CONDENADO POR CRÔNICA FICCIONAL

Caso Cristian Góes: entidades pedem reparação a mídias independentes em órgão internacional

O caso do jornalista sergipano Cristian Góes, condenado pela publicação de uma crônica, ganhou um novo capítulo no último mês de junho.

Cristian Góes.Créditos: Reprodução/X
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O caso do jornalista sergipano Cristian Góes, condenado pela publicação de uma crônica, ganhou um novo capítulo no último mês de junho. A data marca o prazo para a entrega dos argumentos da defesa do jornalista no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA).

Góes foi condenado a uma pena de sete meses e 16 dias de prisão – posteriormente convertida em serviços comunitários – e ao pagamento de R$ 30 mil por danos morais ao magistrado Edson Ulisses, então vice-presidente do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJ-SE). A condenação veio em decorrência da publicação da crônica ficcional “Eu, coronel em mim”, em maio de 2012, em um portal de notícias local.

No texto ficcional em primeira pessoa que motiva o processo judicial, não há qualquer menção a nomes, datas, lugares ou cargos públicos específicos. Mesmo assim, o ex-vice-presidente do TJ-SE acusa o jornalista sergipano de injúria contra funcionário público. No ano da denúncia, Edson era cunhado do governador do estado.

Raísa Cetra, Co-Diretora Executiva da ARTIGO 19, salienta que, nessa nova fase do processo, a expectativa é de que “depois de longos anos de injustiças, Cristian possa finalmente receber o reconhecimento internacional de que o Estado brasileiro, por ação e omissão, violou a sua liberdade de expressão. A criminalização desse direito é um grande desafio no Brasil atual e devemos fazer esse debate com profundidade. Por isso, o caso do Cristian deve ser um marco para o debate sobre crimes contra a honra e assédio judicial no país, além de nos permitir pensar formas alternativas de proteção desse direito, como a promoção da diversidade de vozes e expressões no debate público, que passa pelas mídias independentes e comunitárias”, defende.

Em 2015, as organizações ARTIGO 19 e Intervozes protocolaram uma petição na CIDH, em que alegam que o processo criminal contra Góes violou o artigo 13 da Convenção Americana, que trata do direito à liberdade de expressão, e que foi ratificada pelo Estado brasileiro. O órgão admitiu formalmente o caso somente em 2023.

Em âmbito nacional, Góes recorreu da condenação e perdeu em todas as instâncias, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF), que rejeitou os recursos apresentados pela defesa em agosto de 2014. Segundo o jornalista, o valor da indenização a pagar ao final do processo, com correção monetária, chegou a R$ 60 mil.

Para cumprir a pena na esfera criminal, Góes precisou suspender o doutorado em comunicação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Hoje, no entanto, ainda se dedica à atividade jornalística por meio da agência independente Mangue Jornalismo.

Por esse motivo, entre as medidas de reparação e de não repetição de situações como a vivida por Cristian e que foram solicitadas pelas entidades peticionárias, está que a CIDH determine a criação de um fundo voltado a mídias independentes. O objetivo é o de fortalecer o jornalismo e garantir o direito à liberdade de expressão, inclusive na cobertura do Judiciário.

Para a ARTIGO 19, o assédio judicial tem criado um ambiente de medo que cria entraves para uma cobertura jornalística crítica, particularmente quando o ator da perseguição é o próprio Judiciário, ocasionando limitações no acesso à justiça. Ainda segundo as organizações, o silenciamento de comunicadores interfere diretamente na qualidade do debate público e, consequentemente, enfraquece a democracia.

Segundo a ARTIGO 19, o fato de Cristian ter identificado no jornalismo independente um modo de se refazer profissionalmente serve como elemento central para o teor do pedido de reparação realizado junto à Comissão. Assim, uma decisão do órgão que atenda à solicitação poderia ser uma forma de fomentar o ecossistema de mídias independentes no Brasil, além de passar uma clara mensagem ao poder Judiciário e à sociedade.

Entenda o caso

Em 2012, Cristian Góes publicou, no portal local Infonet, uma crônica sobre um coronel da República Velha no contexto democrático que não aceitava o direito à livre manifestação. No texto, Cristian faz menção a um personagem denominado “jagunço das leis”. O desembargador Edson Ulisses entendeu que o personagem era, na verdade, ele mesmo, e decidiu processar o jornalista por injúria, mesmo que o nome dele não tivesse sido mencionado no texto literário.

A denúncia contra Cristian foi recebida pelo Juizado Especial Criminal de Aracaju. Na decisão, o Tribunal afirmou à época que a crônica tinha “atores definidos e identificados”, apesar de não conter nomes de pessoas reais.

A magistrada responsável pelo julgamento do caso foi afastada temporariamente pelo tribunal em 2013. Na lista de substituição, o Tribunal de Justiça trocou os magistrados que iriam assumir os trabalhos, sem dizer o porquê da decisão. O juiz substituto levou apenas três dias para concluir sua sentença que, na ocasião, foi a única decidida por ele naquele período.

Repercussão

Diversas organizações da sociedade civil têm se manifestado em defesa do jornalista nos últimos anos. O caso já foi tema de audiência pública na Câmara dos Deputados, constou em um dossiê entregue à relatoria de Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU) e foi mencionado no relatório da organização Repórter sem Fronteiras, que classificou a acusação contra Cristian Góes como “um desvio judicial e um insulto aos princípios fundamentais da Constituição de 1988.” No entanto, o processo movido contra Cristian Góes ainda segue desconhecido pela opinião pública brasileira.

*Matéria originalmente publicada pela Mídia Ninja. Clique aqui para acessar a publicação original.