A violência é o caminho usado pelo neoliberalismo para administrar os pobres. Se observarmos a história das favelas do Rio de Janeiro constataremos que "o impulso organizativo dos excluídos foi suficiente para despertar nos setores conservadores da cidade o velho temor da sedição, mais tarde traduzido no slogan 'é necessário subir o morro antes que os comunistas desçam'".[1]
Durante a ditadura civil-militar, líderes comunitários foram assassinados. E a introdução do tráfico de drogas serviu para desmobilizar ainda mais os excluídos, provocando um esvaziamento das organizações.[2]
Mas há causas mundiais para explicar essa administração da violência. O imperialismo estadunidense não funciona sem a existência de um inimigo. Após a Guerra Fria - período em que os EUA criaram "zonas selvagens de poder" para combater a "ameaça comunista", justificando a violência estatal -, intensificou-se a "guerra contra as drogas" para, assim, preservar o uso da violência contra os cidadãos no próprio país e no estrangeiro. Esse modelo de segurança nacional, segundo Susan Buck-Morss, foi exportado para os países da América Latina.[3]
Outra questão deve ser observada: após a derrota no Vietnã, a indústria cultural investiu intensamente na violência para recuperar a imagem dominante do homem branco. Por isso os Rambos e outros filmes de saradões salvando o mundo tornaram-se blockbusters hollywoodianos.[4] A relação entre violência e entretenimento retorna aos padrões da Antiguidade Clássica, quando os espetáculos sanguinários do Coliseu atraíam multidões.
O fim que o neoliberalismo deu ao Estado de bem-estar social levou necessariamente à criação de um Estado punitivo: "a substituição progressiva de um (semi) Estado-providência por um Estado penal e policial, no seio do qual a criminalização da marginalidade e a 'contenção punitiva' das categorias deserdadas faz as vezes de política social".[5] Loic Wacquant se refere aos EUA, mas esse método neoliberal de lidar com os excluídos também foi exportado: "a 'guerra contra a pobreza' foi substituída por uma guerra contra os pobres, bode expiatório de todos os maiores males do país". Os pobres agora são alvos de "uma saraivada de medidas punitivas e vexatórias destinadas, se não a recolocá-los no caminho certo do emprego precário, pelo menos a minorar suas exigências e, portanto, seu peso fiscal".[6] Aquele que não consegue ser bem-sucedido é submetido à violência estatal. Ou o indivíduo arruma um jeito de sobreviver (nos padrões da promessa meritocrática neoliberal) ou é punido.
O professor Adalberto Dias de Carvalho diz algo fundamental para compreendermos esse uso da violência pelo Estado: "a violência é, afinal, o cárcere da coincidência conosco ou com o outro que nos impõe, impedindo-se a revolta, o grito, a criação, a superação, a iniciativa ou, tão somente, a solicitude como gesto de encontro".[7]
Por isso, parafraseando Adorno, desbarbarizar é ainda a questão mais urgente da educação. Pelo fato de que "tanto a exclusão social quanto a violência, são expressões da desumanização e que por isso estão em contradição com a educação que tem em seu cerne a ideia de ajudar homens e mulheres a construírem novas e melhores possibilidades de serem gente e viverem em sociedade".[8]
A agressividade na sala de aula
Mas como combater a violência se ela é parte do mecanismo neoliberal de disciplina? O totalitarismo neoliberal leva a violência para todas as partes da sociedade. O que, consequentemente, é a causa direta da agressividade dos alunos e, em alguns casos, dos próprios profissionais da educação. Palavrões, ofensas e brigas são ações constantes em sala de aula. É impossível que uma pessoa que vive em um ambiente em que o poder é exercido por meio da violência deixe de reproduzi-la onde quer que esteja. Na Igreja, é reproduzida pelo ódio às religiões afrodescendentes. Em casa, pela violência dos pais. No entretenimento, a violência sexual, o culto às armas e drogas. Todas essas violências, decorrentes da violência estrutural que sustenta o neoliberalismo, soma-se a violência exercida na escola.
Quando falamos que se trata de uma violência estatal, não podemos esquecer que o Estado é uma cúpula da classe dominante. A violência contra os excluídos é um projeto de poder da burguesia para impedir o desabrochar da verdadeira raiva. É como explica Paulo Freire: "a minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de "ser mais" inscrito na natureza dos seres humanos".[9] A violência orquestrada pelo sistema neoliberal tem o objetivo de conter a justa ira e colocar oprimido contra oprimido.
Punir o aluno, ou reprová-lo, por conta da sua agressividade, seria apenas uma forma de mostrar que a causa do seu fracasso é seu comportamento. Esse é o objetivo. Assim será possível justificar, no futuro, que existem ricos e pobres. Uns vão falar que é porque o cidadão não quis estudar, por isso vive na penúria. Mas toda violência administrada para exclui-lo da vida acadêmica, para impedi-lo de "ser mais", é fruto da luta de classes. A violência que chega à sala de aula é um projeto de poder.
Sem a conscientização da violência que o aluno reproduz na escola, será impossível combatê-la. Nenhuma ação humana é desprovida de um propósito e quando essa ação se torna repetitiva, padronizada, é impossível que ela não faça parte de um mecanismo que funciona bem para manter as relações sociais estagnadas.
Não devemos entender a violência, e sua manifestação em diversos lugares, como uma realidade dada, natural, mas sim como um instrumento criado pelo capitalismo para a sua manutenção. Ou seja, a violência é política. É uma ideologia que o sistema quer que pensemos que seja natural, decorrente da individualidade de cada um, do histórico familiar etc. Essa privatização dos problemas, como Mark Fisher fala sobre os transtornos mentais, descarta qualquer questionamento sobre sua causa social sistêmica. É a partir dessa perspectiva que temos que pensar a violência na sala de aula; uma violência exercida pelo opressor sobre o oprimido que visa manter as relações sociais de produção. Trata-se da reprodução alienada do poder em sua forma mais bárbara.
É preciso conscientizar que a violência do oprimido para com o oprimido é a reprodução de uma violência sistêmica. Após, portanto, a problematização dessa violência, o caminho para transformá-la em "justa ira" começa a ser trilhado.
[1] BURGOS, M. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, A. e ALVITO, M. (orgs.) Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 29.
[2] ZALUAR, A. Crime, medo e política. In: ZALUAR, A. e ALVITO, M. (orgs.). Op. Cit., p. 215.
[3] MORSS-BUCK, S. Mundo de sonho e catástrofe. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018, p. 41-42.
[4] KELLNER, D. Cultura da mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 88.
[5] WACQUANT, L. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 19-20.
[6] Id., p. 24.
[7] CARVALHO, Adalberto Dias de. Da violência como anátema à educação como projeto antropológico: algumas questões e perplexidades. In: HENNING, L. e ABBUD, M. (orgs.) Violência, indisciplina e educação. Londrina: Eduel, 2010, p. 25.
[8] STRECK, D. e MEDEIROS, L. A violência da exclusão social: desafios para a educação. In: HENNING, L. e ABBUD, M. Op. Cit., p. 241.
[9] FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 84.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.