Ser conhecido em todos os continentes é uma condição especial que pouquíssimas pessoas têm. Ser conhecido pela sua produção intelectual é ainda mais especial. E essa é a condição de Dalmo de Abreu Dallari, um dos maiores juristas da América Latina e um dos nomes mais conhecidos da Ciência do Direito no mundo inteiro.
Professor catedrático da UNESCO na cadeira de Educação para a Paz, Direitos Humanos e Democracia e Tolerância e professor emérito da Faculdade de Direito da USP, sua trajetória acadêmica é dedicada a produzir um conteúdo científico na defesa da Democracia, do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais para a existência humana com dignidade.
A sua obra “Elementos de Teoria Geral do Estado” está na bibliografia das mais respeitadas faculdades de Direito da América Latina, além de ser citada em estudos globalmente. A sua experiência como docente atravessou os mares e na Universidade de Paris também se tornou docente.
Uma de suas bandeiras é o acesso à justiça e a ideia de que todos aqueles que são cidadãos em uma sociedade devem ter o acesso à justiça para pleitear os seus direitos, se defender de acusações e de fato viver a cidadania. Um defensor do Estado de Direito, mas que com sabedoria, também sempre criticou as falhas do Judiciário. A sua frase mais emblemática é “Justiça tardia é injustiça”. Protagonizou a edição épica do programa Provocações da TV Cultura, no qual apresentou essas críticas ao sistema Judiciário brasileiro.
Não há dúvidas de que Dalmo de Abreu Dallari pensa o Direito e elabora suas teorias tendo em mente um mundo onde todos serão cidadãos e os vulneráveis receberão a devida atenção do poder público e a devida proteção. Ouso dizer que um mundo defendido por Dalmo de Abreu Dallari é um mundo no qual eu gostaria de viver e é o mundo que eu sonho para os filhos e netos que eu ainda não tenho.
Ele sempre deixa claro que é um homem do Direito, que suas análises partem do seu lugar de cientista e que suas ideias não são contaminadas por questões partidárias. Portanto, ao analisar situações políticas do País do ponto de vista Jurídico, assim o faz como cientista. Ele foi uma voz contrária ao impeachment da presidente Dilma Rousseff e como o constitucionalista que é, usou a própria constituição para embasar seus argumentos contrários ao impeachment.
Por analisar as arbitrariedades e atrocidades feitas pela Ditadura Militar no Brasil e opinar sobre elas, ele foi perseguido dentro da própria Universidade de São Paulo. Na época da ditadura, ao dizer para seus alunos que o que aconteceu em 1964 no Brasil não foi uma revolução e sim um golpe de Estado, ele foi proibido de dar aulas durante um tempo na faculdade (mesmo sendo um livre docente concursado).
Como proibir um livre docente de lecionar cursos na USP era ilegal de acordo com as normas da Universidade, Dallari resolveu recorrer desta decisão. Uma condição foi imposta para que ele voltasse a dar aulas: seus cursos só aconteceriam no período noturno (pois a visão daquela época era a de que os alunos que estudavam nas turmas da noite eram mais pobres e não teriam grande influência no futuro do País). Anos depois de ter sofrido este boicote, se tornou presidente da Comissão da Verdade da USP, justamente para investigar crimes que foram cometidos dentro da universidade no período da Ditadura.
A Comissão da Verdade da USP foi criada em 2013, inspirada pela Comissão da Verdade Nacional. Seu intuito é examinar e esclarecer as violações aos direitos humanos praticadas contra docentes, alunos e funcionários da Universidade durante a ditadura, pois assim como Dallari, muitos foram punidos e perseguidos pelo o que ensinavam durante este período.
Diante de tudo o que ele representa para o mundo e para a democracia brasileira, não poderia deixar de entrevistá-lo na Revista Fórum. Principalmente neste momento tão delicado que o país enfrenta em meio a uma pandemia, que tem desafiado constantemente a nossa sociedade e a nossa organização social. Ouvi-lo é sempre necessário.
Considero este momento o ponto mais alto da minha carreira, pois muitos gostariam de entrevistá-lo, mas ele não tem dado entrevistas no momento. Eu me sinto privilegiada e agradeço a ele pela confiança em conceder esta entrevista.
Deixo aqui uma declaração de carinho a essa figura que é o Dalmo de Abreu Dallari, que faz parte da história da minha vida, pois muito antes de eu existir ele foi o padrinho de casamento dos meus pais Eunice e Celso. Então, ter feito esta entrevista com ele foi uma emoção difícil de descrever e explicar.
Com vocês, esse gênio das ciências humanas, esse paladino da democracia: o nosso Dalmo de Abreu Dallari.
Ana Beatriz Prudente – O senhor teve uma passagem notória pela política estudantil na Faculdade de Direito de USP. Ali começou sua trajetória na vida política? Na sua opinião, qual é o papel da política estudantil em um regime democrático?
Dalmo de Abreu Dallari – Na realidade, minha trajetória pela vida política teve início na Faculdade de Direito e foi a partir daí que fiz contato com o movimento estudantil mais amplo, vendo a importância que ele pode ter sob vários aspectos. O movimento estudantil é expressão da ação conjunta de estudantes, tendo influência nas relações no âmbito escolar mas também muito além dele. Antes de tudo, o movimento estudantil evidência a importância das ações conjuntas e tem o efeito de iniciação para ações coletivas, superando as limitações individuais no enfrentamento de injustiças e demonstrando a importância das ações grupais para as manifestações de críticas e sugestões, dando efetividades aos princípios e normas de uma sociedade democrática. Por tudo isso, o movimento estudantil tem grande importância para a construção e permanência de uma sociedade democrática.
Ana Beatriz Prudente – O senhor é autor da obra “Elementos de Teoria Geral do Estado” que é estudada em todas as áreas das Ciências Humanas no Brasil e em muitos países. Quando a escreveu, imaginava que seria esse grande sucesso?
Dalmo de Abreu Dallari – No ano de 1953 eu fui aluno do Professor Ataliba Nogueira, que ministrava a disciplina Teoria Geral do Estado no primeiro ano do bacharelado da Faculdade de Direito da USP. Ele tinha publicado um pequeno livro denominado “O Estado é meio e não fim”, que era a tese com a qual ele tinha conquistado a cátedra de Teoria Geral do Estado, sendo o primeiro professor dessa disciplina, que era nova na Faculdade. Ele tinha optado por essa disciplina porque não tinha conseguido ser catedrático de Direito Constitucional. Mas ele não dava grande
importância à Teoria do Estado, que considerava ser apenas uma introdução para o Direito Constitucional.
Por minhas leituras eu tinha considerado importante o conhecimento do Estado e de seu papel político e social. E tinha achado muito importante a obra de George Jellineck, citada com muita frequência, em sua versão em espanhol. Na biblioteca da Faculdade não havia um exemplar dessa obra, que também não encontrei nas livrarias de São Paulo. Por esse motivo, pedi a um colega que ia a Buenos Aires que procurasse esse livro é me trouxesse um exemplar, o que para minha alegria ocorreu. E pela leitura dessa obra cresceu meu interesse pela Teoria Geral do Estado.
Assim, decidi que iria ser professor de Teoria Geral do Estado como auxiliar do Professor Ataliba. E logo achei que deveria escrever um livro de Teoria Geral do Estado, que seria útil para mim e os meus alunos, como também para os professores que ministravam essa disciplina nas demais Faculdades de direito.
Assim nasceu meu livro “Teoria Geral do Estado”. Mas o sucesso do livro foi maior do que eu esperava e ele foi adotado em muitas Faculdades. Eu achei que ele seria útil aos professores da matéria, mas o seu sucesso foi muito maior do que eu esperava e hoje, para minha grande satisfação, ele já está na trigésima terceira edição.
Ana Beatriz Prudente – Como o senhor entende os efeitos da Globalização no exercício da Soberania pelos países?
Dalmo de Abreu Dallari – A globalização, no meu entender, é uma importante contribuição para a aproximação dos povos e o apoio recíproco. Ela é a expressão de uma colaboração entre os Estados, dando importante contribuição para que a competição entre os Estados seja convertida numa prática de cooperação. Isso tem grande importância para a aproximação entre os povos por meios pacíficos e com respeito recíproco, sem a condição negativa de dominantes e dominados.
Além de contribuir para a convivência pacífica dos povos, a globalização possibilita aos menos desenvolvidos o acesso aos progressos obtidos pelos mais desenvolvidos em diferentes áreas das atividades humanas, contribuindo assim para o desenvolvimento da convivência pacífica e a redução das desigualdades. A globalização possibilita a convivência pacífica, solidária e democrática, sem comprometimento da soberania dos menos desenvolvidos. Pode-se dizer assim que a globalização é uma contribuição para a paz mundial.
Ana Beatriz Prudente – A forma de Estado federativa adotada pelo Brasil garante autonomia aos estados membros da federação, no entanto nesta pandemia governadores exigem posicionamentos e providências do governo federal. Na sua visão, qual é o papel da União no combate à epidemia de Covid-19 no Brasil?
Dalmo de Abreu Dallari – Pelo que dispõe expressamente a Constituição brasileira, tanto a União quanto os Estados e Municípios têm responsabilidade na busca de efetivação da seguridade social. Nessa expressão estão compreendidos, como dispõe expressamente o artigo 194 Constituição, os direitos da cidadania relativos a saúde, a previdência e a assistência social. E, de acordo com artigo 195 da Constituição, a seguridade social será financiada mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, do Distrito Federal e dos Municípios.
No tocante à saúde, está em vigor uma Lei Orgânica da Saúde, que determina o apoio da União aos Estados e Municípios para que, em todo o território nacional e para todas as pessoas, seja assegurado o acesso aos cuidados e equipamentos necessários para a efetivação da protecional saúde.
No caso da epidemia de Covid-19 a responsabilidade é de todos, mas a União tem o poder e a responsabilidade de estabelecer normas protetivas para todo o território nacional. E nos casos de insuficiência dos meios e recursos de alguns Estados ou Municípios a União deve dar sua colaboração, inclusive fornecendo os meios ou financiando sua aquisição, para que a proteção seja assegurada a todos necessitados, em todo o território brasileiro.
Ana Beatriz Prudente – Na sua obra Elementos de Teoria Geral do Estado" (pág. 275 da 28° edição) o senhor reconhece os serviços prestados pela ONU como excelentes, mas anota serem necessárias mudanças na estrutura da organização. Quais seriam essas mudanças propostas pelo senhor?
Dalmo de Abreu Dallari – Mantenho integralmente a opinião positiva sobre a criação da ONU, pois em muitas circunstâncias sua interferência foi e tem sido muito positiva para a busca de solução pacífica dos conflitos entre os Estados, assim como para assegurar o respeito aos direitos dos Estados, sobretudo dos menos poderosos, e aos direitos fundamentais da pessoa humana. Mantenho a crítica ao poder de veto dado aos membros permanentes do Conselho de Segurança. Embora tenham ocorrido e ocorram algumas exceções, houve situações em que a interferência da ONU, condenando os abusos, teve efeito prático muito positivo. Isso poderia ocorrer em situações ainda pendentes, nas quais essa omissão em razão da situação privilegiada assegurada a alguns Estados, tem mantido violações de direitos moral e juridicamente injustificáveis.
Mas, em conclusão, continuo achando muito positiva a criação da ONU, assim como reconheço a importância de sua influência para a redução dos abusos dos Estados mais poderosos e também das discriminações sociais no interior dos Estados.
Ana Beatriz Prudente – O senhor foi o primeiro professor titular da disciplina de Teoria Geral do Estado da Faculdade de Direito da USP. Qual a importância dessa disciplina na ciência jurídica? E qual é a importância dela para a formação dos profissionais do Direito?
Dalmo de Abreu Dallari – A Teoria do Estado foi criada quando já estava superada a situação de poder superior, acima de qualquer limitação jurídica, das camadas superiores da sociedade. Afirma-se, então, a noção de poder jurídico associado ao poder político, ganhando então grande relevância a figura do Estado. Foi na sequência dessa inovação que se teve consciência da necessidade de disciplinar juridicamente o Estado, tornando claro e preciso o significado dessa expressão, para ter claras também a natureza política e jurídica desse centro de poder. Foi nessa circunstância histórica, na passagem do século dezenove para o século vinte, que o jurista alemão George Jellinek efetivou uma concepção dessa entidade que associava fatores políticos a limitações de natureza jurídica. Tendo em conta o papel muito relevante na vida das pessoas e das organizações sociais, torna-se de grande importância a fixação dos poderes e das limitações do Estado, sendo de fundamental importância sua disciplina jurídica. É necessário, então, conhecer o Estado, seus poderes, competências e limitações, para os que atuam na área jurídica.
Ana Beatriz Prudente – Hoje, os movimentos sociais aparecem com frequência na imprensa sempre pleiteando por direitos sociais. O senhor pode explicar aos nossos leitores qual é o papel dos movimentos sociais na construção das políticas públicas?
Dalmo de Abreu Dallari – Os chamados movimentos sociais são manifestações de pessoas de algum interesse comum, tendo objetivos diversos, como a apresentação de reivindicações, a expressão de críticas e objeções sobre temas e atos de interesse dos grupos ou de toda a sociedade, podendo também ser manifestações de apoio a atos e propostas de autoridades públicas ou mesmo de entidades ou dirigentes de segmentos privados, quando afetem ou possam afetar os interesses de grupos ou segmentos socais, ou então de toda a sociedade ou de um setor determinado.
Os movimentos sociais já tiveram muitas vezes e poderão ter muita influência sobre a orientação, as propostas e até mesmo as críticas expressadas ou sugeridas por entidades coletivas, públicas ou privadas, ou por seus dirigentes, que possam ter consequências sobre os direitos e interesses de toda a sociedade ou de setores ou grupos específicos.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.