VIOLÊNCIA

Comissão Arns denuncia à ONU violações de direitos das mulheres em situação de rua

Relatório entregue ao Comitê CEDAW aponta uma série de violências contra essas mulheres e pede por medidas de urgência

Mulheres em situação de rua são vítimas de uma série de violências.Créditos: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Escrito en MULHER el

A Comissão Arns apresentou um relatório na Organização das Nações Unidas (ONU), na quarta-feira (24), em que denuncia violações de direitos das mulheres em situação de rua no Brasil.

O documento, elaborado junto a movimentos sociais pela população em situação de rua, foi entregue ao Comitê CEDAW (Convenção pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, em porguês) e traz uma série de recomendações para resgatar os direitos dessas mulheres.

O comitê monitora o cumprimento das obrigações adquiridas pelos países que ratificaram a Convenção CEDAW para combater a discriminação de gênero. Apesar de o Brasil ter aderido ao tratamento em 2002, as organizações denunciam uma série de violações de diversos artigos da CEDAW nas cidades brasileiras, como o aumento do número de mulheres em situação de rua, que ficam ainda mais vulneráveis à discriminação e à violência, após a pandemia de Covid-19.

A socióloga e presidente da Comissão Arns, Maria Victoria Benevides, afirma que a apresentação do relatório abre um importante canal de diálogo para discutir o fenômeno a partir de outras perspectivas. “A causa dos movimentos de população de rua no Brasil chega à ONU em um momento crucial, especialmente no caso das mulheres, que são as mais prejudicadas e violentadas nessa hostil realidade de não ter uma casa”, diz.

Benevides aponta que há uma falta de dados coordenados e específicos de fontes oficiais sobre a população de rua, o que dificulta o diagnóstico da real extensão desse problema, que, partindo da violação ao direito à moradia, “coloca em xeque todos os direitos da pessoa humana, como acesso à saúde, à justiça e à dignidade”.

No caso das mulheres nessa situação, a realidade é ainda mais brutal: apesar de representarem entre 13% e 15% do total da população de rua no Brasil, elas são as vítimas de 40% dos casos graves de violência contra esse contingente. Porém, o documento ainda alerta que o dado corre o risco de apresentar um grau “nada desprezível” de subnotificação.

Diante desse cenário e a fim de retomar as obrigações estabelecidas na CEDAW, as entidades apresentam uma série de recomendações no relatório, como a criação de um censo nacional efetivo da população em situação de rua, com dados desagregados em gênero e raça e metodologia testada e aplicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

As organizações também pedem a implementação de instrumentos, campanhas, políticas públicas e planos voltados para a restauração da saúde integral e do acesso à justiça, além da reparação de direitos violados devido à negligência histórica do Estado. As propostas envolvem um trabalho conjunto com o Ministério da Saúde, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Ministério da Mulher e a Comissão Nacional de Justiça.

Dados da violência contra mulheres em situação de rua

Aumento dessa população

Com a pandemia de Covid-19, a população de rua aumentou significativamente devido à queda da renda familiar. De acordo com o DataSenado daquele ano, a renda de 68% dos brasileiros diminuiu devido à pandemia.

Essa realidade levou muitas pessoas a serem obrigadas a viver nas ruas. De acordo com um relatório feito pelo o Ministério dos Direitos Humanos, dos 5.568 municípios brasileiros, 3.354 tinham registro de pessoas em situação de rua em dezembro de 2022, o que dá uma média de 1 pessoa vivendo na rua em cada 100 mil habitantes. No Distrito Federal, essa média sobe para 3 pessoas. 

O relatório da Comissão Arns mostra que o perfil da população de rua mudou com a pandemia, o que havia sido alertado por pesquisadores, e o contingente passou a ser composto majoritariamente por mulheres, sozinhas ou levando consigo filhos, crianças e adolescentes, idosos.

"A falta de programas de proteção e (re)inserção social para mulheres que são chefes de família sem-teto, vivendo das sobras do que encontram na rua ou tendo que colocar seus filhos para pedir dinheiro nas esquinas e nos faróis, constitui falha gravíssima do sistema de proteção social no Brasil, que ainda tende a lidar com essa problemática sem levar em conta o corte de gênero", afirma o relatório. 

A comissão ainda ressalta que o problema maior é que a desassistência para a mulher em situação de rua frequentemente atinge as crianças e os idosos que convivem com ela. "O contexto de pobreza extrema e violência é centrado nas mulheres, que, em sua maioria, são o alicerce dos filhos em situação de rua. Sua posição econômica e social extremamente vulnerável também repercute na família próxima e estendida, que é submetida às agruras de viver na rua", acrescenta o documento.

Violência de gênero

Além do sofrimento psicológico, mulheres em situação de rua ainda sofrem com violência física e sexual. A Comissão Arns recolheu relatos de mulheres que carregam no corpo as marcas das violências: afundamento de crânio por golpe de madeira de dois homens, 18 pontos no nariz resultado da mordida de um outro homem que não aceitou uma recusa a uma relação sexual; cicatrizes de queimadura de cigarro, facadas e escoriações por ter sido arrastada no asfalto pelo ex-companheiro. 

Ao procurarem a justiça, encontram mais um "obstáculo insuperável", segundo a comissão. Uma das mulheres contou aos ativistas que, ao procurar uma Delegacia de Mulher para registar um incidente de violência, foi informada que nada poderia ser feito, pois não haveria meios de se instaurar uma medida protetiva uma vez que ela não possuía endereço fixo. 

Como forma de aguentar ou evitar essas violências, as mulheres recorrem às drogas para se manterem em permanente estado de alerta ou se insensibilizarem. Paradoxalmente, se os homens são majoritariamente os abusadores, na rua, ter um companheiro de relacionamento é também o que garante alguma segurança: “A mulher que mora na rua precisa escolher seu estuprador, seu agressor, que vai defendê-la de outros agressores e estupradores”, disse em relato uma das mulheres atendidas pela comissão.

Direitos reprodutivos violados

Além da violência psicológica, física e sexual, essas mulheres também enfrentam mais um ataque, ao terem seus direitos reprodutivos violados. Segundo a Comissão Arns, é recorrente o relato de que, ao darem à luz, mulheres em situação de rua puderam sequer amamentar suas crianças. A destituição precoce de bebês é prática comum realizada em hospitais e, muitas vezes, é orientada por órgãos da Justiça como o próprio Ministério dos Direitos Humanos.

"O acúmulo de interseccionalidades para a mulher em situação de rua, incluindo mulheres trans, evidencia a inexistência de uma atenção especial à saúde integral, desconhecendo-se as etapas e especificidades do ciclo reprodutivo, que passam pelo acesso aos contraceptivos, atenção ao pré-natal e parto, amamentação, atendimento ao aborto legal e até mesmo à dignidade menstrual", declara o relatório.

Para maior acesso aos dados, relatos e reivindicações, acesse a íntegra do relatório aqui.