Por Ana Laura Baldo, Ana Luísa Tibério e Beatriz Marques*
Em 2021, uma criança brasileira de apenas 10 anos de idade teve negado um pedido de aborto legal no país, após ter sido violentada por anos pelo tio. Na ocasião, a vítima recorreu a um hospital de referência de Vitória, no Espírito Santo, mas teve o direito à assistência médica negado. Após sofrer violência institucional pelas autoridades médicas e ser ofendida por pessoas que gritavam no lado de fora do hospital “assassina”, a criança obteve o apoio do Tribunal de Justiça do Espírito Santo e teve seu direito, previsto na lei brasileira, assegurado em outro estado brasileiro e assim pode interromper a gravidez fruto de um estupro.
O caso acima estampa o tratamento que é dado aos direitos reprodutivos das mulheres na América Latina, uma vez que mesmo asseguradas por lei, elas muitas vezes têm seus direitos negados para a realização de procedimentos como o aborto. Brasil, Argentina, México, Chile, são alguns dos países latino-americados em que - asseguradas pela lei - mulheres têm direito ao aborto em casos de gravidez em decorrência de violência sexual.
Ainda que muitas vezes o tema tenha sido tratado como uma questão estritamente jurídica e/ou, por vezes, criminal, o aborto é uma questão de saúde pública em todos esses países.A proibição do procedimento não faz desaparecer os casos, mas aumentam as chances de mulheres serem mortas ou presas por decidirem sobre suas vidas e seus próprios corpos. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre os anos de 2015 e 2019, foram registrados73,3 milhões de abortos seguros e inseguro no mundo. Desse total de abortos, na África e na América Latina, três em cada quatro procedimentos foram realizados de forma insegura.
Dada a situação acima mencionada, a articulação constante de movimentos feministas nos países da América Latina geraram frutos aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres da região mesmo durante o período de pandemia. No fim de 2020, sentenças históricas foram aprovadas, de forma a colocar o direito de decisão centrado na opção da mulher, como revela o caso da Argentina, em que a articulação do movimento feminista em torno da pauta do aborto gerou repercussão pelo mundo. Cabe destacar que o ocorrido na Argentina esteve ligado, tambémcom os esforços de coletivas feministas no Equador, marcados por marchas nas ruas na ultima quarta-feira (29/09), para exigir o aborto legal, seguro e gratuito e cuja frase é o slogan dos notórios “lenços verdes”. Esta é uma maneira de revelarmos a dimensão e a importância dos movimentos sociais feministas articulados transnacionalmente em torno da questão do aborto. Atualmente no Equador, se econtra em trâmite na Assembleia Nacional, uma lei que permite o aborto em caso de estupro.
A legalização do aborto na Argentina e no México
Os recentes acontecimentos com relação ao avanço dos direitos das mulheres na América Latina abriram caminho para a continuidade da chamada “Maré Verde” ou Marea Verde, denominação dada aos movimentos feministas que lutam pelos direitos reprodutivos das mulheres em todos os países latino-americanos.
Os panos verdes tomaram as ruas de Buenos Aires em 30 de dezembro de 2020, quando o Senado argentino aprovou a legalização do aborto no país. Já no México, essa conquista foi comemorada no inicio do mês de setembro de 2021, (07/09), quando a Suprema Corte do México declarou inconstitucional penalizar o aborto, abrindo as portas para que as mulheres de todo o país pudessem ter acesso a esse procedimento através de um recurso de amparo. Com isso, os movimentos feministas celebram os avanços na conquista dos direitos das mulheres, porém, ainda há muito o que ser feito para que os demais países da América Latina surfem na Marea Verde.
Na Argentina, a articulação incansável do movimento feminista, que luta pelos direitos reprodutivos das mulheres argentinas, Ni Una Menos, foi essencial para a decisão da legalização de aborto no país. O fato de aborto ser legalizado ou discriminalizado foi considerado um sucesso pois coloca como centro do debate a dignidade e autonomia das mulheres para decidir sobre a maternidade.
Marcha do movimento Ni Una Menos em Córdoba I Fonte: Brasil De Fato
A descriminalização do aborto no Chile
Já no Chile, na última terça-feira (28/09), a Câmara dos Deputados aprovou, por 75 a 68 e duas abstenções, a proposta de alteração do Código Penal que busca retirar as sanções para as mulheres que interromperem voluntariamente a gravidez nas primeiras 14 semanas de gestação. Com isso, o país deu um importante passo para aprovação da descriminalização do aborto.
O projeto e os votos favoráveis emanaram do Partido Comunista do Chile, que está atualmente no poder no país, e teve como objetivo assegurar a vida das mulheres chilenas. Como afirma Karol Cariola para a CNN, “Sou parteira e não gostaria que nenhuma mulher fizesse um aborto, mas a realidade em nosso país é que há muitas mulheres que abortam por motivos diversos, clandestinamente e sem proteção (...) É por isso que legislamos para a interrupção voluntária da gravidez em três causas, porém as demais são criminalizadas”.
A proposta ainda passará novamente pela Comissão da Mulher e Igualdade de Gênero, onde haverá uma deliberação sobre as iniciativas propostas no plenário. Em seguida, será submetida à aprovação no Senado. De toda forma, o dia 28 de setembro de 2021 está marcado na história do Chile, um dos países mais religiosos da região, pois neste dia milhares de mulheres ocuparam as ruas do país em defesa de um aborto legal, seguro e gratuito.
Perspectivas futuras: esperança e mobilização
A mobilização dos movimentos feministas nos países da região, conforme observado, é essencial para combater as políticas de gênero conservadoras do sistema patriarcal e resistência contra grupos que impedem o total asseguramento dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. O movimento argentino Ni Una Menos, que atua desde 2015 de forma constante e sistemática através de redes sociais e redes de advocacy revela uma forma de resistência pacífica e a importância de iniciativas para disseminação do tema doaborto na sociedade argentina.
Mais do que um debate sobre sermos “contra ou favor do aborto” ou sobre concepções religiosas e individuais, a luta pela legalização do aborto é a luta pela liberdade e pelo direito à vida das mulheres. E é por isso que a Maré Verde tem tomado tanta força e conquistado tantos feitos históricos no avanço dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na Argentina, México, Chile e no restante da América Latina. É como expressa a cantora franco-chilena Anita Tijoux em“Antipatriarca”:
“Pero no voy a ser la que obedece
Porque mi cuerpo me pertenece
Yo decido de mi tiempo
Como quiero y donde quiero
Independiente yo nací, independiente decidí
Yo no camino detrás de ti
Yo camino de la par aquí”
*Ana Laura Baldo é bacharel em Jornalismo pela Unochapecó (2021) e Fotojornalista. Ana Luísa Tibério é bacharel em Direito pela USP (2019) e graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP. Beatriz Marques é graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP. As três são pesquisadoras do GECI-PUC.
**Agradecemos Victória Perino pela revisão e comentários.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum