Sempre digo que cada homem é um machista em desconstrução dentro da sociedade patriarcalista e misógina em que vivemos. E não basta apenas ser um machista em desconstrução, mas também ser feminista, observando a violência muitas vezes aparentemente sutil que ocorre no dia a dia.
Na entrevista de Jair Bolsonaro (PL) ao Jornal Nacional, da Globo, na noite desta segunda-feira (22), essa violência "sutil" me saltou aos olhos logo na primeira intervenção da apresentadora Renata Vasconcellos. E veio não somente do presidente, a quem já acostumamos - sempre de forma indignada - aos arroubos autoritários em atos frequentes de misoginia.
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Em sua pergunta, a jornalista, de forma serena, indagou Bolsonaro se ele não se arrependia das chacotas que fez com os mais de 682 mil mortos durante a pandemia, quando dentre tantos absurdos imitou vítimas da Covid-19 com falta de ar. - assista ao vídeo.
Sem reposta, Renata insistiu na pergunta e foi interrompida por Bolsonaro que, diferentemente do que havia feito com William Bonner, elevou o tom de voz para silenciar a apresentadora num ato explícito de "manterrupting" - termo usado para definir a violência praticada por homens quando interrompem abruptamente as falas das mulheres.
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"Quando o senhor chama isso de politicamente incorreto, o senhor não se arrepende de seu comportamento, das frases que fez, imitando as pessoas com falta de ar, como falta de solidariedade às famílias...", disse Renata, interrompida por Bolsonaro.
"Você acabou de falar que eu não imitei a falta de ar e falou em falta de ar novamente", retrucou erguendo a voz que se sobrepõe a da jornalista.
"Presidente, minha pergunta é muito específica: o senhor se arrepende...", disse a jornalista, sendo interrompida mais uma vez. "Não tem quem não perdeu um parente, um amigo... Eu lamento as mortes, mas não deveria ser tratada a Covid da forma como começou a ser tratada", disse Bolsonaro.
Em seguida, é a vez de William Bonner cometer o ato de violência contra a colega de bancada. Ao propor mudar de assunto para a economia - diante da não resposta de Bolsonaro -, o jornalista comete o mansplaining (neologismo de "homem" e "explicação"), quando tenta explicar para Bolsonaro e para a própria apresentadora a pergunta que ela havia feito.
"Vamos falar de economia", diz Bonner, atraindo os olhares de Bolsonaro. Os dois, então, passam a ignorar a apresentadora.
Bonner prossegue: "Eu só queria observar, a Renata não retirou a observação sobre o senhor ter imitado as pessoas com falta de ar. ELA DISSE [destaque do editor] que o senhor imitou gente com falta de ar e que faltou também a falta de solidariedade. Foram as duas coisas", disse Bonner, "explicando" o que a própria colega de bancada afirmou, enquanto a apresentadora tentava falar e era ignorada pelos dois.
Em entrevista ao Fórum Café nesta segunda-feira (22), o psicanalista Luís Carlos Petry revela como Bolsonaro conversa com as entranhas de cada pessoa, com o ódio, a frustração e a violência reprimidas e que se expressam em atos de misoginia em uma sociedade estruturalmente machista e patriarcal.
Ao violentar a fala de Renata Vasconcellos, Bonner torna-se um espelho de Bolsonaro, refletindo toda a misoginia que o político nunca fez questão de esconder. Bonner, assim como Bolsonaro, é um machista. Mesmo que em desconstrução. E assim como cada um de nós, homens, deveria ficar atento para levar essa desconstrução até às violências aparentemente mais sutis, que se tornam invisíveis mesmo no telejornal de maior audiência do país. E que não deixam e não deixarão nunca de ser violências.
Assista ao show de machismo no JN no vídeo disponível na GloboPlay