- Nunca vi o Maurício tão feliz.
- Por que o Brasil ganhou o jogo ontem na Copa, Fabíola?
- Nada disso.
- O que houve?
- Vou mostrar, Luciana. Olha a foto.
- Um sofá? É isso que está deixando seu marido tão alegre?
- Não é o sofá, é o contexto.
- Ih, essas palavras da moda dão nos nervos. Antes desse tal de contexto me conta do sofá. Vai que o Cristiano também muda de humor com um desses? Vermelhão, né?
- Sim, de Sued.
- Que isso?
- Sued é um tecido, parece veludo. Só que é mais barato, não esquenta e pode lavar. Tem aos montes lá na capital.
- Legal.
- Olha essa outra foto. O primo do Maurício, a mulher, os dois filhos e os dois cachorros vendo o jogo anteontem. Todo mundo no sofá. Maior festa no golaço do Roberto Dinamite. Toda hora o Maurício repete que agora tem lugar para receber as visitas.
- Quanto custou?
- Essa é a parte ruim, ainda bem que o Maurício dividiu em doze cheques e antes de fechar negócio me levou lá.
- E você?
- De início não queria. A gente já tem duas poltronas, fora as cadeiras da mesa de jantar. Então, o vendedor explicou. Sofá é caro porque leva madeira, espuma, ferragens, mas se for bem cuidado dura mais que casamento. Deu uma risadinha amarela e me convidou pra sentar.
- E?
- Nunca me senti tão confortável. E sabe o que mais o vendedor falou?
- Não.
- Deita. Aí, quando eu ia deitar e o Maurício também, ele puxou a parte de trás. O encosto deslizou e formou uma cama de casal.
- Como é isso?
- É uma novidade. Chama-se sofá-cama. De dia a gente senta, de noite a gente deita.
Roberto Dinamite e cheques pré-datados indicam que a conversa não é de hoje. E o sofá-cama, mesmo antigamente, só era novidade em Agudos, irmã caçula de Bauru.
Fabíola, a dona do sofá, e Luciana – que agora liga de um telefone preto e pesado – conversam sem pressa. É uma tarde de junho de 1978, o ano da Copa da Argentina. Chegamos em terceiro.
- Outro dia quando liguei você disse que Maurício chorava de raiva por causa do sofá. Não entendi.
- De tão grande, o sofá não entrava no elevador e não passava na escada.
- E aí, Fabiola?
- Chamamos uma empresa de içamentos. Eles amarraram o gigante, que entrou pela janela. Só então o Maurício se acalmou.
- Sabe como a gente comemorou?
- No sofá?
- Como você me conhece, Lu.
- E você reclamando?
- É que toda hora ele chama os amigos para assistir os jogos.
- Qual o problema?
- Não gosto da bagunça, mas quando a galera se manda o sofá é só da gente..
Em tardes sossegadas, as jovens amigas se espalhavam no estofamento macio, agora de gorgurão azul-petróleo. Passavam as vidas a limpo e Fabíola brincava.
-Ah se o meu sofá falasse.
Ganhou cera nos braços de madeira, um remendo na parte traseira e brilhou em mais uma festa de fim de ano. Todo mundo queria sentar nele.
Chegamos a 1984. É tempo das Diretas Já. Juntos no sofá, os casais vibram com a cobertura ao vivo dos comícios e depois esticam a noite com pizza, cerveja e algo mais.
Meses depois.
- Lú, tô grávida de gêmeos!
- Uau, foi naquela noite que vocês falaram para o Cristiano e eu dormirmos no quarto que vocês iam ficar na sala?
- Acertou. Foi no sofá.
- Amiga, tô precisando mesmo de um sofá novo. Quem sabe o Cris não se anima e aumenta a família?
1990, Collor dá uma tunga no país inteiro, o calote cancela os planos de milhões de brasileiros e até a reforma completa do sofá fica pra depois.
Na rotina do casal de gêmeos nada muda, as tardes de desenho animado são regadas a chocolate quente e biscoito recheado, tudo no sofazão da sala. Já os pais não deitam nele faz tempo.
O século mudou, a Copa é a de 2002. Somos Penta.
- Lú, você sempre curtiu o sofá e se a loja lá de Bauru não tivesse fechado, você e o Cris já teriam comprado um igual, né?
- Nem fala.
- Então, se quiser eu te vendo.
- Como assim?
- Fica só entre a gente. O Maurício vai ser transferido para a capital, será gerente do banco. Eu consegui vaga como professora. É o mesmo colégio onde Gabriel e Gabriela vão estudar.
- Parabéns. Ainda dá tempo de torcer pelo Brasil hoje, todo mundo aí no sofá?
- Beleza. Sabe lá quando sentaremos juntas outra vez.
- Eu levo sanduíche de metro.
O sofá acomodou a torcida de roupa nova: chenile verde com losangos laranja. Mais aconchegante, comentou o Maurício tentando abraçar a Fabíola.
Leitoras e leitores mais atentos lembram da piada infame do vendedor sobre casamento. Pois é, o homem tinha razão. Um bom sofá suporta tudo, já um casamento, nem sempre.
Assim começa a conversa vinte anos depois, em 2022. Lá se vão 44 anos da compra do sofá.
- Amiga, deu ruim.
- Fala mais alto, não tô ouvindo bem. Primeiro era o ouvido esquerdo, agora são os dois. É a política? Vai dizer que você vai votar no...
- Nada disso.
- Então, diz.
- Estamos nos separando.
- Como assim, vocês estão perto das bodas de ouro.
- Pois é, devia ter tomado coragem antes.
- Te traiu?
- Durante anos. Um canalha.
- Poxa, o que deu no Maurício?
- Não sei nem quero saber. Mentiu até o fim, mas a vagabunda se entregou pelo celular. Nossos filhos e netos ficaram chocados. Eu quase matei a desgraçada e o sonso do Maurício saiu de fininho para um flat.
- Como você tá?
- Pensando bem foi bom.
- Não diga.
- Nunca me adaptei à cidade grande. Tô voltando aí para Agudos. Vida nova na casa velha.
- Conta com a gente. O Cris operou e está melhor.
- Posso pedir um favor?
- Dois. Só na sexta é que tô ocupada porque tem jogo do Brasil.
- Vai ver no sofá?
- Claro.
- É sobre isso.
- Desembucha.
- Eu quero o sofá de volta. Tenho saudade dele, era um tempo tão bom. O melhor da minha vida. Você me revende?
- Lógico, tenho certeza que o Cris concorda.
- Você não falha, Lu.
- Você lembra que o sofá tem que entrar pela janela, né? Não se preocupa, eu chamo o pessoal do içamento. O Cris tem o contato deles anotado.
- Amiga, sempre achei teu marido perfeito.
- Eu também.
As duas riem, como sempre.
É a Copa do Catar. O Brasil volta mais cedo pra casa e a vida continua.
Luciana passa a usar aparelho de surdez. Cristiano, recuperado da cirurgia, caminha cinco quilômetros por dia.
Fabíola vira vegana e recebe os netos paulistanos nas férias. Os meninos pedem pra dormir no sofá. Uma capa impermeável protege o sobrevivente. São 45 anos de acolhimento pra todas as gerações que pediram um pouco de conforto.
De Maurício nada sabemos. Se depender de Fabíola, vai dormir num sofá duro e gelado de uma sala qualquer. Longe, bem longe daqui.
Porém, justiça seja feita, sem Maurício não teríamos o sofá e nem a história.
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