O trabalho de cuidado e o trabalho doméstico são duas formas de atividades que envolvem cuidar de pessoas e da gestão e manutenção de uma casa, mas com focos e características ligeiramente diferentes. Em muitas culturas e sociedades, inclusive na brasileira, os dois tipos de tarefas são feitas, principalmente, por mulheres. Ambos são, em geral, subvalorizados, invisibilizados e não remunerados.
O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023, "Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil" trouxe para a pauta nacional a questão do trabalho de cuidado e mostrou que há uma enorme confusão com o trabalho doméstico.
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Esse tipo de trabalho consome 9,6 horas a mais das mulheres. Nós, mulheres, dedicamos, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas, enquanto os homens dedicam apenas 11,7 horas. Os dados, referentes a 2022, são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada em agosto de 2023 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A divisão desigual dessas responsabilidades, de cuidado e doméstica, é um tema central nas discussões sobre equidade de gênero e direitos trabalhistas. Por isso é importante entender a diferença entre essas duas formas de trabalho.
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Trabalho de Cuidado
O trabalho de cuidado se refere às atividades relacionadas ao cuidado de pessoas, geralmente familiares, que precisam de assistência e atenção devido a problemas de saúde, idade avançada, incapacidades ou outras necessidades especiais.
Inclui tarefas como cuidar de crianças, idosos ou membros da família com deficiências, ajudando-os com banho, alimentação, vestimenta, administração de medicamentos, transporte para consultas médicas, entre outros.
O trabalho de cuidado é frequentemente emocional e requer compaixão, paciência e habilidades específicas para lidar com as necessidades e emoções das pessoas cuidadas.
Pode ser realizado por membros da família, principalmente as mulheres, ou cuidadores e cuidadoras profissionais.
Trabalho Doméstico
Já o trabalho doméstico refere-se às tarefas relacionadas à administração e manutenção da casa em si, independentemente das necessidades de cuidado de pessoas.
Isso inclui tarefas como limpeza da casa, lavanderia, preparação de refeições, compras de supermercado, manutenção de jardim, limpeza de piscina, e assim por diante.
O trabalho doméstico é mais voltado para as atividades de gestão do lar e não necessariamente envolve o cuidado direto de indivíduos.
Pode ser realizado por membros da família, principalmente mulheres, ou empregados domésticos contratados, contigente majoritariamente feminino e negro.
Mulheres negras são maioria das trabalhadoras domésticas e de cuidados
A divisão de responsabilidades no trabalho de cuidados e doméstico no Brasil não apenas reflete desigualdades de gênero e classe, mas também é profundamente afetada por desigualdades raciais.
As mulheres negras desempenham um papel significativo na prestação de cuidados no país, tanto no trabalho doméstico não remunerado realizado em seus lares quanto no trabalho remunerado.
As mulheres representam 92% das pessoas ocupadas no trabalho doméstico no Brasil, das quais 65% são negras. Além disso, a maioria está acima dos 40 anos e tem renda média inferior a um salário mínimo. Este é o perfil básico dessas trabalhadoras, divulgado pelo Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese) em abril de 2022.
Uma nota do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) de março deste ano cita dados da PNAD Contínua, do IBGE, em 2019, quando as mulheres dedicavam em média 21,7 horas por semana ao trabalho doméstico não remunerado, enquanto os homens dedicavam 11 horas.
Entre as mulheres brancas, essa média era de 21 horas por semana, enquanto entre as mulheres negras, era de 22,3 horas por semana. Embora essa diferença possa parecer pequena, ao longo de um ano, as mulheres negras realizam quase 68 horas a mais de trabalho de cuidados não remunerados do que as mulheres brancas. Isso equivale a uma semana e meia adicional de trabalho por ano, considerando a jornada legal de 44 horas semanais.
A falta de tempo é uma realidade enfrentada diariamente pelas mulheres, conforme revela a PNAD Contínua em 2021. Cerca de 30% das mulheres em idade ativa não estavam procurando emprego devido às suas responsabilidades com filhos, familiares ou afazeres domésticos.
Em contraste, essa proporção entre os homens era de apenas 2%. Além disso, os dados indicam que essa realidade impacta de forma mais severa as mulheres negras, com 32% delas impossibilitadas de ingressar no mercado de trabalho devido a responsabilidades com cuidados, enquanto entre as mulheres brancas, esse número era de 26,7%.
Envelhecimento da população brasileira
Outro aspecto que tem que ser considerado no debate sobre trabalho de cuidado e doméstico é o envelhecimento da população brasileira. De acordo com o Censo 2022, em dez anos, a parcela de pessoas com 60 anos ou mais passou de 11,3% para 14,7% da população.
Esses dados representam um aumento de cerca de 9 milhões de idosos no país. Entre os motivos para o envelhecimento da população brasileira, é possível destacar o avanço da medicina, já que as pessoas podem realizar a prevenção médica com maior cuidado. Além disso, a redução da taxa de fecundidade colaborou para esse cenário, ou seja, os indivíduos não têm tantos filhos como antigamente e, por isso, houve uma redução do número de jovens no país.
Nesse cenário, aumenta a demanda por serviços e políticas públicas voltadas para atender a população idosa e aliviar a sobrecarga do trabalho de cuidado.
Patriarcado capitalista
O patriarcado é um sistema que ordena as relações sociais, políticas, econômicas, e até mesmo simbólicas, tendo como base o homem como aquele que detém o exercício do poder, a autoridade moral e o controle dos valores e sentidos.
O conceito de patriarcado é compreendido como o poder que o homem exerce por meio dos papéis sexuais sobre as mulheres e é constituído junto com as sociedades de classes.
O patriarcado é anterior ao modo de produção capitalista, mas nele assume formas singulares de existência. Essa existência tão antiga do patriarcado, assim como as diversas faces que ele assume na história, vale-se das diferenças culturais, históricas e de classes para se perpetuar.
Na sociedade capitalista, o patriarcado se adequa às relações econômicas e pessoais que operam mudanças significativas na vida das mulheres.
Divisão sexual do trabalho
As mulheres ainda são, em grande medida, educadas, ao longo de toda a vida, para ocupar o espaço privado/doméstico e deixar o mundo público/político a cargo dos homens. A chamada “divisão sexual do trabalho” é uma forma de organização típica da sociedade brasileira e de muitas outras sociedades.
De acordo com essa divisão, os homens são prioritariamente associados à esfera produtiva – isto é, o mundo do trabalho remunerado - e as mulheres à esfera reprodutiva – todo o trabalho de reprodução humana, de cuidado, de afeto, alimentação, limpeza e as demais atividades domésticas necessárias para que as pessoas se mantenham vivas e possam participar das outras esferas sociais: a educação, o trabalho, a política etc.
Ainda que os papéis de gênero tradicionais - comportamentos, atitudes e modos de pensar que associam a mulher à casa e o homem ao espaço público - estejam se alterando, a mudança é muito lenta, por envolver padrões reproduzidos ao longo de gerações.
Não apenas a família, onde começamos a incorporar esses papéis, mas também a escola, as empresas, a mídia e as demais instituições sociais contribuem para que esses padrões tradicionais sejam mantidos.
Assim, as pessoas em geral acreditam que esses padrões sejam determinados pela natureza e imutáveis, ou seja, decorrentes de nossos atributos biológicos. O reconhecimento de que os papéis de gênero são construções sociais e que variam entre culturas e ao longo do tempo é fundamental para o aumento do número de mulheres na política.
Teoria da Reprodução Social: o marco teórico
Na academia, a divisão sexual do trabalho, o patriarcado capitalista e o trabalho de cuidado e doméstico, são objetos de estudo da Teoria da Reprodução Social (TRS). Esse campo de pesquisa surge a partir de debates que remontam aos primórdios do capitalismo e ressurgem nas décadas de 1950 e 1960, especialmente nos EUA e na Europa Ocidental. O foco principal é entender a relação entre gênero e classe no contexto capitalista.
A TRS se destaca ao desafiar a visão dualista predominante na academia, que separa a luta de classes da luta de gênero. Busca uma compreensão unificada e sistêmica desses fenômenos complexos, superando a ideia de que o capitalismo e o patriarcado são independentes.
Ao invés de separar a economia das esferas cultural, política e social, retratando o capitalismo como pertencente à primeira, enquanto o patriarcado estava associado às últimas, a representa um esforço contínuo para compreender as dinâmicas de poder na sociedade contemporânea, integrando gênero e classe em uma análise mais abrangente.
Para saber mais
Dicionário Crítico do Feminismo, Editora UNESP
Nota informativa MDS, 2/2023
Teoria da Reprodução Social: apontamentos para uma perspectiva unitária das relações sociais capitalistas