol pendurado na corda, reassegurando seu apoio diante da filha ante quaisquer ameaças do pai dela. Essas três personagens interligam todos os outros núcleos dramatúrgicos de uma vez só com tensão e reviravoltas, e por isso tal cuidado visual em sua parte da trama.
A brincadeira nos enquadramentos dentro de outros também joga bastante com as diferentes perspectivas e camadas dentro ou fora do foco, como se fossem personagens por cima do ombro egressas do filme "Persona" de Ingmar Bergman, aqui transformados em duelos de faroeste só no olhar entre José Inocêncio (Humberto Carrão, com fibra de cangaço) e Firmino (Enrique Diaz, como mafioso ofídio), ou com Roney Villela (o matador do segundo capítulo). O nível alto de suspense e thriller dos embates e até com certa liberdade na estética da violência, como a cena inicial bastante gráfica de tortura, já demonstram o quanto a narrativa pretende se usar de um pouco de adrenalina também, numa troca de perspectivas que vai e volta o seu olhar entre rivais.
O uso destas inversões de eixo, como o tilt no portal de entrada do vilão Coronel Belarmino (Antonio Calloni), ao final do segundo episódio, fazendo a câmera deslizar pela porteira para cima, ao longo dos dois andares de construção da sua casa, e depois olhando de volta num ângulo de 90º, lá de cima para baixo, é um dos muitos exemplos de emprego da fotografia numa relação dramatúrgica. Essas câmeras distanciadas, que pedem licença no lado de fora do batente das portas, sintonizam muito bem com a própria narrativa sobre territórios vizinhos em peleja de competição pelo cacau, entre o velho coronelismo e uma nova forma cooperativa de se administrar. É como se a própria novela pedisse uma licença, perante os agronegócios predatórios do Brasil atual, para adentrar nas casas dos espectadores e propor novas formas de ver o mundo.
Lembrando que apesar de todos pensarmos imediatamente no grande Walter Carvalho como responsável, pela versão original e pelo remake, e ele é sim indispensável, também assinam a direção: Alexandre Macedo, Mariana Betti, Ricardo França e direção geral de Pedro Peregrino. Além de contar na fotografia com Fabricio Tadeu, na cenografia com Fabio Rangel e direção artística de Gustavo Fernandez.
Quem perdeu os primeiros episódios pode ver na Globoplay em alta definição! Imperdível.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.