CHEFE, EU TE AMO

Assédio, espionagem, geladeira e prebendas nos bastidores da Globo

A Sibéria e os manifestos de apoio a superiores hierárquicos

Ditadura da mídia.Um colunista da Globo comparou Lula ao ditador da Coreia do Norte em período eleitoral, mas a emissora achou que tinha sido "imparcial" em 2006Créditos: Wikipedia
Escrito en OPINIÃO el

A cena foi bizarra, patética e constrangedora.

Um chefe de escalão médio me perseguiu pelos corredores da TV Globo de São Paulo quando eu me dirigia até as máquinas de café, antes de ir embora da jornada de trabalho.

Tinha um rádio de comunicação na mão e presumo que cumpria tarefa recebida de alguém que estava na outra ponta, no Rio de Janeiro.

O constrangimento tinha um motivo adicional: eu havia conhecido esta pessoa quando ele era um jornalista iniciante e tinha namorado uma parente minha.

O preposto queria saber se eu iria assinar um abaixo-assinado de apoio a um chefe que estava sendo questionado por causa da cobertura da Globo entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial de 2006.

Na antevéspera do primeiro turno, numa combinação com um delegado da Polícia Federal, a mídia tinha publicado as fotos do dinheiro supostamente usado pelo PT para comprar um dossiê contra José Serra, do PSDB, candidato ao governo de São Paulo.

O problema é que um dos jornalistas presentes ao encontro, de uma emissora de rádio de São Paulo, tinha gravado tudo. No encontro, o delegado cita uma certa "foto da Globo", aparente referência a uma parede cenográfica de notas de 50 reais montada pela PF durante a perícia do dinheiro apreendido.

Disse o delegado-editor aos repórteres -- e depois desistiu da ideia -- que seria preciso fazer photoshop para não identificar a empresa de segurança Protege.

Sugeriu a sequência em que a notícia deveria ser dada, para criar o maior impacto possível. Afirmou ainda que, se questionado, poderia jogar a culpa do vazamento nas faxineiras da Polícia Federal.

Os jornalistas aceitaram tudo mansamente.

A apreensão do dinheiro tinha sido feita semanas antes, mas por "coincidência" o vazamento coordenado aconteceu na antevéspera do primeiro turno da eleição.

Tratava-se de dar uma força à candidatura de Geraldo Alckmin, então no PSDB, contra um Lula candidato à reeleição -- ele havia contornado as denúncias do mensalão que balearam alguns de seus auxiliares mais próximos, como José Dirceu e José Genoino.

O pacto entre os repórteres e o delegado da Polícia Federal pressupunha esconder informações relevantes para o público sobre como havia se dado o vazamento. Tratava-se de uma armação eleitoral com o compromisso da mídia de não contar toda a História.

Depois de ouvir a gravação, publiquei uma nota sobre a existência dela no site Viomundo, hospedado na Globo.com, por considerar a notícia de interesse público.

No dia em que as fotos foram publicadas, chamou atenção o comportamento siamês de Folha e Estadão: ambos destacaram as "paredes de dinheiro" no topo da primeira página, aquela que fica exposta nas bancas de jornal, e logo abaixo publicaram fotos de Lula encapuzado, por causa do frio em uma atividade eleitoral no ABC paulista.

Ou seja, era o dinheiro e o "trombadinha".

A armação tinha sido prejudicada por uma daquelas coincidências do destino: na noite anterior, 29 de setembro de 2006, uma colisão entre um jatinho Legacy e um Boeing tinha matado os 154 ocupantes na rota Manaus-Brasília.

Os diários paulistanos foram obrigados a destacar esta como a manchete principal.

Na noite anterior, no entanto, o Jornal Nacional não mexeu em sua paginação: manteve uma longa reportagem sobre as fotos do dinheiro encabeçando seu principal telejornal.

O preposto que agora me procurava, ao lado da máquina de café, queria que eu participasse de um abaixo-assinado de apoio ao superior hierárquico dele.

O abaixo-assinado teria surgido na redação da TV Globo do Rio de Janeiro, de maneira espontânea.

Era para defender a cobertura da TV Globo nas eleições de 2006.

Ele argumentou, quanto ao choque de aviões, que o Jornal Nacional não tinha tido tempo de confirmar o acidente a tempo de incluir a notícia naquela edição.

Eu admiti que era uma possibilidade, mas disse que não acreditava que a cobertura da emissora tinha sido isenta.

Dei como exemplo o fato de o comentarista do Jornal da Globo, Arnaldo Jabor, ter comparado Lula ao ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-il, em um de seus comentários.

"Ele é nosso clown", respondeu o preposto, sugerindo que Jabor era um palhaço que não deveria ser levado a sério.

Não, ninguém chamou Alckmin de Chuchu na Globo em 2006.

ASSÉDIO, ESPIONAGEM, GELADEIRA E PREBENDAS

Por ter me recusado a assinar, em algumas semanas fui colocado na geladeira, com constantes mudanças de horário e sumiço do horário nobre do Jornal Nacional.

Eu já estava exausto de trabalhar como repórter em São Paulo, tinha uma oportunidade de estudar as redes em Washington e pedi a rescisão antecipada de meu contrato com a Globo, a primeira e única vez em que isso aconteceu no jornalismo da emissora.

Um pioneirismo que muito me agrada.

A condição para "escapar da Globo" que me foi imposta pelo chefe beneficiário do abaixo-assinado foi passar os próximos dezoito meses, tempo que restava de meu contrato, sem trabalhar em outra emissora -- e, obviamente, sem salário. A isso chamo de Sibéria.

Colegas que não assinaram, como Rodrigo Vianna, não tiveram seus contratos renovados.

Um deles, que assinou e depois retirou a assinatura, Marco Aurélio Mello, foi convidado para um evento da emissora em São Paulo, estava certo de que sua postura não seria motivo de retaliação, mas foi demitido de forma brusca e sem explicação.

Por outro lado, também houve beneficiários. Um repórter que tinha conhecimento da existência da gravação incriminadora sobre o vazamento da Polícia Federal, mas manteve segredo, logo se tornou correspondente em Nova York e em seguida âncora.

O preposto que me perseguiu pelos corredores viu sua carreira decolar, assumindo seguidamente cargos mais e mais altos, com óbvios benefícios financeiros.

Eu poderia tê-lo denunciado por assédio ao Ministério Público do Trabalho, a fim de descobrir se agiu por conta própria ou atendendo a superiores hierárquicos -- só não o fiz por considerações familiares.

Na conversa ao lado da máquina de café, que terminou de forma brusca quando eu disse que não era meu papel assinar abaixo-assinado, nem defender a Globo -- que dispunha de meios institucionais para fazê-lo --, eu não pude contar ao preposto os motivos adicionais para desconsiderar tais manifestos.

Como se trata de um documento público, o chefe vai ficar sabendo exatamente quem assinou ou deixou de assinar. Seus subordinados, também.

Mesmo que a origem seja mera manifestação de carinho, desinteressada -- do que, por óbvio, duvido -- um mero abaixo-assinado pode se transformar em instrumento de espionagem interna e de gravíssimo assédio. 

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