A maternidade é um fenômeno complexo que ultrapassa a biologia, englobando dimensões sociais, culturais, econômicas e emocionais. No Brasil e no mundo, ser mãe ocorre em um contexto marcado por expectativas tradicionais, desigualdades estruturais e desafios institucionais que afetam profundamente a vida das mulheres.
O fenômeno dos bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos em peso, textura e até cheiro — tem gerado debates intensos nas redes sociais. Mulheres autointituladas “mães reborn” compartilham rotinas de cuidado, como dar mamadeira e trocar fraldas, provocando reações que vão do apoio à crítica. Muitas alegam ser mal compreendidas, ao expor suas encenações de maternidade simbólica.
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Casos emblemáticos incluem uma jovem de 17 anos que levou seu bebê reborn a um hospital em Minas Gerais, alegando que o objeto “não estava se sentindo bem”, e um casal que disputa judicialmente a guarda de um simulacro de ser humano. Em ambos os casos, o engajamento financeiro e a monetização da experiência materna bizarra são evidentes.
Embora não seja especialista em saúde mental, ressalto que profissionais alertam para o uso equilibrado desses objetos, que podem servir como ferramentas terapêuticas, mas não devem substituir interações humanas reais. Apego extremo pode indicar carências emocionais ou dificuldades sociais e requer acompanhamento.
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Do lado terapêutico, bebês reborn auxiliam mulheres em luto perinatal, infertilidade e traumas emocionais, sendo adotados por hospitais e escolas de enfermagem para apoiar acolhimento e saúde mental perinatal.
Para artistas e colecionadores, essas bonecas representam uma forma de arte escultural, elaborada com técnicas minuciosas que reproduzem detalhes do corpo de um bebê real.
Mãe e maternidade: conceitos fundamentais
Diferenciar mãe e maternidade é essencial para o debate. Mãe é a pessoa que desempenha o papel de cuidadora e protetora, seja por vínculo biológico ou afetivo. Maternidade é o processo e a experiência de gerar, gestar, cuidar e educar uma criança, abrangendo responsabilidades, desafios e normas sociais que moldam essa vivência.
A maternidade vai além do biológico, sendo permeada por expectativas culturais que idealizam o papel materno, gerando pressões sobre como as mulheres devem agir e se dedicar aos filhos.
Enquanto o amor pode existir para bonecos, plantas ou pets, a maternidade verdadeira — função social e complexa — é exercida exclusivamente com seres humanos.
Reflexões e críticas
A partir dessa febre por bonecos, convido o leitor a refletir sobre a maternidade real. Como escreveu Lígia Moreiras, doutora em Saúde Coletiva e Ciências e conselheira da Presidência da República.
Criadora do perfil @cientistaqueviroumae no Instagram, ela critica a idealização da maternidade na sociedade, destacando como o "bebê perfeito" e a "mãe ideal" são, na verdade, fantasias que desconsideram os desafios reais da maternidade.
Lígia questiona o modelo de maternidade idealizada, que nega os aspectos humanos e difíceis da criação de filhos, como o cansaço, frustração e a interrupção dos próprios desejos e sonhos das mulheres.
Em sua reflexão, Lígia defende que a verdadeira maternidade é imprevisível e cheia de falhas, e que a sociedade precisa abandonar a busca por perfeição, aceitando a humanidade das mães em sua totalidade.
Outra crítica ao fenômeno dos bebês reborns vem da comunicadora, pesquisadora, humorista e ativista pelos direitos de mulheres, mães e crianças Barbara Tomaz. Por meio do seu perfil no Instagram @babithomaz postou um vídeo com uma sátira crítica sobre as dificuldades da maternidade.Ela aborda os desafios enfrentados pelas mulheres mães de forma provocativa e irônica.
A "Full Reborn Experience" oferece um pacote fictício que simula as adversidades da maternidade, incluindo violência obstétrica, depressão pós-parto, críticas de desconhecidos e dificuldades financeiras, como uma maneira de questionar e expor a falta de apoio real às mães. O conteúdo busca chamar atenção para o peso das expectativas e a desvalorização do trabalho reprodutivo, apresentando uma visão extrema das adversidades que mulheres podem enfrentar durante a maternidade.
Desafios da maternidade no Brasil
Apesar das rotinas simbólicas de algumas jovens, a maioria das mulheres enfrenta desafios estruturais profundos, especialmente no mercado de trabalho. Um estudo da FGV/IBRE, por exemplo, mostra que a maternidade reduz a participação feminina no mercado formal, acentuado para mães de crianças pequenas e agravado pela pandemia.
A “dupla jornada” — trabalho remunerado somado às tarefas domésticas e de cuidado — causa desgaste físico e emocional. Segundo a OMS, essa sobrecarga eleva o risco de problemas de saúde mental. Mulheres dedicam muito mais tempo ao trabalho doméstico não remunerado que os homens.
No Brasil, dados do IPEA apontam que, o simples fato de ser mulher leva a um acréscimo de 11 horas semanais no trabalho doméstico e nos cuidados não remunerado. A ausência de redes de apoio amplia o problema, tornando urgente políticas públicas que promovam a divisão justa de tarefas e suporte às mulheres.
Escassez de creches e desigualdade
Enquanto se brinca com creches para bebês reborn, a realidade para crianças reais é grave: 2,3 milhões de crianças até 3 anos não frequentam creches por falta de vagas, segundo levantamento do Todos Pela Educação (IBGE, 2023). Nas famílias mais pobres, 28% das crianças ficam fora das creches, contra 7% nas mais ricas, concentrando-se nas regiões Norte e Nordeste.
Há uma fila de espera de 632.763 crianças para vagas públicas, especialmente nas periferias e áreas rurais. O Índice de Necessidade de Creche da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal aponta que 4,5 milhões de crianças vulneráveis deveriam ter prioridade.
Violência obstétrica e depressão pós-parto
Violência obstétrica — abusos físicos, psicológicos e negligência durante o parto — afeta 25% das mulheres brasileiras, segundo dados da Fundação Perseu Abramo e pesquisas da Fiocruz. No SUS, 45% das mulheres relatam violência, e 30% em hospitais privados.
A depressão pós-parto afeta entre 25% e 26,3% das mães brasileiras, com fatores de risco como falta de apoio, histórico mental e estresse. Seus efeitos impactam o desenvolvimento da criança e podem perdurar na infância e adolescência.
Refletir sobre maternidade e bebês reborn é, na verdade, um convite para ampliar a compreensão sobre as múltiplas faces da experiência materna na contemporaneidade. Enquanto algumas mulheres encontram nesses objetos uma forma simbólica ou terapêutica de lidar com suas emoções, outras vivem desafios concretos e estruturais que clamam por atenção urgente.
Reconhecer a complexidade da maternidade — entre o simbólico, o emocional e o material — é fundamental para promover políticas públicas efetivas, combater preconceitos e construir uma sociedade que valorize e apoie todas as mulheres mães. Somente assim será possível superar as desigualdades e garantir que a maternidade seja vivida com dignidade, respeito e condições reais de realização pessoal e profissional.