No livro O Lado Sujo do Futebol, do qual fui um dos autores, descrevemos como Ricardo Teixeira, que enriqueceu às custas de seus cargos na CBF e na FIFA, jamais gostou de futebol.
Além de nunca ter jogado, o executivo que veio do mercado financeiro ascendeu como cartola por ter casado com a filha de João Havelange. Teixeira gostava de poder e dinheiro.
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No livro, também falamos do processo de gentrificação do futebol brasileiro, cujo maior símbolo foi a extinção da geral do Maracanã.
Acredito que o livro foi finalista do Prêmio Jabuti não por desvendar parte da corrupção que a imprensa esportiva brasileira, notadamente a TV Globo, escondeu por décadas -- em nome da proteção de seus próprios interesses econômicos, especialmente o monopólio dos direitos de transmissão.
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Em um dos capítulos finais, apontamos como o futebol tinha se tornado uma atividade tão lucrativa que eventualmente escaparia ao controle dos próprios clubes e de seus torcedores e associados, para se incorporar como atividade subsidiária de grandes conglomerados econômicos.
Por causa do efeito Lava Jato, que demoliu a Odebrechet, não antecipamos o fenômeno da W Torre, a dona do estádio do Palmeiras que, "coincidentemente", agora, tem um contrato para demolir e reconstruir a Vila Belmiro, como "arena multipurpose".
Sim, o linguajar do futebol descartou o center-half e o corner dos anos 50 e no século 21 incorporou os "naming rights" e a Sociedade Anônima do Futebol, a SAF, que de anônima não tem nada.
FLUTUAÇÕES DA BOLSA
Anônimos, no caso, são aqueles que vão lucrar com a nova configuração do esporte, que subordina o futebol às flutuações da bolsa de valores e das casas de apostas.
É neste sentido que uma era acabou na noite de 6 de dezembro de 2023, quando o Santos FC caiu para a Série B do Campeonato Brasileiro.
Andrés Rueda, o misto de contador neoliberal e presidente do Santos, confessou publicamente que futebol não era exatamente a sua praça. Seu principal objetivo era "sanear" as contas e praticar "déficit zero".
Seria leviano dizer que Rueda trabalhou conscientemente pela demolição do clube, mas ao menos cumpriu sua tarefa principal, a de "tornar inevitável" a demolição do patrimônio simbólico do Santos, a Vila Belmiro.
Destruir por dentro com o objetivo de gerar lucro não é exatamente uma novidade para o público brasileiro.
Os processos de privatização da Vale, da Telebras, da Eletrobras e da Petrobras que nos desmintam.
Sustento, por isso, que o glorioso Santos Futebol Clube, como patrimônio de nossa memória coletiva, foi enterrado quarta-feira, ironicamente num estádio que, se tudo correr como o planejado, em breve será implodido.
O último gol tomado pelo Santos na "antiga" Vila Belmiro não poderia ser mais simbólico do fim de uma era.
Se de fato for adiante, a nova arena, que será da W Torre, terá uma Santos Store (não é loja do Santos, é Santos Store) de 899 metros quadrados, 36 lojas externas, com 2.600 metros quadrados, 576 vagas de estacionamento cobertas e 80 camarotes para 1.060 torcedores.
Um shopping center de luxo para um clube que já foi de portuários e estivadores.
Ao divulgar a ideia, a W Torre projetou um letreiro que vai ilustrar o arco superior da Vila: Santos, We Stand Together.
Assim mesmo, em inglês, o "tamo junto".
O estádio é uma joia rara para o setor imobiliário.
Fica logo na entrada de Santos, com fácil acesso para a população de quase 2 milhões de pessoas da Baixada Santista, público potencial para shows de música numa região que não dispõe de uma arena multiuso.
Como em breve acontecerá com o Pacaembu, o ex-templo esportivo de São Paulo, o futebol será "incidental". O shopping, as vagas de estacionamento e o lugar para shows, não.
Como concessão à torcida, a W Torre prevê uma sede para a Torcida Jovem: afinal, alguém terá de agitar bandeira para compor a cenografia do pay-per-view.
O gramado certamente será fake, para evitar custos de manutenção.
O projeto me fez lembrar da configuração dos cassinos de Las Vegas, que de casas de jogatina se transformaram em centros especializados em depenar financeiramente toda a família: enquanto papai se diverte na roleta, mamãe faz compras, júnior vai na hamburgueria e o bebê fica na creche. Tudo, obviamente, muito bem pago.
Por sorte, o Santos ao menos será poupado de vagar por aí como aquele Botafogo sem alma que andou liderando o Campeonato Brasileiro.
Por conta de interesses imobiliários, o clube do Garrincha vagou de General Severiano para Marechal Hermes, dali para Niterói e hoje, ironicamente, joga no Engenho de Dentro, num estádio que já se chamou João Havelange.
A quantos sapos enterrados no campo isso equivale?
Outro consolo é que a memória do Santos não ficará estampada na parede de um supermercado, como aconteceu com o Bauru Atlético Clube, clube em que Pelé brilhou em Bauru.
Isso mesmo: o estádio Antônio Garcia, que deveria ter sido tombado e transformado em local público de memória, quem sabe um centro de incentivo à prática de esportes para jovens, foi vendido de forma obscura e hoje abriga um supermercado.
Foge aos bauruenses a ironia: um lugar de memória compartilhada da cidade se transformou em templo de consumo.
Dondinho, pai de Pelé, o pioneiro preto vindo de Minas Gerais que encantou a cidade, foi apagado pelas ofertas de linguiça a R$ 25,00 o quilo, enquanto Bauru celebra o ditador Castelo Branco -- branco -- em avenida.
Onde Dondinho fez gols legendários, fica a gôndola dos enlatados.
Para evitar isso, a W Torre prevê um Memorial das Conquistas. Museu é terminologia superada.
Que os santistas não se desesperem: se tudo der certo, logo poderão viver uma "experience" numa arena Santander da vida, ex-Vila Belmiro.
We Stand Together!