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Ferrogrão: Projeto transformará Amazônia em soja e não cumprirá papel no comércio internacional

Telma Monteiro, ambientalista que estuda o caso, mostra que 436mil quilômetros quadrados de Floresta Amazônica podem desaparecer e objetivo comercial do projeto pode estar comprometido devido a crise no Canal do Panamá

Povo Munduruku se manifesta contra construção da Ferrogrão.Créditos: Reprodução/Viviane Borari e Kamila Sampaio
Escrito en MEIO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE el

A “bola da vez” na Amazônia se chama Ferrogrão, ou Ferrovia EF-170. A estrada de ferro está prevista para começar em Sinop, no norte do Mato Grosso e ir até o porto de Miritituba (Pará), no rio Tapajós – em 933 quilômetros de extensão em traçado paralelo à BR-163 que cortará pela metade o sul da floresta. Seu principal objetivo é levar as commodities agrícolas e minerais produzidas na região até a via fluvial para abastecer os grandes navios graneleiros que chegariam ao Oceano Atlântico e em seguida atravessariam o Canal do Panamá rumo à China e a costa oeste dos EUA.

Os maiores interessados no megaprojeto são justamente o agronegócio e as mineradoras; e o orçamento previsto para sua conclusão é de R$ 21 bilhões. O projeto foi idealizado em 2014 por uma série de tradings do agronegócio (ADM, Cargill, Bung, Louis Dreyfus e Amaggi) e ganhou força em 2017 durante o Governo Temer. Ao longo do governo Bolsonaro quem se encarregou de tentar vender a Ferrogrão para investidores, sem sucesso, foi o então ministro da Infraestrutura Tarcísio de Freitas (Republicanos), atual governador de São Paulo.

Seria uma obra de infraestrutura e tanto, caso não colocasse em risco 48 povos indígenas e 436 mil quilômetros quadrados de Floresta Amazônica que podem simplesmente se transformar em soja ao longo do caminho. A principal preocupação é que a ferrovia atraia ainda mais grileiros de terra para a região.

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Uma das áreas que será afetada é o Parque Nacional do Jamanxim, que terá uma diminuição de 862 hectares no seu perímetro caso a obra saia do papel, segundo Medida Provisória de 2017 que alterava os limites do parque.

Foi preocupado com isso que o Psol entrou com uma ação, entregue ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, pedindo a suspensão do projeto. A legenda pedia mais prazo para que os estudos sobre os impactos ambientais e sociais da Ferrogrão pudessem ser concluídos. O partido também apontou que a diminuição de parques nacionais e áreas de preservação devem ser feitas via Projeto de Lei e não por Medida Provisória.

Traçado da Ferrogrão. Reprodução/Governo Federal

Houve uma negociação entre as partes na ação de inconstitucionalidade do projeto e, em setembro passado, Moraes deu três meses para que os estudos fossem refeitos. Depois disso, em novembro, o ministro Renan Filho, dos Transportes, criou o GT Ferrogrão com membros dos ministérios dos Transportes, Infraestrutura, Povos Indígenas, Direitos Humanos e, também, da sociedade - representada por movimentos indígenas, sociais e organizações da sociedade civil.

Nesse contexto, no começo desse mês de março, a ministra Sonia Guajajara se reuniu com Renan Filho e anunciou para a imprensa um acordo com o Ministério dos Transportes para que os povos indígenas da região fossem ouvidos. Ao todo, o traçado da Ferrogrão atingirá 16 terra indígenas. Na coluna do Guilherme Amado, no portal Metrópoles, quando a notícia foi dada, chamou-se a atenção de que a consulta “atrasaria o andamento das obras”. Mas não foi lembrado que a Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais obriga a consulta. Logo, não é necessário um acordo entre Guajajara e Renan Filho para que os povos indígenas sejam ouvidos.

Em 4 de março, o Tribunal Popular organizado pelas comunidades afetadas determinou que o projeto da Ferrogrão fosse cancelado. A sentença foi lida por Alessandra Korap Munduruku, que também pediu a responsabilização das empresas envolvidas, uma vez que o mero anúncio da obra aqueceu o mercado ilegal de terras na região e promoveu altas no desmatamento e nos conflitos com as comunidades tradicionais.

Nesse contexto, nos próximos dias 6 e 7 de maio o Ministério dos Transportes e a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) vão fazer um seminário em Santarém, no Pará, com a presença dos setores que participam do GT Ferrogrão para fechar a publicação dos estudos e apresentá-los ao ministro Alexandre de Moraes. As principais reivindicações contrárias ao projeto vão falar dos impactos ambientais ao longo do traçado da ferrovia e da própria consulta aos povos indígenas. Espera-se que o projeto não saia do papel.

A ambientalista Telma Monteiro, entrevistada pela Revista Fórum, realizou um dos estudos que avalia os impactos da Ferrogrão ao lado de Tarcísio Feitosa da Silva, que é pesquisador e mestre em Agricultura Amazônica e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

Telma disponibilizou para a reportagem, com exclusividade, uma cópia do seu estudo intitulado “Por trás da Ferrogrão – a soja no coração da Amazônia”. Ela aponta que para além de transformar a floresta em mais plantações de soja, o projeto tampouco teria valia para o agronegócio uma vez não servirá para levar as commodities até o Oceano Pacífico, pois o Canal do Panamá vive uma verdadeira crise que compromete o seu funcionamento.

Telma Monteiro, ambientalista. Arquivo pessoal

Impactos ambientais e sociais

“Ficou provado que a Ferrogrão não se sustenta. Estudos econômicos e financeiros mostraram que os números apresentados pela ANTT não correspondem à realidade. Todos os indicadores demostram que se o projeto sair do papel provocará fragilidade social, violência urbana, desassistência, aumento do desmatamento, falta de saneamento, contaminação dos povos indígenas, das populações vulneráveis e dos rios pelo mercúrio usado no garimpo, já descontrolado. Basta entender o que está acontecendo, por exemplo, em Terras Yanomami e Munduruku, que já têm grande parte da população contaminada pelo mercúrio. As mudanças climáticas estão alterando o regime de chuvas na Amazônia e expondo uma realidade que é mais que um simples alerta. Algo está mudando rapidamente. Os cientistas não brincam com a ciência”, disse Telma Monteiro.

O estudo aponta que pelo menos 16 terras indígenas e 104 assentamentos rurais serão afetados pelos impactos “sinérgicos e cumulativos” da ferrovia, a qual afetaria profundamente os modos de vida e direitos dos habitantes da região, que em nenhum momento chegaram a ser consultados. Ressalta-se que a proposta da ferrovia aumenta a pressão sobre os territórios já impactados pelo Arco Logístico Norte, ignora alternativas logísticas, tem estudos técnicos falhos, e viabilidade econômica e socioambiental questionável, além de favorecer o aumento do desmatamento, da grilagem, da mineração e da expansão da fronteira agrícola sobre o Cerrado e a Amazônia.

“Ao longo da BR-163 nós descobrimos que estão 35% das terras agrárias do Pará disponíveis. O estado do Pará tem 1.245.870 quilômetros quadrados. 35% do estado, ou 436.691 quilômetros quadrados, são considerados áreas de consolidação e expansão. Nessas áreas, tirando-se a reserva legal, você pode fazer qualquer coisa. Se tiver mata, você pode derrubar. E essas áreas estão localizadas principalmente na bacia do Tapajós e ao longo da BR-163, no interfluvio do Xingu, e lá ao norte, na margem do Amazonas”, explicou Telma.

A pesquisadora alerta que a Amazônia vai se dissolver, uma vez que essas áreas de consolidação e extensão têm mata e floresta. Ela explica no documento que são áreas devolutas do tempo da ditadura, que acabaram doadas ao longo das rodovias oficiais do Estado e aponta que a construção da Ferrogrão e a exploração dessas áreas adjacentes só é possível se for levado em conta o Decreto 1164/1971, editado em plena ditadura militar pelo então presidente-ditador Emilio Garrastazu Médici, que declarava que a floresta e os povos indígenas seriam “empecilhos” ao desenvolvimento da agricultura e da pecuária na região.

“Só o anúncio da possibilidade da construção da Ferrogrão bastou para aquecer o marcado ilegal de terras, ampliou o número de queimadas e colocou em risco os assentamentos rurais, unidades de conservação e terras indígenas”, apontou a pesquisadora.

Canal do Panamá e inviabilidade operacional

Um dos objetivos da Ferrogrão é levar a soja, o milho, a madeira, o minério e a carne produzidos no norte do Mato Grosso e em todo o chamado “Arco Norte” até o porto de Miritituba, na bacia do Rio Tapajós, no Pará, de onde poderia sair, por via fluvial, até o Oceano Atlântico.

Uma vez que já existe infraestrutura para que a produção seja levada ao porto de Ilhéus, na Bahia, de onde são enviados para a Europa e a costa leste dos EUA, o novo empreendimento serviria como um facilitador para que a soja chegasse mais rápido ao Canal do Panamá e após atravessá-lo iria para a China e a costa oeste dos EUA.

O principal objetivo do faraônico empreendimento é justamente baratear o custo das commodities do agronegócio. No entanto, conforme Telma Monteiro nos explica, a inviabilidade do cumprimento desse objetivo está posta.

“Desde 2020 o Canal do Panamá está apresentando alguns problemas por conta da crise climática. Trata-se um lago artificial com 80 km de extensão, inaugurado em 1914, por onde os navios sobem através de uma hidrovia para atravessar do oceano Atlântico [via Mar do Caribe] ao Pacífico. Acontece que o canal do Panamá está secando, o lago não está dando conta, e hoje tem filas imensas de navios que têm 350 metros, são graneleiros de grande porte, e as autoridades do Canal do Panamá já desde 2022 vêm reduzindo o número de navios por dia, porque a necessidade de água para cada comporta desses navios é de 200 milhões de litros. O lago não está dando conta disso porque está começando a ficar salgado e precisa de água doce, porque a água que sobra volta para o lago, mas acaba sendo salinizada”, explica a ambientalista.

“A seca veio, eles não conseguiram repor a água do lago, por falta de chuvas decorrente da crise climática. Para você ter uma ideia, um navio de uma empresa se quiser passar a frente dos demais, tem que pagar 4 milhões de dólares, basta verificar matérias publicadas na Exame e no Globo para saber. As autoridades do mundo inteiro ficaram com as orelhas em pé de desespero, porque os fretes subiram imensamente, tanto para as commodities como para comida”, agregou.

Para resolver a questão, seria necessário fazer um novo canal e esse o novo canal teria que passar pelo Rio Índio, que tem comunidades indígenas na sua bacia e, no Panamá, essa questão é muito séria. Essas comunidades do Rio Índio já decidiram que não querem um novo canal que passe por ali. E seria a única solução a longo prazo. A curto prazo não tem solução, a não ser alargar o canal ainda mais. Mas isso é inviável em se tratando da questão da água e do lago artificial.

Telma aponta que o Panamá hoje tem 8 milhões de habitantes, e mais de 50% deles, principalmente na cidade do Panamá, já estão tendo dificuldades para obter água potável. Já se pensa em criar grandes plantas de dessalinização para abastecer a população. Tudo por conta dessa questão do canal.

“O lado de cá da questão é o seguinte: como é que eles vão partir de Sinop, levando todos os grãos do norte do Mato Grosso, com saída pelo canal do Panamá, se o canal do Panamá já está tendo problemas? Temos um problema que pode ter reflexos muito graves para o consumo mundial, para a distribuição de minérios, grãos e commodities em nível global. Então como é que você planeja uma ferrovia que vai ligar o Mato Grosso ao arco norte, uma vez que não vai ter saída pelo canal do Panamá?”, indagou a ambientalista.