É curioso que este ano talvez tenha sido aquele com candidatos mais polêmicos em termos de dividir o público entre fiéis defensores e detratores; lovers e haters. Não estamos falando de filmes que passam desapercebidos ou que preenchem aquela típica vaga que “sobra”. Não é nada disso desta vez. Foram obras com seus próprios méritos ou justificativas, com oposições drásticas aos tipos de linguagens entre elas, e que dividiram opiniões de forma radical. Vide, inclusive, os principais ganhadores: “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” e “Nada de Novo no Front”, respectivamente com 7 (filme, direção, atriz principal, ator e atriz coadjuvantes, roteiro original e montagem) e 4 Oscar (filme internacional, fotografia, design de produção e trilha sonora). Além de “A Baleia” que levou 2 (melhor ator e maquiagem).
Mais polêmico ainda é o fato de outros filmes igualmente aclamados ou rejeitados, e até mesmo incompreendidos, terem saído de mãos vazias, mesmo que representassem alguns dos candidatos mais tradicionais em termos de proposta para o perfil da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, como “Tár”, “Os Banshees de Inisherin” e até “Os Fabelmans”, três obras autorais de cineastas consagrados e oscarizados, cada um a seu modo, e cujas respectivas assinaturas chegaram a um ápice criativo nestes respectivos filmes (iremos falar deles mais abaixo).
Sem falar nos candidatos que levaram uma estatueta cada um, principalmente blockbusters que foram contemplados talvez por terem reaquecido o mercado combalido do circuito presencial desde a retomada pós confinamento social; ou talvez até mesmo numa vã tentativa de alavancar o próprio Oscar, cuja audiência e o status decai a cada ano. Vide as maiores bilheterias de 2022, o nostálgico “Top Gun: Maverick” (melhor som), o fraquíssimo “Avatar: O Caminho da Água” (melhores efeitos especiais), o reverencial “Pantera Negra: Wakanda Forever” (melhor figurino) e a maior bilheteria da Índia e primeira indicação de um filme do mercado de lá a ganhar uma estatueta nesta categoria “RRR – Revolta, Rebelião e Revolução” (melhor canção original). Sobrando o Oscar de melhor roteiro adaptado para a única diretora mulher indicada a melhor filme este ano: Sarah Poley por “Entre Mulheres”.
Mas recai nos dois principais premiados as maiores controvérsias.
Após a vitória injusta no ano passado para um remake norte-americano de um feel good movie" (filme-conforto), típico da Sessão da Tarde da Globo, que foi “Coda”, mesmo com fortes concorrentes como “Drive My Car” e “Ataque dos Cães”, este ano alguns cinéfilos ficaram indignados pelo reconhecimento absoluto do filme “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo" de Dan Kwan e Daniel Scheinert. Um filme divisor de águas, sim, e que está recebendo todas as consagrações recordes da temporada de premiações, e ao mesmo tempo o maior número de reações acaloradas tanto de parte do público que odiou o filme, quanto de parte que não sente muita afinidade com o gênero...
Mas qual gênero é este? Sci-fi (devido à metafísica da trama)? Ação (com referências ao cinema de Hong Kong e wuxia)? Drama familiar (por causa do tema sobre imigrantes)? Ou comédia (por vezes escatalógica)? Esse filme é literalmente tudo em todo lugar ao mesmo tempo, mas não sem algum sentido para tanto, pelo menos ao ver do presente crivo crítico.
Engraçado que, há pouco mais de 2 décadas atrás, "Matrix" chegava com muitas destas exatas propostas (menos o humor escatológico), e virou o maior cult daquela década, mesmo que não passasse nem perto de possibilidades de prêmios como "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo" – e olha que ambos possuem a mesmíssima estrutura formal (não de conteúdo, lógico). Afinal, também temos uma pessoa afora do mundo ordinário da rotina e burocracia, "escolhida" para "despertar" poderes especiais que transcendem a lógica da sua realidade, e precisa impedir um tipo de "vírus" que consome todo o sistema e pode, inclusive, contaminá-la.
O que faz toda a diferença é justamente o conteúdo, que determina a forma ímpar também, inclusive. Estamos falando de uma abnegada mãe (interpretada pela oscarizada Michelle Yeoh) que se acha sem horizontes e uma filha (Stephanie Hsu) com tantos horizontes pela frente que pode colapsar antes mesmo de poder escolhê-los. E, para que a sina de ambas não seja o total niilismo, uma tem que aprender com a outra a acreditar em si mesma. O fato de o espelho da mãe ser a filha em realidades alternativas muda totalmente a linguagem perante o conceito fractal de Neo e Agente Smith na Matrix, especialmente em como os diferentes mundos dos respectivos filmes são desdobrados e montados até mesmo na edição.
Existe um leque de dimensões paralelas quânticas aqui acontecendo ao mesmo tempo, e que são reveladas de acordo com o nível de consciência da protagonista e de o quanto ela estaria a se desafiar (vide o gatilho esdrúxulo que ela necessita na trama pra habilitar um novo conhecimento de outra vida, pois todo parto dói). Sem falar nas luzes da fotografia a potencializar mil expressões da atuação que agregam matizes de inúmeras realidades alternativas para o rosto de Michelle e de seu outro parceiro em cena, Ke Huy Quan, que interpreta seu marido. Quando as várias cores vão perpassando pela fisionomia de ambos, muitas dores e dissabores da vida a dois vão sendo revelados na interpretação, como se mil vidas tivessem sido vividas em poucos segundos naquele olhar.
É interessante pensar nisto porque é a cinefilia referencial quem amplia e muito o escopo do longa-metragem para além das partes de ação e comédia mais gritantes. Quem não se sente tão à vontade apenas com estes gêneros cinematográficos, ou rejeita o lado ficção-científica mais escalafobético, pode realmente ter um problema com o rendimento deste exemplar, mas jamais poderia acusá-lo de ser vazio. A representação chinesa nele, até pela ascendência de um de seus diretores, Daniel Kwan, e de grande parte do elenco ou equipe técnica, traz à tona inúmeras citações reverenciais a estéticas clássicas e modernas orientais. Dos filmes de capa e espada de época em filmes como de Zhang Yimou, do movimento da quinta geração de cineastas chineses; aos dramas familiares do taiwanês Ang Lee; às lutas e ação desenfreada de John Woo do cinema de Hong Kong; ao romance estilizado do mestre Wong Kar-Wai. Cada uma destas simbologias está presente em inúmeras sequências do filme, aludindo às suas respectivas marcas de enquadramento e fotografia.
Acrescentando-se ainda o mérito da curadoria de filmes da produtora independente A24, que vem crescendo a cada ano no Oscar, como com filmes desde “A Bruxa” ao ganhador de melhor filme em 2017 “Moonlight”, mas foi só com “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” que a A24 teve seu primeiro sucesso de crítica e público, já que foi sua primeira produção a ultrapassar os 100 milhões de dólares em arrecadação (lembrando que o filme teve um baixo orçamento e foi bastante criativo nos efeitos especiais e na valorização visual que parece bem mais luxuosa do que o quanto realmente custou).
Por último, mas não menos importante, o elenco doou muito de si para o reconhecimento deste filme, pois há vários contextos e substratos da carreira de todos eles entregues ao roteiro e à trama, aludindo aos seus trabalhos anteriores ou intimidades reais. A pochete que o personagem de Huy Quan usa para lutar na primeira metade da projeção adveio de seu personagem mirim na década de oitenta no cult “Os Goonies”. Já Michelle Yeoh doou seu estrelato (que é uma das realidades alternativas da protagonista, inclusive), bem como suas artes marciais (idem), e até relacionamentos pessoais (ibidem). Com certeza Cate Blanchett merecia igualmente o Oscar de melhor atriz por “Tár”, mas não foi injusto Michelle levar a estatueta. Nem Jamie Lee Curtis ter levado melhor atriz coadjuvante no lugar da favorita que era Angela Bassett por “Pantera Negra: Wakanda Forever”, justamente também porque é outra atriz que doa muito de seu legado no cinema de gênero, de terror e fantasia, tão pouco reconhecido pelo Oscar.
Já o caso de “Nada de Novo no Front” do suíço Edward Berger é um caso bem mais simples de se justificar tantos prêmios. Na verdade, era a aposta mais segura da noite, afinal, foi a produção Netflix que mais recebeu projeção, e, mesmo sendo representante da Alemanha, tinha a maior produtora mundial atualmente para impulsionar a sua carreira – uma grande marca que nasceu nos EUA, que é a plataforma de streaming mais assistida de todas. Isto porque escolheram a dedo o gênero mais premiado do Oscar, que é o de guerra (lembremos que a primeira edição da história da Academia premiou a guerra, com “Wings” em 1929), e ainda adaptou um livro que já teve outras versões norte-americanas antes, uma delas ganhadora do Oscar de melhor filme em 1930. Esta foi a primeira adaptação do clássico livro alemão homônimo realizada pelos próprios conterrâneos do autor Erich Maria Remarque.
O filme decerto traz algumas decisões inteligentes na nova versão, especialmente por narrar o ponto de vista dos derrotados que desejavam finalizar logo a guerra, mas cuja soberba e politicagem de seus superiores não autorizava a rendição, sendo um libelo anti-belicista num período em que estamos vendo guerras voltarem a eclodir. Há sequências muito boas, como a de abertura, que mostra a selvageria sendo lavada e sanitizada do campo de batalha para trazer novos corpos para morrer com as mesmas roupas reaproveitadas dos que caíram em batalha. Bem como a cena dos lança-chamas, que impressiona algumas pessoas pelo realismo. Porém, com um final um pouco previsível e glorificado mesmo na derrota, mas não ufanista, pelo menos não era um candidato desonroso, apenas já visto antes em inúmeros filmes similares. E ganhou até em categorias que poderia merecer, como trilha sonora, mas tão somente porque a verdadeira merecedora sequer foi indicada: Hildur Guðnadóttirkdshndvk, pelas trilhas de “Tár” e “Entre Mulheres”.
Finalmente em se falando de “Tár” talvez seja o mais complexo e hermético de todos os indicados. O filme foi passou bastante incompreendido pela cinefilia mais afeita ao mercado de senso comum e aos votantes da Academia que queriam algo mais “ostentoso”. "Tar" de Todd Field conta com elenco estelar internacional, como Cate Blanchett, a diva alemã Nina Hoss e a estrela francesa em ascensão Noémie Merlant.
Todd Field é um diretor que trabalha dramas intimistas eclodidos por escândalos sexuais nos bastidores de instituições basilares de poder (família, casamento, trabalho e etc), como "Entre quatro paredes" e "Pecados íntimos". Pode parecer um filme hermético, cuja lógica se prende à bolha de derrocada de poder, mas são tantos temas e camadas por trás disso que demonstra o quão rica esta obra pode ser. A teoria da autoralidade e o famigerado tabu se dá ou não para separar autor da obra (veja meu vídeo para saber minha opinião pessoal); a cultura do cancelamento; a diferença de gênero, especialmente em funções predominantemente monopolizadas por homens; sem falar na própria criação artística e sua releitura através dos tempos.
Blanchett está virtuosamente amedrontadora, com um trabalho facial de tiques e olhares fulminantes (capazes de fazer qualquer um molhar a calça de medo), bem como uma vulnerabilidade camuflada de soberba que advém muito de sua versatilidade cênica. Quanto mais ela perde o controle da manutenção de seu status privilegiado, mais se torna temerária e surtada (vide a ótima cena do cachorro que a persegue; ou a relação com um espelhamento invertido da solidão e do medo de perder a relevância com o tempo projetados na idosa vizinha de seu escritório pessoal, último refúgio de seu Id escondido sob o ego).
O uso de câmera e da fotografia também vai se tornando cada vez mais experimental, com inversões de perspectiva em contra-plongées, por exemplo, conforme a visão de seu mundo implode vertiginosamente, seja permitindo toques oníricos, a ponto de confundir o espectador se algumas cenas são reais ou imaginárias, e igualmente toques de thriller (o que só amplia o tom de suspense desde o princípio empregado pelo peso da trilha e dos gestos ameaçadores da personagem)
Além da fantasmagoria presente no filme inteiro, não só pela já mencionada metáfora da fugacidade humana da vizinha moribunda, como nas lives em redes sociais que aparecem às vezes para o espectador, ou com uma silhueta da jovem ruiva de costas que foi sua ex-pupila (e amante). Esta presença oculta em várias cenas vale a revisão, como bomba final presente desde o início como foreshadowing. Outro foreshadowing interessante logo no começo é também a palavra hebraica "kavanagh", que ganha duplo sentido na entrevista inicial com o sobrenome homônimo de um homem indicado à Suprema Côrte Norte-americana que foi acusado de casos de assédio, adiantando o assunto tão importante e grave que tomará a trama de assalto, e demonstrando desde já os dois pesos e duas medidas no tratamento diferente para homens e mulheres.
Por fim, mas não menos importante, é crucial realçar a beleza de alguns diálogos e cenas, verdadeiras aulas não apenas de uma grande maestra de orquestra sinfônica, mas adaptável a várias outras searas, como à própria atuação, de forma metalinguística. O monólogo sobre o tempo e seu uso para reger uma expressão artística são de uma beleza ímpar, e pode ser aplicado até ao modus operandi da técnica de interpretação de Blanchett, como a capacidade de comprimir ou dilatar o tempo, ou mesmo suspendê-lo completamente, fazendo com que a câmera precise contemplá-la, e exigindo o restante do elenco a sintonizar outras temporalidades dramatúrgicas. Sem falar no discurso inspiradíssimo sobre as diferentes leituras que uma obra pode ter, seja sob a ótica de um tempo talmúdico, que atualiza o trabalho original e o traz para o presente sob nova adaptação; ou um tempo espiritual, que tenta resgatar a essência do original e conjurar seu espírito para o presente, de modo a ser fidedigno à intenção do criador. São duas vertentes igualmente válidas e que podem redefinir a forma como esta obra pode ser lida. Uma aula não só de música clássica, mas de cinema!
Vale ainda uma observação extra: É bom não confundirmos diálogos brilhantes com mera concordância sem ter um viés crítico pelo princípio do contraditório: a aula que a protagonista ministra em Juilliard possui trechos de fala brilhantes, sim, porém ao mesmo tempo perversos e até anti-éticos às vezes, potencialmente humilhando o aluno. Ainda mais quando falam de representatividade e "separar o autor da obra" ou de "cultura do cancelamento". Esta é uma das maiores vulnerabilidades do filme, que podem levar espectadores mais desatentos a baterem palmas para a visão da personagem de Blanchett, por todo seu carisma e irresistibilidade autocentrada típica de uma protagonista, e não enxergar o quão fácil é invalidar o discurso do outro e passar um trator por cima da alteridade. A falta de sensibilidade dela ao próximo ou às minorias/oprimidos/diferenças, inclusive, por ser mulher LGBTQIAP+, como se não existisse dois pesos e duas medidas na sociedade para identidades fora de um padrão hegemônico, só porque ela se encontra num lugar de poder neste momento, é a mesma faca de dois gumes que agirá contra ela mais tardar na projeção. Então, muito cuidado ao exaltar cegamente qualquer coisa que ela diga sem antes esperar a perspectiva de um quadro que o próprio filme irá exemplificar em sua narrativa.
E o outro franco favorito da noite do Oscar 2023 que ficou a ver navios foi "The Fabelmans" do renomado Steven Spielberg, logo em seu projeto mais confessional e autobiográfico.
Há nesta obra inúmeras referências à sétima arte em geral e à própria carreira de Spielberg, o que faz crescer bastante o valor de revisão, além de agregar um olhar carinhoso à magia da sala escura, referenciada não apenas em cenas nas salas de cinema (algo precioso, ainda mais em tempos de crise do circuito presencial diante dos streamings), mas também referenciada ludicamente na salinha de projeção improvisada no quarto/armário do jovem protagonista.
Mesmo que a média seja um pouco semitonada, ainda mais como um memoir de perspectiva infanto-juvenil que só diz mais do que qualquer Sessão da Tarde por se tratar das memórias do próprio Spielberg, algumas cenas até que são dignas de competir no panteão das sequências históricas da carreira do diretor, como a dança da personagem materna (Michelle Williams) sob o contraste de tensionamentos entre olhares do marido, do amigo platônico, do filho cineasta e da filha preocupada com a mãe, todos com dilemas deliciosos a enriquecer o escopo de perspectivas contraditórias que alimentam a boa dramaturgia... Além da bela cena de montagem da reprodução do desastre do trem, na tentativa de superar um trauma, um medo infantil. Bem como podemos acrescentar, noutro ponto alto da primeira metade do filme, quando se é revelado para a matriarca que o filho já sabia de sua indiscrição com o melhor amigo do marido, projetando na parede o resto dos negativos descartados do inocente filme familiar de férias que havia pego a mãe no ato...
A primeira metade tem o potencial de ser um grande filme, já a segunda... nem tanto, infelizmente, com uma pegada equivocadamente ingênua das desventuras escolares que mais parecem fotocopiadas da estrutura narrativa de “De Volta para o Futuro”, mas que resvalam às vezes em “Malhação” da Globo, mesmo que denunciando de forma louvável o antissemitismo (mais uma vez, a denúncia fica meio deslocada pela ingenuidade supracitada). Porém, para os que vão procurar uma diversão em homenagem ao próprio fazer cinema e à história da sétima arte, não se preocupe, pois não há nada que uma participação especial de David Lynch ao final não possa compensar. E talvez por isso este longa-metragem naif e agridoce tenha passado tão desapercebido entre tantos outros candidatos mais polêmicos.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.