“Vamos cair de pau em cima deles?”. Esta pergunta me foi feita, com voz de quem está sorrindo, por Adriana Dias Higa, em uma mensagem de áudio enviada através do WhatsApp naquela que foi uma das últimas conversas que tive com a pesquisadora.
Procurei Adriana, na ocasião, para pedir uma análise de um fato que, no mesmo dia, seria repercutido na Fórum: uma bandeira com a suástica nazista havia sido hasteada em um colégio militar no Rio de Janeiro. O Exército informou, como justificativa, que a cena fazia parte de uma de uma "peça teatral ambientada no contexto da 2ª Guerra Mundial".
“Essa é a ideia”, respondi para Adriana, que sempre me atendia, mesmo quando estava tratando de seus problemas de saúde, prontamente. Ela explicou que, ainda que a bandeira nazista tenha sido exibida no colégio militar no âmbito de uma representação teatral, aquilo era “extremamente perigoso”.
“É muito complicado as pessoas ensinarem acerca do nazismo com representação factual. Adolescentes não têm condições de discernir tão bem a respeito de um tema tão esmagador", disse, iniciando uma longa explanação sobre o assunto.
Considerada uma verdadeira “caçadora de nazistas”, Adriana, que faleceu no dia 29 de janeiro, vítima de um câncer cerebral, aos 52 anos, era a maior especialista em neonazismo do país e estava entre as maiores do mundo. Doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ela pesquisava o fenômeno do neonazismo havia mais de 20 anos e, ao longo deste período, ajudou a desbaratar células nazistas, levar seus articuladores à prisão e evidenciar o caráter nazifascista do governo Bolsonaro.
Foi Adriana a responsável, por exemplo, pelo estudo, repercutido mundialmente, que revelou a explosão no número de células neonazistas no Brasil de 75 em 2015 para 530 em 2021. É dela também a descoberta da carta que Jair Bolsonaro enviou a um grupo neonazista em 2004 - outro fato de grande repercussão internacional.
Antes mesmo de Bolsonaro vencer as eleições e sem que muitos de nós soubéssemos o nível do obscurantismo e violência que se instauraria no país entre 2019 e 2022, Adriana, em uma de suas dezenas de entrevistas à Fórum, já alertava: “Bolsonaro é candidato a formar um Reich”.
"Falam que fascismo é algo démodé, do passado. Não é. O fascismo está presente no Brasil hoje. O neonazismo é um perigo verdadeiro à civilização ocidental", sentenciou à época.
Adriana estava certa. Em janeiro de 2020, pouco mais de 1 ano após o início do governo Bolsonaro, o ex-secretário de Cultura, Roberto Alvim, confirmando o caráter nazista do governo, fez um discurso imitando Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler. Novamente recorri à especialista.
"Existem muitas semelhanças entre o governo Bolsonaro e o início do nazismo na Alemanha de 1930 (...) É muito importante a gente pensar que essa explosão cultural que a gente estava vivendo e essa tentativa de refrear com essa questão do discurso moral também foi uma tática hitlerista. Dizer que a Alemanha era um país moral, também houve essa questão e, por isso, Hitler devia assumir o poder e controlar aquela liberação cultural que estava acontecendo. Todas essas questões já aconteceram na Alemanha. Se a gente fosse capaz de olhar um pouco a história, o passado, com calma, a gente veria que esse momento não é tão diferente do momento em que o nazifascismo cresceu", asseverou naquela ocasião.
Felizmente, o “Reich” bolsonarista anunciado por Adriana não durou os mesmos 12 longos anos do regime nazista de Hitler. Se o nazismo à brasileira foi retirado do poder em “apenas” 4 anos, porém, muito se deve ao incansável trabalho da antropóloga, que fez de sua própria existência, desde sempre, uma ferramenta de luta dos oprimidos.
A pesquisadora tinha osteogênese imperfeita, uma doença rara, popularmente conhecida como “ossos de vidro”, que atinge um em cada 20 mil indivíduos. A dificuldade de locomoção imposta pela condição genética, no entanto, contrastava com sua força e capacidade de levar adiante o movimento em prol das pessoas com deficiência. Foi diretora do Instituto Baresi - fórum nacional que apoia pessoas com doenças raras visando à inclusão social - e coordenadora da Frente Nacional de Mulheres com Deficiência, denunciando violações de direitos dessas pessoas e se colocando na linha de frente da construção de políticas públicas.
Diante do descaso do governo Bolsonaro com relação à pandemia do coronavírus, Adriana, mais uma vez, se fez exemplo de entrega à causa coletiva e ajudou a fundar a Associação Vida e Justiça de Apoio às Vítimas da Covid-19, que ampara e segue ao lado das famílias que perderam seus entes queridos para a doença que o ex-presidente classificou como uma “gripezinha”.
Adriana denunciou a destruição e ajudou a reconstruir. Como um de seus últimos serviços prestados à população brasileira, integrou a equipe de transição do governo Lula na área de Direitos Humanos entre novembro e dezembro de 2022, quando já se tratava do câncer cerebral.
A última mensagem de fato que recebi de Adriana foi no dia 3 de outubro de 2022, logo após o primeiro turno da eleição presidencial. Outro áudio, desta vez em forma de oração pelas vítimas da Covid-19 e em homenagem aos heróis da pandemia.
“Sempre nos lembraremos dos nossos heróis que lutaram pelos fracos. Que neste dia o Senhor destrua o ódio, a perversidade, que encha o coração dos brasileiros de amor e de verdade. Que desfaça esse véu que está sobre os olhos dos brasileiros. Que a lembrança deles esteja nos corações de todos os homens de bem, para hoje e sempre. Amém”, disse.
Finalizo parafraseando sua oração: sempre nos lembraremos da heroína Adriana que lutou pelos fracos. Que sua lembrança, exemplo e legado estejam nos corações de todas as pessoas de bem. Sua memória não morrerá.