Durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), estima-se que mais de 70 milhões de pessoas tenham morrido, entre civis e militares. O fim do conflito completa 80 anos este ano e redesenhou o mapa geopolítico mundial, deu origem à Guerra Fria, à Organização das Nações Unidas (ONU) e acelerou o processo de descolonização em diversas partes do mundo.
Enquanto o mundo enfrentava escassez de tecidos e racionamento de insumos, uma figura surgiu nas telas de cinema desafiando a sobriedade da época com cor, humor e exuberância: Carmen Miranda.
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Nascida em 9 de fevereiro de 1909, em Marco de Canaveses, Portugal, Maria do Carmo Miranda da Cunha — eternizada como Carmen Miranda — migrou ainda bebê, aos 10 meses de idade, com a família para o Brasil em 1910, estabelecendo-se no Rio de Janeiro, onde cresceu e iniciou sua carreira artística.
Entre as décadas de 1930 e 1950, brilhou no rádio, no teatro de revista, no cinema e na televisão, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Reconhecida por sua voz marcante — eleita a 15ª maior da música brasileira pela revista Rolling Stone — Carmen também se tornou um símbolo internacional do Brasil, personificando o tropicalismo exuberante que a consagrou em Hollywood.
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Seu figurino excêntrico, com turbantes enfeitados por frutas e acessórios extravagantes, rendeu-lhe o apelido de “Brazilian Bombshell” e consolidou sua imagem como uma das artistas mais influentes da Era de Ouro do cinema.
Radicada nos Estados Unidos desde 1939, a cantora e atriz brasileira tornou-se uma das maiores estrelas da 20th Century Fox e símbolo da política de Boa Vizinhança entre os EUA e a América Latina.
Seus figurinos chamativos — com turbantes de frutas tropicais, babados, plataformas altíssimas e colares multicoloridos — representavam uma versão estilizada e exportável da “brasilidade”, criada para o consumo hollywoodiano e apresentada ao mundo como expressão de uma América Latina exótica, alegre e aliada.
Diplomacia cultural e influência fashion
Enquanto as mulheres estadunidenses usavam utility dresses padronizados, de cortes retos e pouca ornamentação, Carmen Miranda encarnava o oposto: cor, abundância e tropicalismo performático. Sua estética funcionava como válvula de escape simbólica em meio ao racionamento, oferecendo ao público uma fantasia visual otimista.
Tornou-se uma “embaixadora informal” do Brasil, promovendo uma imagem vibrante e amigável da América Latina — embora baseada em uma caricatura cultural. Seus figurinos, inspirados no samba e no vestuário afro-baiano, foram reelaborados para atender à lógica do entretenimento hollywoodiano. Foi a artista mais bem paga da Fox e chegou a ser recebida na Casa Branca por Franklin D. Roosevelt.
Carmen influenciou a moda com seus turbantes, brincos de argola, pulseiras exageradas e vestidos de tecidos vibrantes. Seu estilo tornou-se tendência em bailes, carnavais e campanhas publicitárias de guerra, com desdobramentos tanto na moda estadunidense quanto latino-americana.
Apesar do sucesso, enfrentou críticas no Brasil, acusada de “americanizar” sua arte e promover uma imagem simplificada da cultura nacional. Ela mesma expressou desconforto com os papéis limitados que lhe eram oferecidos em Hollywood. Ainda assim, sua trajetória mostra como a moda pode ser instrumento de política externa, diplomacia cultural e afirmação de identidade — mesmo em tempos de guerra.
Foi a primeira artista latino-americana a receber uma estrela na Calçada da Fama e permanece, até hoje, um ícone da cultura pop. Sua imagem — entre o samba e o soft power — sintetiza os paradoxos de uma era em que até o vestuário se tornava campo de disputa simbólica e política. Num tempo de racionamentos e resistência, Carmen dançava com um cacho de bananas na cabeça e dizia ao mundo que o trópico também tinha voz, poder simbólico e força estética.
Morta em Beverly Hills em 5 de agosto de 1955, Carmen Miranda permanece como um ícone da diplomacia cultural latino-americana e da identidade brasileira no exterior.
Ecos da Segunda Guerra Mundial nos guarda-roupas do mundo
Bettmann/Getty Images
A Segunda Guerra Mundial redesenhou profundamente não apenas o mapa geopolítico global, mas também a cultura material — e, com ela, a moda. Em um mundo tomado por racionamentos, deslocamentos em massa e reorganizações sociais, o vestuário refletiu as tensões da guerra, operando como instrumento de funcionalidade e resistência simbólica.
Com tecidos controlados pelos governos e a produção voltada ao esforço de guerra, o vestuário feminino adotou formas mais sóbrias e práticas: cortes retos, saias mais curtas, ombros marcados e abandono dos excessos decorativos. Surgia a “moda utilitária” — imposta por necessidade, não por tendência.
Batom vermelho e remendos
Mesmo com os severos racionamentos de tecidos e produtos de beleza, a criatividade floresceu como forma de resistência e afirmação da individualidade — especialmente entre as mulheres. A escassez de matérias-primas impôs restrições drásticas à indústria da moda, mas não conseguiu apagar o desejo por expressão estética.
Vestidos passaram a ser confeccionados com retalhos, cortinas ou tecidos reaproveitados de peças antigas. A prática do “make do and mend” (faça e conserte), promovida em campanhas governamentais no Reino Unido e nos Estados Unidos, incentivava a remendar, ajustar ou transformar roupas usadas, reforçando a ideia de que criatividade era também um gesto patriótico.
A maquiagem também foi reinventada. Diante da falta de batons, blushes e delineadores, muitas mulheres passaram a usar alternativas caseiras: beterraba para ruborizar as bochechas e os lábios, carvão para os olhos. Nesse contexto, o batom vermelho — especialmente o tom “Victory Red”, lançado pela marca Elizabeth Arden a pedido do governo dos EUA — tornou-se um símbolo de moral elevado, patriotismo e força feminina. Usar batom vermelho era, paradoxalmente, um gesto político: demonstrava coragem, dignidade e determinação frente à guerra.
Acessórios como lenços coloridos também ganharam força, usados para esconder cabelos sujos ou proteger penteados durante o trabalho em fábricas. Eles não só eram funcionais, mas viraram elementos estéticos importantes, como exemplifica o ícone cultural Rosie the Riveter. Assim, a moda, ainda que limitada materialmente, se manteve como um espaço de invenção simbólica e reafirmação do eu — mesmo em meio ao caos global.
O vestuário como reflexo político global
A entrada do Brasil na guerra em 1942 e o envio da Força Expedicionária Brasileira (FEB) à Itália em 1944 influenciaram o imaginário nacional. O uniforme dos pracinhas — jaquetas pesadas, capacetes estadunidenses e o símbolo da cobra fumando — tornou-se ícone de patriotismo. Com a dificuldade de importar tecidos e moldes europeus, fortaleceu-se a indústria têxtil nacional, e a estética tropical — representada por Carmen Miranda — ganhou destaque.
Nos Estados Unidos, a racionalização do vestuário deu origem aos utility dresses, enquanto Hollywood mantinha viva a aparência glamourosa mesmo com restrições. A escassez de nylon levou ao uso das “meias líquidas” desenhadas na pele, e a cultura do “faça você mesma” foi incentivada por revistas femininas como ato de patriotismo.
Na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a estética aproximou-se do militarismo — com cortes retos, tecidos pesados e tons neutros. O consumo foi limitado por cartões de racionamento e produção estatal centralizada, refletindo a ideologia do regime.
A China, sob ocupação japonesa, enfrentou forte escassez de matérias-primas como seda e algodão. O tradicional qipao foi simplificado, priorizando conforto e durabilidade. Alfaiates improvisavam com tecidos variados, adaptando a moda às condições de penúria.
Do racionamento ao glamour: a virada estética do pós-guerra
O fim da guerra marcou uma guinada. Em 1947, Christian Dior lançou o “New Look” — com saias amplas, cinturas marcadas e ombros suavizados — em contraste com a austeridade anterior. Esse retorno ao glamour impulsionou a recuperação da indústria têxtil e reconsolidou Paris como centro da moda internacional.
Nos anos 1930, antes da guerra, a moda havia sido marcada por luxo, evasão e influência hollywoodiana. Estilistas como Chanel e Schiaparelli já promoviam a modernização do vestuário feminino. A guerra, no entanto, alterou radicalmente esse cenário. O vestir deixou de ser apenas estética: tornou-se linguagem política, campo de disputa e prática de sobrevivência. Cada bainha encurtada ou uniforme improvisado carregava os sinais de um mundo em transformação.
A década de 1950 marcou uma transformação significativa na moda global, especialmente no período pós-Segunda Guerra Mundial. Com o fim do racionamento de tecidos e a retomada da indústria têxtil, surgiram estilos que celebravam a feminilidade e a elegância.
Além da alta-costura, a moda cotidiana também evoluiu. Vestidos de algodão com estampas florais, saias lápis e blusas com golas Peter Pan tornaram-se populares. A influência do cinema e das celebridades, como Audrey Hepburn e Marilyn Monroe, também moldou as tendências, popularizando estilos como o vestido de coquetel e o uso de acessórios como luvas e chapéus.
A era das fibras sintéticas
A década de 1950 também foi marcada pela introdução de fibras sintéticas na moda. Durante o conflito, algodão, seda e lã foram destinados ao uso militar, incentivando o desenvolvimento de fibras sintéticas — derivadas do petróleo — que dominaram a moda civil no pós-guerra:
- Poliéster: Criado no Reino Unido nos anos 1930 e popularizado pela DuPont como Dacron. Barato, resistente e de secagem rápida, tornou-se símbolo da praticidade industrial.
- Nylon: Originalmente usado em paraquedas, passou a compor meias, lingeries e roupas esportivas.
- Acrílico: Alternativa à lã, mais leve e econômica.
- Elastano (Lycra): Lançado em 1958, revolucionou roupas íntimas e esportivas com sua elasticidade.
Materiais como o poliéster e o nylon começaram a ser utilizados em larga escala, oferecendo praticidade e durabilidade às roupas. Esses tecidos permitiram a criação de peças mais acessíveis e fáceis de cuidar, democratizando a moda e atendendo à crescente demanda do mercado consumidor.
Do glamour ao impacto ambiental: os legados duradouros da moda pós-guerra
A moda do pós-guerra não apenas refletiu o espírito de reconstrução de um mundo devastado, mas também lançou as bases para o sistema de consumo acelerado que hoje domina a indústria global. A popularização das fibras sintéticas — como o poliéster, o nylon e o acrílico — tornou possível a produção em massa de roupas acessíveis, leves e duráveis, alimentando a promessa de democratização do vestir. Esse avanço técnico, no entanto, trouxe consigo uma nova dependência: a da indústria petroquímica, com todas as suas implicações sociais, econômicas e ambientais.
Enquanto o “New Look” de Dior anunciava o retorno do glamour, tecidos derivados do petróleo vestiam a emergência de uma sociedade pautada pela praticidade, pela velocidade e pela padronização. Foi nesse cenário que nasceram o prêt-à-porter — roupas produzidas em série, com tamanhos padronizados e disponíveis para compra imediata — o consumo de moda como expressão de identidade e, mais tarde, o fast fashion.
Décadas depois, os efeitos colaterais desse modelo se tornariam impossíveis de ignorar. Já nos anos 1960, as primeiras críticas ao descarte têxtil e à poluição causada pelas fibras sintéticas acendiam um alerta que se intensificaria nas décadas seguintes — até atingir os alarmes atuais da crise climática.
Hoje, diante dos lixões têxteis que se acumulam em desertos e mares, dos ciclos de consumo cada vez mais curtos e da sobrecarga ambiental, os movimentos por uma moda ética, sustentável e decolonial resgatam o espírito criativo e adaptável que marcou a moda durante a guerra. Um lembrete de que o vestir, mais do que estética, é também gesto político — e que o futuro da moda talvez esteja, novamente, em repensar os excessos do presente.
Assim como a Segunda Guerra Mundial moldou os corpos e os tecidos de sua era, cabe agora à moda do século XXI costurar novos caminhos — com consciência histórica, responsabilidade social e urgência ambiental.