NÃO COR

Quem é a "Rainha do Bege"? Disputa de influenciadoras ganha os tribunais nos EUA

Duas jovens famosas no mundo digital brigam pelo título de quem é mais sem graça nas redes sociais; tendência “sad beige” é um choque cultural para os coloridos latinos

Disputa de influenciadoras ganha os tribunais nos EUA.Duas jovens famosas no mundo digital brigam pelo título de quem é mais sem graça nas redes sociais.Créditos: Fotomontagem (Instagram)
Escrito en MODA E POLÍTICA el

Uma batalha inédita entre influenciadoras digitais dos EUA promete redefinir os limites da propriedade intelectual no universo online. A disputa entre duas jovens mulheres privilegiadas envolve o direito de ser a “rainha do bege triste”.

A disputa parece distante da realidade brasileira e latino-americana. Afinal, em geral, somos povos conectados com a nossa realidade repleta de cores vibrantes.

O caso judicial

Sydney Gifford, 24, construiu uma audiência significativa no Instagram e TikTok ao promover produtos com estética minimalista pelo programa de influenciadores da Amazon. Alyssa Sheil, 21, segue uma abordagem semelhante, e destaca sua preferência por tons terrosos como um elemento de relaxamento em sua vida e espaços. 

As duas se conheceram em 2022, mas o relacionamento profissional terminou após desentendimentos pessoais. A decisão de Sydney em processar Alyssa ocorreu após seguidores relatarem semelhanças entre os conteúdos de ambas.

Em abril de 2024, Sydney Nicole Gifford, conhecida por sua estética minimalista em tons neutros, entrou com uma ação judicial contra Alyssa Sheil, alegando plágio de seu estilo “sad beige” (leia abaixo). 

O caso será avaliado por uma corte distrital do Texas ainda este ano, marcando um precedente para questões ligadas às 'estéticas digitais' nos tribunais.

A petição de Sydney Gifford inclui mais de 60 páginas de evidências, apontando similaridades entre os conteúdos postados por Alyssa Sheil e seu próprio trabalho. 

Reprodução processo
Reprodução processo

As acusações abrangem uso de roupas e acessórios nas mesmas tonalidades, poses, enquadramentos fotográficos e até estratégias comerciais semelhantes. 

Para Sydney, Alyssa violou leis de direitos autorais e cometeu “apropriação indevida” e “práticas injustas de competição”.

Apesar da aparente banalidade da disputa, o caso tem levantado debates profundos sobre os limites da originalidade no mundo digital. 

A defesa de Alyssa Sheil refuta as acusações, alegando que seus conteúdos foram desenvolvidos de forma independente. Seus advogados criticam a ação como um "precedente preocupante" para a liberdade criativa no mercado digital. 

O julgamento ainda não tem data definida, mas deve ocorrer nos próximos meses. 

O que é a estética "sad beige"? 

Canva - O "sad baige"

De acordo com o Cambridge Dictionary, a expressão “sad beige” refere-se a uma tendência de design e moda caracterizada por tons neutros, como bege e marrom claro. 

Originalmente popular para compor guarda-roupas infantis, a estética ganhou espaço nas redes sociais, especialmente entre influenciadores que buscam transmitir uma imagem sóbria e minimalista. 

A hashtag #sadbeige, associada à tendência, acumula mais de 12 mil postagens no Instagram, ilustrando a ampla circulação desse estilo. 

A lógica dos algoritmos e a padronização digital

O conceito de templatização, desenvolvido pelos acadêmicos Tama Leaver, Tim Highfield e Crystal Abidin, ganha destaque no livro "Instagram: Visual Social Media Cultures", ainda sem tradução para o português.

Reprodução Amazon

A obra analisa como as plataformas digitais moldam comportamentos, práticas culturais e estéticas dos usuários, transformando criatividade em padrões replicáveis.

A templatização refere-se ao processo de transformar práticas sociais e criativas em modelos predefinidos, que são facilmente reproduzidos pelos usuários.

Esses "templates" podem ser explícitos, como filtros e molduras (exemplo: Stories no Instagram), ou implícitos, como estilos de postagem e tendências que geram maior engajamento. Segundo os autores, essa lógica está profundamente enraizada na maneira como os algoritmos funcionam.

As plataformas incentivam a uniformidade ao priorizar conteúdos que seguem formatos bem-sucedidos. Exemplos incluem carrosséis no Instagram, challenges no TikTok e reels. Essas estruturas funcionam como "ferramentas invisíveis", moldando as interações e promovendo padrões de comportamento que se alinham às expectativas algorítmicas.

Essa padronização ajuda a transformar conteúdos em fenômenos virais, oferecendo modelos fáceis de reproduzir. Challenges, memes e tendências ilustram como um formato inicial pode se espalhar rapidamente. Entretanto, ao mesmo tempo que facilita a viralização, a templatização pode criar uma ilusão de originalidade, enquanto reforça práticas homogêneas e limita a diversidade criativa.

O conceito está intrinsecamente ligado à economia da atenção, que prioriza visualizações, curtidas e compartilhamentos. Para alcançar maior visibilidade, criadores tendem a adaptar seus conteúdos ao que os algoritmos priorizam, perpetuando os padrões estabelecidos e reforçando a lógica de reprodução em massa.

Essa dinâmica levanta debates sobre os desafios da criatividade no universo digital. Se, por um lado, as plataformas democratizam o acesso à produção de conteúdo, por outro, promovem uma estética padronizada que molda a cultura digital de maneira uniforme.

Críticas à templatização

Embora a templatização tenha democratizado o acesso a ferramentas de criação e facilitado a produção de conteúdo, ela também é alvo de críticas. Especialistas apontam que a priorização de formatos replicáveis impõe limites à criatividade individual, transformando a produção cultural em um exercício de repetição.

Um dos principais problemas está no reforço de estéticas dominantes. Os templates mais populares, muitas vezes, refletem padrões culturais eurocêntricos ou de consumo globalizado, marginalizando formas de expressão que não se alinham a esses moldes. Essa dinâmica favorece uma uniformização cultural, apagando vozes e estéticas que poderiam enriquecer o ambiente digital com maior diversidade.

Outro ponto sensível diz respeito à exploração do trabalho criativo. Enquanto os modelos padronizados oferecem maior visibilidade aos criadores, eles tendem a beneficiar as plataformas digitais de maneira desproporcional.

O engajamento gerado por esses conteúdos frequentemente se traduz em lucro para as redes sociais, enquanto os criadores recebem apenas ganhos temporários ou simbólicos, sem uma compensação financeira direta equivalente ao impacto de sua produção.

A templatização, portanto, apresenta um dilema: ao mesmo tempo em que facilita a criação e amplia o alcance de conteúdos, ela reduz o espaço para a inovação e mantém as estruturas econômicas mais favoráveis às plataformas do que aos usuários.

O bege como marcador social

No centro da disputa judicial nos EUA está a simbólica cor bege. No contexto das classes sociais, esse tom assume significados simbólicos que envolvem sofisticação, neutralidade e poder discreto.

Frequentemente associado a um estilo de vida refinado, ele é popular entre as elites por transmitir elegância sem ostentação. Na alta-costura e na decoração, a cor é vista como atemporal e versátil, evitando excessos visuais e remetendo a um senso de controle e anonimato.

Entretanto, a preferência pelo bege também gera críticas. Em debates recentes, ele tem sido usado como metáfora para uma "neutralidade exagerada", especialmente em contextos que eliminam vivacidade ou diversidade cromática, como a decoração infantil.

Esse apagamento cultural contrasta com a rica tradição de cores vibrantes das classes populares, para as quais tons intensos simbolizam alegria, criatividade e resistência.

A importância das cores na América Latina

Fotomontagem Canva - Carnaval do Brasil e Dia dos Mortos do México e as cores.

No Brasil e na América Latina em geral, as cores são muito mais que uma questão estética; elas refletem histórias, identidades e celebrações. Influências indígenas, africanas e europeias moldaram um mosaico cultural onde tons vibrantes estão associados à natureza, espiritualidade e resistência.

Festividades como o Carnaval no Brasil e o Dia dos Mortos no México exemplificam como as cores intensas expressam otimismo e conexão comunitária, mesmo em meio a adversidades.

O clima tropical também contribui para essa vivacidade, intensificando a presença de tons como amarelo, vermelho e azul. A flora e a fauna ricas da região inspiram mercados, artesanato e moda, enquanto as práticas religiosas utilizam cores para simbolizar emoções e conceitos espirituais.

"Sad beige" na América Latina

A estética "sad beige", marcada por tons neutros como bege e marrom claro, tem gerado reações mistas na América Latina. Embora seja adotada em nichos urbanos influenciados por tendências internacionais, como design de interiores e moda infantil, ela é percebida por muitos como desconectada das raízes culturais vibrantes da região.

Para alguns, o bege simboliza um luxo cosmopolita, mas para outros, representa um "apagamento cultural" que contrasta com as tradições locais.

Enquanto marcas tentam adaptar a estética a narrativas mais orgânicas, memes e sátiras nas redes sociais criticam o estilo por sua falta de emoção e incompatibilidade com culturas tão dinâmicas.

Ao mesmo tempo, movimentos de valorização de estéticas artesanais e coloridas ganham força, destacando tecidos, cerâmicas e referências indígenas e africanas.

A coexistência entre o "sad beige" e as cores vibrantes reflete a interação das sociedades latino-americanas com tendências globais, reafirmando sua diversidade e complexidade cultural.

Minimalismo: simplicidade ou privilégio?

O minimalismo, surgido na arte e arquitetura dos anos 1960, tornou-se um movimento estético e cultural que valoriza a simplicidade, funcionalidade e a eliminação de excessos. Expandiu-se para áreas como design, moda e estilo de vida, promovendo a ideia de que "menos é mais".

Na prática, o minimalismo reflete-se em espaços amplos e organizados, com poucos móveis e materiais naturais, roupas de cortes simples e tons neutros, além de uma filosofia que prioriza o essencial, muitas vezes associada ao consumo consciente.

Embora apresentado como acessível e universal, o minimalismo frequentemente reflete desigualdades sociais. O custo de peças minimalistas de alta qualidade, como móveis premium ou roupas de designers, limita seu alcance às classes mais altas.

Produtos duráveis e sustentáveis, elementos centrais dessa filosofia, exigem recursos financeiros e estabilidade econômica para substituírem opções mais baratas e descartáveis.

A estética minimalista tornou-se um símbolo de status por transmitir sofisticação discreta, contrastando com estilos mais ostensivos. Sua exclusividade é reforçada por marcas de luxo que promovem o minimalismo como um diferencial elitista.

A prática minimalista também exige tempo e espaço — privilégios nem sempre disponíveis às classes populares. Manter ambientes organizados e funcionais pode ser inviável em residências pequenas ou para quem lida com rotinas exaustivas.

Além disso, a estética, muitas vezes eurocêntrica, desconecta-se de culturas vibrantes, como as da América Latina e África, onde a expressão visual está profundamente ligada a cores e ornamentação.

Apesar de seu discurso sustentável, o minimalismo também é alvo de críticas por ser explorado como uma estratégia de marketing. Produtos "essenciais" são promovidos como indispensáveis para alcançar uma vida equilibrada, transformando uma filosofia de simplicidade em um novo padrão de consumo aspiracional.

Embora o minimalismo proponha uma alternativa ao consumismo, ele também reforça barreiras sociais e culturais. Para que a filosofia alcance verdadeira universalidade, é essencial considerar suas contradições e garantir que o acesso à simplicidade não se limite a quem pode pagar por ela.

O simbolismo das cores no pensamento e na arte brasileira

As cores têm desempenhado um papel central na cultura brasileira, refletindo a diversidade, a identidade e a celebração da vida. Pensadores e artistas do Brasil exploraram suas nuances para transmitir emoções e narrativas únicas.

Cândido Portinari: a emoção nas cores

MASP - Retirantes de Cândido Potinari e o uso de cores.

O pintor Cândido Portinari usava paletas vibrantes e sombrias para retratar a alegria e a dureza da realidade brasileira. Obras como Retirantes revelam como as cores capturam tanto a beleza quanto o sofrimento. Ele afirmava: "As cores devem servir à expressão, à emoção."

Darcy Ribeiro: miscigenação e identidade

Para o antropólogo Darcy Ribeiro, as cores são metáforas da miscigenação cultural que define o Brasil. Ele descrevia o país como "uma nova Roma tropical, colorida pela força criadora da mestiçagem", destacando a vivacidade da cultura brasileira.

Heitor Villa-Lobos: sonoridade colorida

O compositor Heitor Villa-Lobos traduzia as paisagens e sentimentos brasileiros por meio da música, que ele considerava cheia de "cores" emocionais. "Minha música é como a alma do Brasil, cheia de cores, ritmos e vibração," dizia, conectando som e imagem na criação de uma identidade nacional.

João Cabral de Melo Neto: metáforas sensoriais

O poeta João Cabral de Melo Neto usava cores como metáforas em sua obra Tecendo a manhã. No verso "E se encandeiam de ouro e sangue", as cores evocam o nascer do sol e simbolizam força e renovação, elementos da riqueza sensorial brasileira.

Tarsila do Amaral: o tropicalismo nas telas

MALBA

Pioneira do modernismo, Tarsila do Amaral capturou a essência do Brasil em obras como Abaporu, desafiando padrões europeus com paletas tropicais e vibrantes. "Quero ser a pintora do meu país," dizia, celebrando a cultura afro-brasileira e popular.

Rubem Alves: cores como liberdade

Para o escritor e filósofo Rubem Alves, as cores refletem o olhar humano e a imaginação. Ele escreveu: "A vida é colorida pelos olhos que a veem. Quando a alma está cheia de alegria, o mundo ganha cores que antes estavam apagadas."

Lina Bo Bardi: autenticidade brasileira

A arquiteta Lina Bo Bardi, embora italiana de nascimento, tornou-se uma das principais vozes do design brasileiro, via as cores como expressão da alma do Brasil. Em suas palavras: "As cores do Brasil são a alma do povo, vibrantes, vivas, inconfundíveis." Em seus projetos, elas conectavam a arquitetura com a identidade cultural.

Para artistas e intelectuais brasileiros, as cores vão além da estética; elas simbolizam resistência, transformação e celebração. Das paletas tropicais de Tarsila às metáforas de João Cabral, as cores traduzem a rica tapeçaria cultural que define o Brasil e a América Latina.

Novo conceito de criatividade

A disputa pelo "bege triste" e os debates que ela suscita revelam como a cultura digital está redefinindo os conceitos de criatividade, originalidade e pertencimento.

Em um mundo conectado, onde tendências globais frequentemente contrastam com tradições locais, a coexistência de estéticas minimalistas e expressões culturais vibrantes destaca o impacto das plataformas digitais na construção de identidades.

Esse caso, além de inusitado, oferece uma oportunidade para refletir sobre os limites e as possibilidades da cultura digital contemporânea.

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