CRÔNICA

De dia a gente senta, de noite a gente deita – Por Luis Cosme Pinto

Não importava peso ou tamanho, alegres ou tristonhos nele todos se acomodavam e a vida era muito mais confortável

Imagem ilustrativa.Créditos: Pixabay
Escrito en OPINIÃO el

- Nunca vi o Maurício tão feliz.  

- Por que o Brasil ganhou o jogo ontem na Copa, Fabíola?

- Nada disso.

- O que houve?

- Vou mostrar, Luciana. Olha a foto.

- Um sofá? É isso que está deixando seu marido tão alegre?

- Não é o sofá, é o contexto.

- Ih, essas palavras da moda dão nos nervos.  Antes desse tal de contexto me conta do sofá. Vai que o Cristiano também muda de humor com um desses? Vermelhão, né?

- Sim, de Sued. 

- Que isso? 

- Sued é um tecido, parece veludo. Só que é mais barato, não esquenta e pode lavar. Tem aos montes lá na capital. 

- Legal.

- Olha essa outra foto. O primo do Maurício, a mulher, os dois filhos e os dois cachorros vendo o jogo anteontem. Todo mundo no sofá. Maior festa no golaço do Roberto Dinamite. Toda hora o Maurício repete que agora tem lugar para receber as visitas.

- Quanto custou?

- Essa é a parte ruim, ainda bem que o Maurício dividiu em doze cheques e antes de fechar negócio me levou lá.

- E você?

- De início não queria. A gente já tem duas poltronas, fora as cadeiras da mesa de jantar. Então, o vendedor explicou. Sofá é caro porque leva madeira, espuma, ferragens, mas se for bem cuidado dura mais que casamento. Deu uma risadinha amarela e me convidou pra sentar. 

- E?

- Nunca me senti tão confortável. E sabe o que mais o vendedor falou?

- Não.

- Deita. Aí, quando eu ia deitar e o Maurício também, ele puxou a parte de trás. O encosto deslizou e formou uma cama de casal.

- Como é isso?

- É uma novidade. Chama-se sofá-cama. De dia a gente senta, de noite a gente deita. 

Roberto Dinamite e cheques pré-datados indicam que a conversa não é de hoje. E o sofá-cama, mesmo antigamente, só era novidade em Agudos, irmã caçula de Bauru.  

Fabíola, a dona do sofá, e Luciana – que agora liga de um telefone preto e pesado – conversam sem pressa. É uma tarde de junho de 1978, o ano da Copa da Argentina. Chegamos em terceiro.

- Outro dia quando liguei você disse que Maurício chorava de raiva por causa do sofá. Não entendi.

- De tão grande, o sofá não entrava no elevador e não passava na escada.

- E aí, Fabiola?

- Chamamos uma empresa de içamentos. Eles amarraram o gigante, que entrou pela janela. Só então o Maurício se acalmou.

- Sabe como a gente comemorou?

- No sofá?

- Como você me conhece, Lu. 

- E você reclamando?

- É que toda hora ele chama os amigos para assistir os jogos.  

- Qual o problema?

- Não gosto da bagunça, mas quando a galera se manda o sofá é só da gente..

Em tardes sossegadas, as jovens amigas se espalhavam no estofamento macio, agora de gorgurão azul-petróleo. Passavam as vidas a limpo e Fabíola brincava.

-Ah se o meu sofá falasse. 

Ganhou cera nos braços de madeira, um remendo na parte traseira e brilhou em mais uma festa de fim de ano. Todo mundo queria sentar nele.

Chegamos a 1984. É tempo das Diretas Já. Juntos no sofá, os casais vibram com a cobertura ao vivo dos comícios e depois esticam a noite com pizza, cerveja e algo mais.

Meses depois.  

- Lú, tô grávida de gêmeos!

- Uau, foi naquela noite que vocês falaram para o Cristiano e eu dormirmos no quarto que vocês iam ficar na sala?

- Acertou. Foi no sofá.

- Amiga, tô precisando mesmo de um sofá novo. Quem sabe o Cris não se anima e aumenta a família?

1990, Collor dá uma tunga no país inteiro, o calote cancela os planos de milhões de brasileiros e até a reforma completa do sofá fica pra depois.  

Na rotina do casal de gêmeos nada muda, as tardes de desenho animado são regadas a chocolate quente e biscoito recheado, tudo no sofazão da sala. Já os pais não deitam nele faz tempo. 

O século mudou, a Copa é a de 2002. Somos Penta.

- Lú, você sempre curtiu o sofá e se a loja lá de Bauru não tivesse fechado, você e o Cris já teriam comprado um igual, né?

- Nem fala.

- Então, se quiser eu te vendo. 

- Como assim? 

- Fica só entre a gente. O Maurício vai ser transferido para a capital, será gerente do banco. Eu consegui vaga como professora. É o mesmo colégio onde Gabriel e Gabriela vão estudar. 

- Parabéns. Ainda dá tempo de torcer pelo Brasil hoje, todo mundo aí no sofá? 

- Beleza. Sabe lá quando sentaremos juntas outra vez.

 - Eu levo sanduíche de metro.

O sofá acomodou a torcida de roupa nova: chenile verde com losangos laranja. Mais aconchegante, comentou o Maurício tentando abraçar a Fabíola.

Leitoras e leitores mais atentos lembram da piada infame do vendedor sobre casamento. Pois é, o homem tinha razão. Um bom sofá suporta tudo, já um casamento, nem sempre.

Assim começa a conversa vinte anos depois, em 2022. Lá se vão 44 anos da compra do sofá.

- Amiga, deu ruim.

- Fala mais alto, não tô ouvindo bem. Primeiro era o ouvido esquerdo, agora são os dois. É a política? Vai dizer que você vai votar no...

- Nada disso.

- Então, diz.

- Estamos nos separando. 

- Como assim, vocês estão perto das bodas de ouro.

- Pois é, devia ter tomado coragem antes.   

- Te traiu?

- Durante anos. Um canalha.

- Poxa, o que deu no Maurício?

- Não sei nem quero saber. Mentiu até o fim, mas a vagabunda se entregou pelo celular. Nossos filhos e netos ficaram chocados. Eu quase matei a desgraçada e o sonso do Maurício saiu de fininho para um flat.

- Como você tá?

- Pensando bem foi bom. 

- Não diga.

- Nunca me adaptei à cidade grande. Tô voltando aí para Agudos. Vida nova na casa velha.

- Conta com a gente. O Cris operou e está melhor.

- Posso pedir um favor?

- Dois. Só na sexta é que tô ocupada porque tem jogo do Brasil. 

- Vai ver no sofá?

- Claro.

- É sobre isso.

- Desembucha.

 - Eu quero o sofá de volta. Tenho saudade dele, era um tempo tão bom.  O melhor da minha vida. Você me revende? 

- Lógico, tenho certeza que o Cris concorda. 

- Você não falha, Lu. 

- Você lembra que o sofá tem que entrar pela janela, né? Não se preocupa, eu chamo o pessoal do içamento. O Cris tem o contato deles anotado. 

- Amiga, sempre achei teu marido perfeito.

- Eu também.

As duas riem, como sempre.

É a Copa do Catar. O Brasil volta mais cedo pra casa e a vida continua.

Luciana passa a usar aparelho de surdez. Cristiano, recuperado da cirurgia, caminha cinco quilômetros por dia.

Fabíola vira vegana e recebe os netos paulistanos nas férias. Os meninos pedem pra dormir no sofá. Uma capa impermeável protege o sobrevivente. São 45 anos de acolhimento pra todas as gerações que pediram um pouco de conforto. 

De Maurício nada sabemos. Se depender de Fabíola, vai dormir num sofá duro e gelado de uma sala qualquer. Longe, bem longe daqui. 

Porém, justiça seja feita, sem Maurício não teríamos o sofá e nem a história.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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