Por Antônio Mello*
Primeiro, a necessidade de um salto rápido, quase um bote, depois da corrida louca, para detê-lo pela camisa, puxá-lo; depois, foi como um impulso, seta do desejo: a mão num soco, fechada como a frente de um Scania, bem no fígado, puf, seco, e, então, o outro se curva, quase uma cadeira, a boca, de dentes podres, abre-se, a língua tremendo num grito pavoroso, os olhos arregalados amarelecendo no rosto negro.
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Em direção aos dois, uma pessoa atravessa a rua, uma pessoa quase gato, tão ágil ela. Outras, outro lado da rua, olham apenas; isso, é fácil prever, é por enquanto.
O ódio continua surdo, e ele, agora, aplica, mãos espalmadas, plaft, um telefone-sem-fio no outro; o menino cai, mãozinhas no ouvido, um milhão de abelhas na cabeça zumbindo, lágrimas dos olhos escorrendo, quase um feto no chão, retorcido. O homem chuta a cara do menino, cract; sangue e alguns dentes que, podres, quebraram tão fácil, saltam pela boca, quase de velho agora: murcha.
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Outras pessoas cercam os dois, olham: espanto. Sobre suas cabeças: prédios e um céu azul, daqueles de se dizer diáfano, transparente, translúcido. Alguns comentam que eram dois os pivetes, e do morro do Pavãozinho, na certa, ou de muito longe, da Baixada, se tudo é incerto; mas dois, que um fugiu, "menorzinho ainda e já ladrão, deve estar por aí"; certo é que eram dois, pretendiam a bolsa de uma senhora, mas ela protestou, gritou, o homem viu, e o resto é o que estamos, impassíveis, presenciando.
O homem pega a impressão de feto pelas pernas, segura-as bem, e, por elas, levanta-a. O menino de cabeça para baixo, o que o homem pretende?
Um rapaz puxa a namorada, vamos embora daqui, ele diz, já vi esse filme. Ela pergunta qual o filme. Os dois afastam-se do grupo, que, de ciranda em ciranda, aumenta; afastam-se mais, atravessam a rua e, pouco adiante, a menina saltando no ombro do namorado, param - com certeza, o filme ele contou a ela.
O homem, zum-zum, começa, mãos nos pés do menino, a girá-lo. Tão forte é o homem, o menino parece uma ausência súbita, sombra apenas, que roda por cima da cabeça do homem. Este começa a caminhar, ainda zum-zum, e o grupo abre, o grupo num burburinho, dando passagem ao homem-helicóptero, uma pergunta animando a cabeça de todos: o que pretende?
Como o Átila do filme de Bertolucci, 1900, o homem, ainda, e sempre, girando o menino, bate, prac, com a cabeça dele num poste, onde, numa placa, lê-se ATENÇÃO ESCOLA DEVAGAR; e, prac, girando, bate outra vez, sangue e miolos espirrando - não em ninguém, que todos estão afastados, apenas olhando - prac, e prac, e prac. O homem, assim, cansa-se, ufa, e solta o ex-menino no chão de sempre.
O grupo, cirandando, renova-se, uns que vão, são outros que vêm: a cara de espanto quando veem o ex-corpo; então, conversa de olhos curiosos, pequenas exclamações, dúvidas, ais.
A cinco quarteirões dali, o menorzinho, que conseguiu fugir, limpa, na camisa suja, uma pera, lindo vê-la, apanhada pouquinho atrás num vacilo do comércio, e morde-a, uma delícia sob o céu azul, tantos prédios.
Depois, o menino anda, um pé na frente do outro, sempre trocando, um e outro, assim, um pé na frente do outro. Um na frente do outro.
(Este pequeno Relato faz parte de meu livro de contos A Metáfora de Drácula, lançado pela Livraria José Olympio Editora, em 1982)
*Antonio Mello, escritor, blogueiro do Blog do Mello, autor do romance ELA (linktr.ee/blogdomello) publica uma crônica todo domingo aqui na Fórum."