Na abertura de "Orlando, minha biografia política" (2023), o filósofo Paulo Preciado, que assina o roteiro e a direção do longa, explica por que não escreve uma autobiografia, pois, para ele, ela já foi escrita, e a autora é a lendária escritora Virginia Woolf.
O livro em questão é "Orlando, uma biografia", publicado originalmente em 1928. A obra de Virginia Woolf é considerada uma das principais do modernismo e gerou um grande alvoroço quando lançada: de crítica e de venda, o livro foi um sucesso absoluto.
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Mas por que, para Paulo Preciado, o livro "Orlando, uma biografia" trata-se de sua vida biografada por Virginia Woolf? Para responder a tal pergunta, é preciso voltar um tanto no tempo e compreender o contexto social e histórico do momento em que "Orlando" é publicado.
Virginia Woolf desmonta a decadente sociedade vitoriana
Virginia Woolf já era uma renomada escritora, ensaísta e ativista política vinculada às teses trabalhistas, muito em voga no começo do século XX na Inglaterra. Antes de "Orlando, uma biografia", Virginia já havia publicado “Mrs. Dalloway” (1925) e “Ao Farol” (1927), duas obras-primas que versam sobre os impactos da Primeira Guerra Mundial e da decadência dos valores que regiam a sociedade inglesa, que ainda buscava entender o que era viver sem o poder regencial.
“Mrs. Dalloway” e “Ao Farol” colocam a autora como uma das principais escritoras do modernismo, principalmente devido ao uso do fluxo de consciência na escrita, método ao qual Virginia Woolf é considerada uma das precursoras.
Mas, com "Orlando, uma biografia", Virginia Woolf dá um passo adiante e, além de toda a sua inventividade estética, ela apresenta ao leitor a história de um personagem aristocrata que vive 400 anos, parte deles como homem, parte deles como mulher.
Com a transformação de Orlando em mulher em determinada parte da trama, Virginia Woolf busca desmontar valores da decadente sociedade vitoriana que iriam cair - a criminalização da homossexualidade - e outros iriam surgir - o direito das mulheres ao trabalho, ao voto e à herança, e o fim da divisão binária das roupas em "masculinas" e "femininas".
Para quem Virginia Woolf escreveu Orlando?
Outro detalhe importante da obra "Orlando" e que geralmente não é trazido à tona é que se trata de uma obra dedicada à Vita Mary Sackville-West, com quem Virginia Woolf manteve uma relação de profundo amor e amizade. Mas, em que sentido “Orlando” é a biografia de Vita?
Vita Mary Sackville-West viveu um casamento de fachada (em comum acordo) com o diplomata e escritor Harold George Nicholson, pois ambos eram homossexuais, prática que era crime na Inglaterra e que só deixou de ser um delito em 1967.
Portanto, “Orlando, uma biografia” é um livro que teve por objetivo derrubar todos os valores morais herdados da Era Vitoriana, que marca o fim da Monarquia enquanto poder político.
Não à toa, a obra de Virginia Woolf causa rebuliço e isso por alguns motivos: pelo fato de tratar abertamente de questões como sexualidade, vestimenta, binarismo de gênero e liberdade e autonomia às mulheres e às LGBT+. O velho mundo precisava morrer, e Virginia sabia que tal realidade estava com os dias contados.
Em 1929, quando publica “Um teto todo seu”, Virginia Woolf, ao refletir sobre a questão das mulheres e o espaço público, afirma categoricamente que, mais cedo ou mais tarde, todas as restrições morais e sexuais iriam cair e as mulheres poderiam vivenciar outro mundo. Ter o seu trabalho, a sua renda e viver a sua sexualidade. A transformação social e sexual prevista por Virginia Woolf aconteceu.
Paul Preciado e Virginia Woolf juntes na revolução sexual em curso
Em seu filme, Paul Preciado traz para o século XXI a escritora Virginia Woolf e as questões por ela abordadas em seus livros “Orlando, uma biografia” (1928) e “Um teto todo seu” (1929). Mas, Preciado avisa Virginia: o seu Orlando se multiplicou e se espalhou pelo mundo todo.
Dessa maneira, Paulo Preciado traz para o seu filme uma série de pessoas transexuais e não binárias que interpretam Orlando nos dias de hoje, mas que agora precisam enfrentar outras barreiras: a tirania do diagnóstico médico que decide quem é “mulher” e quem é “homem”, o acesso ao direito civil e, principalmente, o direito ao nome e a uma identidade.
Ao colocar em seu filme as narrativas dos diversos Orlandos, Paul Preciado atualiza os valores morais e sexuais que estão decrépitos e que irão cair por terra. Assim como Virginia Woolf acreditava, Preciado também trabalha com a perspectiva de que há uma revolução sexual em curso no século XXI e que não há mais volta e, mais importante, tudo será transformado.
Sabe-se muito bem que uma revolução não é algo que se dá da noite para o dia; pelo contrário, ela demanda muito tempo de preparo e construções políticas, ocupações dos espaços de poder, destruição das velhas normas e a ocupação de tais espaços com uma outra forma de vida.
Por ser uma revolução - e neste caso, uma revolução transexual e não binária -, não se trata de uma “alternativa”, mas sim da substituição do modelo atual por outro completamente distinto.
Virginia Woolf, fundadora da sociedade contrassexual?
Em 2001, ao publicar o livro “O Manifesto Contrassexual” (Zahar), Paulo Preciado chacoalhou o mundo dos estudos de gênero, sexualidades e, principalmente, aqueles voltados para os estudos gays e lésbicos.
Provocador, Preciado propõe a substituição por completo do Contrato Social que nos rege até hoje, pois, para ele, tal contrato ainda é eivado de patriarcalismo, sexismo e, principalmente, marcado por uma profunda desumanização das pessoas LGBT+.
Se em suas primeiras obras, Preciado realiza críticas contundentes às identidades, é verdade que tal posicionamento já não é o mesmo - não que ele tenha abandonado o caráter radical e queer de suas teses -, mas reposicionou certas críticas ao tratar das identidades enquanto fator de peso na disputa política em curso.
É fato que elas, as identidades, não são estáticas, como pretende fazer crer o pensamento conservador, mas também é verdade que uma vida fora das identidades está muito longe de ser algo palpável e estratégico politicamente. Paul Preciado é um filósofo, mas também é um militante político, e isso faz toda a diferença em sua atuação.
Dessa maneira, em seu filme “Orlando, minha biografia política”, Preciado passa longe de qualquer discussão que nos remete às teses queer, das quais ele é a principal referência, mas passa os 90 minutos de duração de seu longa-metragem a discutir as identidades trans, a não binariedade e o fim do discurso médico enquanto regulador dos corpos classificados como “anormais”.
Portanto, podemos afirmar que Paul Preciado continua a revolução sexual iniciada por Virginia Woolf e os responsáveis por levarem a cabo tal transformação radical das sociedades serão os Orlandos espalhados, mas também unidos e com muita raiva, ao redor do mundo.