TORTURA

Tortura Nunca Mais, por Chico Alencar

Esta última Semana Santa no Brasil ficou marcada por um assunto que é o oposto à fraternidade: a tortura

Ditadura assassina.Créditos: Arquivo Nacional
Escrito en OPINIÃO el

Chico Alencar*

A Semana Santa é um período em que as pessoas, religiosas ou não, em geral refletem sobre a fraternidade. Os laços familiares se estreitam e as amizades se reforçam.

Esta última Semana Santa no Brasil, porém, ficou marcada por um assunto que é o oposto disso tudo: a tortura.

Vieram à tona denúncias da situação pela qual passou a jornalista Miriam Leitão, que, na década de 70, aos 19 anos e grávida, foi posta numa cela escura em companhia de uma cobra jiboia num quartel do Exército no Espírito Santo. E surgiram palavras jocosas do deputado Eduardo Bolsonaro e do vice-presidente Hamilton Mourão, tentando fazer gracinhas com o episódio.

Foram comentários boçais, selvagens.

O presidente Jair Bolsonaro já tinha várias vezes defendido publicamente a tortura. Por ocasião de sua declaração de voto a favor da cassação do mandato da presidente Dilma Roussef, fez questão de homenagear como herói o mais notório torturador da ditadura, o coronel Brilhante Ustra, que foi chefe do DOI-Codi de São Paulo.

Ora, que heroísmo demonstra alguém que sevicia outra pessoa amarrada, pendurada num pau-de-arara e encapuzada? Ustra sequer ia à rua capturar supostos subversivos. Permanecia nas instalações militares, esperando suas vítimas, para ordenar as torturas (e, às vezes, participar pessoalmente delas). Onde estava a sua valentia?

Em circunstâncias que exigiram de fato ousadia física, diversos torturadores se mostraram especialmente covardes.

Um caso muito conhecido é o de Alfredo Astiz, um oficial da Marinha argentina que era uma espécie de Ustra daquele país – o torturador símbolo. Na Guerra das Malvinas, quando se viu diante de soldados profissionais ingleses, sua valentia foi pelo ralo. Deu ordens para que a unidade militar que comandava se rendesse sem disparar um só tiro. Sua ferocidade era só em relação aos presos.

O ser humano é o único animal que tortura seu semelhante – algo que nos deve levar a uma reflexão profunda. Lamentavelmente, a tortura é algo antigo na História da Humanidade. O saudoso Hélio Pellegrino tem um ensaio primoroso a respeito, intitulado “A burrice do demônio” (que pode ser encontrado na internet).

Nele, o psicanalista faz uma denúncia contundente da tortura e conclui: o torturador está condenado a se desumanizar; mesmo quando consegue seu objetivo e dobra o torturado, perde como ser humano.

O mais perverso na tortura não é o fato de ela causar intenso sofrimento físico em suas vítimas. É que, por meio dela, o algoz procura retirar da vítima a sua humanidade, tenta com que a dor física o faça renegar seus valores mais profundos. Aí reside a sua maior desumanidade.

No domingo de Páscoa Miriam Leitão publicou no jornal “O Globo” a transcrição de gravações demonstrando que os ministros do Superior Tribunal Militar (STM) conversavam sobre as denúncias de torturas que chegavam a seu conhecimento. Suas principais preocupações diziam respeito à possível deterioração da imagem da ditadura militar se os fatos viessem à tona.

Ora, uma das razões para o aparecimento do bolsonarismo no Brasil foi o fato de, com o fim da ditadura, não terem sido abertos os arquivos da repressão política e não se ter jogado luz sobre os chamados "Anos de chumbo". Se isso tivesse sido feito, com certeza teriam sido criados anticorpos na sociedade contra a repetição da barbárie.

Vale lembrar o exemplo do gigantesco Nelson Mandela na África do Sul. Líder maior da luta contra o regime racista, ele foi barbaramente torturado e esteve preso por 27 anos – a maior parte desse tempo em celas solitárias, o que, por si só, é uma tortura continuada. É quase um milagre que não tenha perdido a lucidez. Mandela teria todos os pretextos para se tornar uma pessoa ressentida.

Mas, não.

Quando a maré virou, o apartheid caiu e ele foi eleito presidente da República, uma questão crucial se apresentou: como reconciliar o país, tão destruído e com uma carga de ódio tão grande devido a décadas de um regime bárbaro e desumano? E o complicador maior era que a minoria branca (registre-se que nem todos os brancos apoiavam o apartheid) controlava as polícias e as Forças Armadas. O país tinha até bomba atômica.

Com o auxílio de outra figura maior, o bispo anglicano Desmond Tutu, Mandela buscou a saída para a reconciliação nacional: propôs anistia até mesmo aos assassinos e torturadores do regime racista. Mas com uma condição: eles teriam que se apresentar aos tribunais e confessar publicamente seus crimes. Se não o fizessem, seriam processados e condenados.

Foi uma enorme catarse no país. Sabia-se, por alto, das iniquidades acontecidas nos porões do regime. Mas naquele momento foi diferente: elas foram apresentadas nos meios de comunicação em horário nobre.

Ao fazer esta proposta, Mandela estava olhando para a frente. Tinha a compreensão de que, mais importante do que pôr na cadeira os torturadores, era impedir que a barbárie voltasse, criando anticorpos para tal. Tudo indica que isso foi conseguido.

A África do Sul continua com problemas sociais gravíssimos, mas a praga da tortura foi extirpada.

Faltou algo parecido no Brasil.

Tortura nunca mais!

*Historiador, professor e vereador no Rio de Janeiro pelo Psol