Recebi hoje um release (um texto enviado por assessoria de imprensa) informando que o Brasil Paralelo, a produtora responsável pelo absurdo “documentário” 1964: O Brasil Entre Armas e Livros (entre diversos outros projetos que nada mais são do que tentativas de revisionismo histórico ou pura fake news), fechou uma “parceria” com a Angel Studios para o lançamento do longa Som da Liberdade no Brasil.
Baseado nos relatos de Tim Ballard sobre seus próprios feitos - ênfase no “baseado”, já que os próprios produtores admitem ter alterado vários fatos -, o filme lida com o combate ao tráfico de crianças, o que, por si só, é um tema cuja importância ninguém questiona. O problema começa quando o projeto foge da realidade e, segundo especialistas, cria uma narrativa que pode alterar a percepção do espectador sobre o problema, causar mais danos às vítimas e - ainda pior - ajudar a encobrir os autores deste tipo de crime, que o longa retrata como sendo responsáveis por planos complexos para abduzir crianças, ignorando que na maior parte dos casos, os criminosos são indivíduos próximos das vítimas.
Abraçado pelos conspiracionistas QAnon, coletivo de extrema-direita que defende teses que vão de “Trump venceu a eleição” a “os democratas fazem parte de grupos que sequestram crianças para roubar seu sangue”, passando por “John Kennedy Jr está vivo e retornará em breve”, o filme é estrelado por um dos mais conhecidos porta-vozes destas teorias, o ator Jim Caviezel, cujo fanatismo religioso já era notório antes que ele começasse a propagar também absurdos que beiram o criminoso.
Enquanto isso, várias denúncias de assédio sexual foram divulgadas na última semana contra Tim Ballard, que acabou sendo oficialmente desligado da organização que ele próprio fundou; entre outras acusações, algumas mulheres afirmaram que ele usava suas “missões secretas” para tentar fazê-las transar com ele, chegando a indagar “até onde elas estariam dispostas a ir para salvar crianças” (inserir emoji de vômito).
Mas o que quero realmente abordar neste post é algo que considero… estranho: a Angel Studios está oferecendo ingressos gratuitos para Som da Liberdade através do Ingresso.com, bastando que os interessados adquiram promocodes que devem ser inseridos no ato da compra. Este tipo de promoção não é incomum; várias empresas realizam promoções para seus clientes, adquirindo estes códigos (que dão desconto parcial ou total) no Ingresso.com e distribuindo-os em ações de marketing do tipo “compre dois (insira o produto) e ganhe um par de ingressos para (insira o filme)”.
Muito mais raro é que os ingressos sejam oferecidos em troca de… nada.
Repito: aparentemente, um número considerável de ingressos foi comprado e oferecido sem qualquer condição prévia, algo que não é nada comum.
E querem ver como é fácil? Basta ir no site da Angel, clicar em “Can´t afford tickets?” (“Não tem dinheiro para o ingresso?”) e você será automaticamente levado para as sessões disponíveis em sua cidade, precisado apenas emitir o promocode e inseri-lo no sistema da Ingresso.com (que, faço questão de frisar, não está fazendo nada de errado; o procedimento é comum, as circunstâncias é que são estranhíssimas).
Já o objetivo não poderia ser mais óbvio: garantir um público maior para um projeto que foi abraçado pela extrema-direita norte-americana - o que se torna ainda mais preocupante quando constatamos como o QAnon há muito tempo vem tentando ampliar seu alcance entre direitistas da América Latina.
Outro detalhe curioso é que em seu site, a Angel afirma que os ingressos são oferecidos gratuitamente graças a doações de indivíduos que pagaram para que mais pessoas vissem o filme - uma história que poderia inspirar Saul Goodman, mas que, em teoria, é possível ser real. O elemento que não se encaixa aqui é o fato de o Brasil Paralelo afirmar ter fechado um acordo com a Angel para oferecer ingressos para novos assinantes da plataforma. Será que os tais “anjos” doadores sabem que seu dinheiro está sendo usado para aumentar o número de assinantes de uma empresa particular?
Aqui vale apontar também que no site do Ingresso.com há a seguinte informação:
Uma rápida pesquisa revela que a SM Distribuidora de Filmes LTDA (que comprou os cupons e os distribuiu) já tem ou teve alguma relação/parceria corporativa com a Paris Filmes, que é oficialmente a distribuidora de Som da Liberdade no Brasil (ver a página 3 do documento linkado) - e acho razoável supor que “paralelo” tenha a ver com o promocode do Brasil Paralelo, embora possa estar errado. E aí cabe novamente a pergunta: por que a tal SM Distribuidora está comprando ingressos para o filme e distribuindo livremente? A Paris Filmes também é parte desta estratégia? Mas por que comprar ingressos para o próprio lançamento?
Lembrem-se disso quando os resultados de bilheteria do filme forem noticiados.
Observação adicional: a quantidade de propaganda de Som da Liberdade aparecendo nas redes também é considerável.
Observação 2: o leitor Dilson Neto confirmou, nos comentários abaixo, que a SM Distribuidora é a Paris Filmes. Aliás, recomendo que leiam o comentário dele na íntegra.