DITADURA MILITAR

Série sobre delator Cabo Anselmo provoca náuseas, mas é imprescindível

“Em busca de Anselmo”, de Carlos Alberto Jr. mergulha com profundidade na história, sem medo de dar voz a um de nossos maiores canalhas

Minissérie Em busca de Anselmo.Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

Poucas obras vistas, lidas ou ouvidas vão deixar um gosto tão ruim na boca quanto a série “Em busca de Anselmo”, de Carlos Alberto Jr., em exibição no HBO Max. E o resultado indigesto se dá muito mais por ousadia e talento do diretor, que optou por abrir a câmera e deixar o personagem, um dos mais execráveis – talvez o mais – da história da nossa República, contar a sua história, matraquear e mentir à vontade.

E o ex-marinheiro José Anselmo dos Santos fala aos borbotões, ri debochadamente e conta, a cada momento em que é entrevistado, tanto no documentário quanto fora dele, uma história completamente diferente, em que tenta confundir o interlocutor. O espectador nauseado é convidado a montar um quebra-cabeça cada vez mais claro e nítido, que se desvenda com os trejeitos desprovidos de qualquer constrangimento e das mentiras do entrevistado.

Poucas vezes alguém conseguiu comprovar com tamanha competência e sem grandiloquência a total falta de caráter de um personagem. Cabo Anselmo é um crápula, delator que foi capaz de entregar até mesmo a ex-companheira, a militante Soledad Barrett, para ser morta pelos algozes do DOI-CODI. Fatos não comprovados até hoje dão conta que ela estaria grávida.

Cenas dele dando de ombros ao explicar com tamanha naturalidade o desenrolar dos fatos até chegar ao que se tornou, ou seja, um alcaguete sustentado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury – um dos grandes algozes daqueles tempos – são de embrulhar o estômago do mais comum dos criminosos.

Espectador não é poupado

Carlos Alberto Jr. não nos poupa de nada. Chega a filmar uma das comemorações anuais que se dão em torno da campa de Fleury, local onde encontramos outro personagem, o delegado Carlos Alberto Augusto. Considerado tutor de Cabo Anselmo, ele é suspeito de comandar sessões de tortura no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo durante a ditadura militar (1964-85).

Em junho do ano passado, Carlos Alberto, conhecido como ‘Carlinhos Metralha’, foi condenado pelo juiz Sílvio César Arouck Gemaque, da 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo, a 2 anos e 11 meses de prisão em primeira instância. Esta foi a primeira vez que um ex-agente da ditadura militar foi condenado por crimes políticos cometidos durante o regime em uma ação penal.

De acordo com depoimento do jornalista Percival de Souza, ele e Anselmo se tornaram “irmãos siameses” e passaram o resto da vida ligados umbilicalmente. O DOI-CODI arrumou na época um apartamento para o Cabo Anselmo em frente ao local em que morava Carlos Alberto, em São Paulo. De lá, ele gravava conversas que o cabo mantinha com “companheiros” da luta armada.

Ñasaindy Barrett

A série se desenrola ainda com depoimentos de vários militantes sobreviventes que descrevem relatos e mentiras do Cabo Anselmo. Entre eles, o de Ñasaindy Barrett, filha de Soledad, é um dos mais comoventes.

Como em um julgamento, em que são apresentados provas e depoimentos de todos os lados, a série “Em Busca de Ancelmo” coloca o espectador na posição de jurado. Ao analisar provas e contraprovas, contradições e mentiras mostradas, não resta a quem assiste outra opção a não ser condenar o personagem, junto com todos os seus comparsas, ao lixo da história.

Um documentário imprescindível, detalhista e profundamente sincero para qualquer um que queira entender nossa história recente. Um episódio longo que, infelizmente, ainda resiste, deixando tantos resquícios em nosso tempo presente.

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