Quando a viagem é de horas e não de dias, vou de ônibus. Gosto do conforto da poltrona, da parada na beira de estrada, de trocar a tela digital pela janela da vida real.
Adoro mais ainda a diferença de preço pro avião. Quando embarquei para o Rio, a passagem ida e volta custou 186 reais. Na ponte aérea, seriam 2.971,00.
16 vezes mais!
Se eu tinha alguma pressa, ela voou...
Estou a caminho da Bienal do Livro e logo surge outra vantagem sobre rodas. É o Gilliard, um observador de ótima memória.
Gilliard é o motorista do ônibus. Ele me avisa, maroto.
- Acho que já levei o senhor.
- Como lembra?
- Cosme não é um nome muito comum e meu tio se chama José Cosme.
- E você é xará do Gilliard, o cantor. Seu nome tem dois Ls, é igual ao dele.
- Minha mãe era fã.
- A minha também.
Entro e me acomodo na poltrona 07.
Na cabeça, “Aquela Nuvem”, super sucesso que minha mãe cantava junto com Gilliard e as chacretes, as bailarinas do Chacrinha: “Aquela nuvem que passa lá em cima sou eu...”
Nas poltronas 5 e 6, dois pilotos aceleram. Os sacos vazios de pipoca e de biscoito de polvilho são os volantes e os braços das poltronas as alavancas do câmbio. Os irmãos Daniel e Leo imitam sons de ultrapassagens e só param no boxe para abrir suas latas de refrigerante
Em quase 7 horas de curvas, pedágios e serra, há mais diversão: leio 50 páginas de um romance sobre indígenas em fuga, ouço a entrevista de Tiquinho Soares e pego um atalho para 1987.
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É o ano da minha primeira viagem para o São Paulo. Um estágio na TV Globo Oeste Paulista me chama em Bauru.
Como tantos viajantes novatos, para mim o município era só o nome de um sanduíche.
Tudo errado. É a cidade onde Pelé começou a se tornar craque e escola de ótimos jornalistas. Bauru, também terra de faculdades, é amiga dos forasteiros e endereço da pinga do Moia. Além, claro, de ser a madrinha do sanduba.
Para sair do Rio e chegar a Bauru, faz-se uma baldeação em São Paulo. Não dei sorte, e o ônibus da segunda parte da viagem só sairia em 18 horas. O que fazer naquele imenso Terminal Tietê?
Nunca havia visto tanta mala, tanta caixa de papelão equilibrada em infinitas cabeças. A primeira imagem de São Paulo era um mar de gente. E o carioca ali, afogado na multidão.
Se tivesse pelo menos noção de São Paulo, da tal da avenida Paulista ou do Ibirapuera, podia dar um passeio e voltar perto da hora do embarque. Nada disso, eu, carioca-caipira, não arredei pé da rodoviária, agarrado à mala.
Então, surgiu um passatempo quase tão bom quanto a imaginária corrida, que contei lá em cima.
Nos guichês de venda de passagem, cidades desconhecidas e nomes maravilhosos: Poço Fundo, Espera Feliz, Mato Rico, Vargem Alta. Deu vontade de visitar.
Em letras grandes, reluziam nome e sobrenome de outros municípios: Elói Mendes, Artur Nogueira, Cornélio Procópio. Quem seriam esses homens e porque nenhuma mulher?
Opa, tinha uma cidade feminina, sim. Januária, e outra, Mariana, no mesmo estado dos pequeninos Timóteo e Cláudio.
Às vezes, homenageado e cidade se abraçavam no mesmo nome. Andrelândia, Ritápolis, Figueirópolis, Iracemápolis.
A madrugada ainda cochilava quando li em voz alta: Itambacuri, Quipapá, Guaranésia, Pindamonhangaba.
Aventurar-se nessas viagens impossíveis acalmou meu peito naquela noite solitária, que já fez 36 anos.
De volta a 2023. O ônibus entra na rodoviária e Gilliard se despede com uma gentileza.
- Até a próxima, seu Cosme.
É mais uma viagem de escritor que desembarca na Bienal, a Festa dos Livros e das histórias.
*Luis Cosme Pinto lança seu livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da editora Kotter, na Bienal do RJ. É nesta quinta, 07/09, às 18 horas, no estande da Máquina de Livros, no Pavilhão Verde (T18).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.