"Decoupling" é a palavra de ordem no establishment político e militar dos Estados Unidos, que continua trabalhando, independentemente do governo de turno, no Projeto para Um Novo Século Americano, formalmente dissolvido em 2017.
Não havia mais necessidade de um lobby formal pelas ideias do PNAC em Washington, uma vez que elas já permeavam toda a burocracia dos Estados Unidos, do Departamento de Estado ao Pentágono.
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Trata-se, obviamente, de manter a hegemonia dos EUA diante de múltiplas ameaças, da China à emergência de potencias regionais independentes.
Antes de avançar é importante lembrar que, apesar de toda a conversa sobre o declínio relativo dos EUA, a superpotência consome, todos os dias, 20% de todo o petróleo queimado na Terra.
Os EUA são responsáveis sozinhos por quase 40% de todos os gastos militares do planeta -- foram quase 900 bilhões de dólares em 2022.
"Decoupling", ou dissociação, é o movimento para desfazer a arquitetura que Estados Unidos e a China construíram juntos, a partir de 1972 (visita do presidente Richard Nixon), para promover crescimento econômico mundial em frente única contra a União Soviética.
Brad Setser, do Council on Foreign Relations, o influente think tank de Nova York, sustenta que a China dispõe hoje de 6 trilhões de dólares em reservas, metade delas não oficialmente declaradas.
Dissociação entre as duas economias é, portanto, um delicado movimento de longo prazo -- e pressupõe que um dos "parceiros" se sente ameaçado pela influência do outro.
No caso, é notório que os Estados Unidos se sentem ameaçados pela China.
Foi o democrata Barack Obama quem patrocinou o "pivot" para a Ásia, um giro na orientação da política externa com o objetivo de "conter" a influência de Beijing.
Destas decisões do establishment estadunidense decorrem várias outras, como a ênfase na expansão da OTAN até a "barriga" da Rússia.
Os EUA não contavam que Vladimir Putin pagaria o preço da invasão da Ucrânia, mas mesmo com eventual solução negociada Washington conseguiu seu objetivo estratégico: enfraquecer a União Europeia, que se estabelecia como um eixo econômico alternativo.
É neste contexto mais geral que devemos enxergar o retorno da política externa "altiva e ativa" do governo Lula, inspirada numa tradição do Itamaraty da qual o ex-chanceler Celso Amorim é hoje um dos principais tradutores e articuladores.
A mídia comercial brasileira em geral e a Globo em particular sempre jogaram alinhadíssimas com os interesses de Washington.
Basta olhar para os beneficiários da Operação Lava Jato, que poderia muito bem ter sido uma superprodução do Projac.
Depois da política econômica de Paulo Guedes, a posição subalterna de Jair Bolsonaro em relação aos Estados Unidos é motivo de imensa saudade nos estúdios da emissora carioca.
Com o ataque do Hamas a Israel, a subsequente cobertura unilateral dos acontecimentos -- como se não houvesse História -- é uma oportunidade para que Globo e seus satélites "disputem" a política externa do governo Lula.
Não por acaso, um dos principais porta-vozes das ideias do Departamento de Estado no Brasil escreveu que Lula está colocando o Brasil "a reboque da China e da Rússia".
O futuro da política externa dos Estados Unidos reside em formar um bloco em torno de seus objetivos.
Não há, no planeta, aliado tão próximo de Washington quanto Israel.
Ao responder ao ataque do Hamas, Benjamin Netanyahu declarou que pretende redesenhar o mapa do Oriente Médio.
É exatamente o mesmo objetivo que embalou os neoconservadores a conceberem o Plano para Um Novo Século Americano.
Na madrugada de Gaza, o incessante bombardeio coloca em prática uma antiga pretensão da extrema-direita de Israel: provocar movimento em massa de palestinos, alterando a demografia desfavorável a longo prazo.
Mas, não se enganem: os caminhos que passam pelo Hamas eventualmente desembocam no Irã.
Em julho deste ano, o Irã se tornou o coração geográfico da Organização para Cooperação de Xangai, criada em 2001 -- entre outras coisas para combater abertamente a influência ocidental na Eurásia.
O Irã foi admitido na OSC com apoio da China e da Rússia e integra o grupo ao lado de Índia, Paquistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão.
Na nova era das guerras por procuração, quem tem poder para promover e tirar proveito de instabilidade em plena Rota da Seda?
A realidade tem formas inesperadas de frustrar planos, mas o que descrevi acima é o que povoa a mente do establishment dos Estados Unidos.