LUTA PELA TERRA

Invasão Zero: Quem está por trás da milícia rural que aterroriza indígenas no Sul da Bahia

Para o Mestre Joelson, histórico militante do MST na região, se não houver distribuição de terra a violência no campo dificilmente acabará; Ele também denunciou a especulação imobiliária na região

Concentração do grupo Invasão Zero antes do ataque aos Pataxó Hã-Hã-Hãe.Créditos: Reprodução/G4TV Bahia
Escrito en MEIO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE el

Há um mês, em 20 de janeiro, três líderes do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe foram baleados por uma milícia de fazendeiros no território Caramuru-Catarina Paraguassu, em Potiguará, no Sul da Bahia. Maria de Fátima Muniz, de 52 anos, conhecida como ‘Nega Pataxó’ e importante liderança espiritual do seu povo, foi morta. Seu irmão, Nailton Pataxó, outra liderança, sobreviveu aos tiros e ainda no hospital, dias depois do ataque, declarou: “está claro que a polícia está fazendo um trabalho de pistolagem para defender interesses particulares de fazendeiros”.

Desde aquele dia os indígenas já denunciavam que a Polícia Militar participou, ao lado dos fazendeiros, da ação que desde o início se armou para massacrar os indígenas. Por sua vez, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) negou que tenha havido confronto entre policiais militares e indígenas.

Segundo o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que mais tarde foi ao local apurar o ocorrido, a ação foi planejada em um grupo de WhatsApp chamado “Invasão Zero” e composto por cerca de 200 fazendeiros. Os Pataxó Hã-Hã-Hãe reivindicam a retomada da Terra Caramuru-Catarina Paraguassu, que lhes foi concedida judicialmente mas ainda não foi transformada em Terra Indígena pela Funai. Por isso ocuparam a área.

Contrariados, os fazendeiros não quiseram tentar a recuperação da propriedade da forma devida, conforme previsto em lei. Pelo contrário, passaram por cima da Justiça. Em mensagem do grupo de WhatsApp que organizava a ação e marcava um ponto de encontro, os fazendeiros colocaram um aviso de “caráter de urgência” para o que consideraram uma “ação de reintegração de posse”.

“A Polícia chegou à ocupação com uns 20 homens. O comandante se apresentou dizendo que tinha sido enviado para intermediar o conflito. Eu falei que a gente só sairia com determinação judicial de reintegração de posse. O comandante me perguntou se eu tinha documento que comprovasse que a área pertencia aos indígenas. Eu mostrei dois mapas da demarcação original. Ele, então, pegou os mapas e foi na direção das caminhonetes que estavam chegando na estrada. Eu pensei que o comandante ia tentar convencer o pessoal a voltar, mas ele mandou os policiais botarem as viaturas de lado e abriu passagem pros fazendeiros”, contou Nailton ao The Intercept.

Nailton e Nega Pataxó após serem atingidos. Reprodução

A seguir, Nailton revelou que os fazendeiros “chegaram atirando” e os que não tinham armas de fogo agrediam os indígenas com paus e pedras. Ele narrou que foi atingido junto com a irmã, quando tentava retirá-la do fogo cruzado.

“Eu gritava para a política tirar a gente dali, para nos levar ao hospital, mas eles não atenderam. Ela me disse que a respiração dela estava curta, que não ia resistir. Foram as últimas palavras dela”, completou.

Após a ação dois fazendeiros foram presos, entre eles o homem que disparou contra a líder indígena morta no episódio. Um indígena também foi preso portando "arma artesanal", provavelmente um arco e flecha. Um dos fazendeiros envolvidos na ação foi ferido com uma flechada no braço.

Antônio Carlos Santana da Silva, um policial militar de 60 anos, foi um dos presos. Ele é acusado de ter disparado contra Nailton. Outro preso foi José Eugênio Amorim, um estudante de veterinária de 20 anos apontado como o autor dos disparos que mataram a Nega Pataxó. Ambos participavam do grupo “Invasão zero”, que hoje está com cerca de 5 mil membros.

Já o Cacique Aritanã, de 37 anos, o outro baleado em 20 de janeiro, disse que viu quando o comandante da PM mandou seus homens abrirem caminho para os fazendeiros, e o alertou que uma tragédia estaria na sua conta. “Mas o comandante me disse que não poderia fazer nada, porque era muita gente para poucos policiais”, contou. Ele passou 10 dias internado após os tiros o atingirem na região das costelas e perfurarem seu intestino.

Conforme lembrou a reportagem supracitada, uma frente parlamentar foi lançada com esse mesmo nome, “Invasão Zero”, em outubro de 2023 no Congresso Nacional, com as presenças de Jair Bolsonaro (PL) e seu ex-ministro de Meio Ambiente Ricardo Salles.

Para o Cacique Nailton, o grupo Invasão Zero que atua no Sul da Bahia é, literalmente, uma milícia. Joelson Ferreira, conhecido como Mestre Joelson, concorda. Ele é um histórico militante do MST no Sul da Bahia, fundador do movimento na região, morador do assentamento Terra Vista e  também fundador da Teia dos Povos – um movimento social atuante na região e produto da união entre trabalhadores sem-terra, indígenas e quilombolas.

“A questão da terra é fundamental. Sem distribuir a terra não há como resolver a questão da violência no Brasil. Hoje o agronegócio tem muito poder para manipular os territórios e a opinião pública, tem uma bancada grande no Congresso e agregam uma série de questões importantes. O agronegócio hoje está ligado ao capital financeiro, a uma rede de extrativismo muito grande, entre outros setores”, disse o Mestre Joelson em live do Lasintec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento) da Unifesp, transmitida nesta quarta-feira (21).

Mestre Joelson. Reprodução/Teia dos Povos

Kâhu Pataxó, que estuda direito na UFBA, disse ao site Repórter Brasil que uma das causas dos problemas também é jurídica, pois enquanto muitas terras não têm seus processos de demarcação concluídos – com demoras que já duram 15 anos –, os fazendeiros mantêm “esperanças de continuar com a terra, então vão continuar os ataques”, afirmou. Ele faz parte da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat).

O Mestre Joelson concorda: “Os fazendeiros são os maiores grileiros de terras no Sul da Bahia, casados com parte do poder Judiciário que nega a ampliação das terras originárias. Muitas vezes, como nas terras Pataxó, onde há praias paradisíacas, eles 'regrilam' um terreno e está tudo certo. Nesse meio tem gente da Globo, tem jogador de futebol famoso e tem proprietários de terras de outros estados que expropriam as terras indígenas para fazer resorts, mansões e clubes. São nesses empreendimentos que as celebridades passam férias, nas praias paradisíacas dos Pataxó, ao lado de soldados do Exército de Israel, por exemplo. É um descalabro para cima das terras dos povos originários”, denunciou o Mestre Joelson.

Tortura na véspera e a participação de PMs

Itamar Cardoso de Oliveira, um indígena de 32 anos, denunciou que na véspera dos ataques estava com mais cinco indígenas dirigindo-se à ocupação. Na estrada rural onde passavam foram perseguidos por policiais militares. Abordados, foram torturados.

Segundo o seu relato publicado no The Intercept, ele e os 'parentes' [modo como os indígenas se tratam] foram chamados de “vagabundos” e receberam ordem para “abaixar a cabeça e ficarem quietos” antes de serem espancados com pedaços de madeira nas costas. Os PMs queriam saber onde os indígenas teriam “escondido armas”, mas eles simplesmente não tinham arma alguma.

Ao fim da abordagem os PMs inutilizaram os veículos dos indígenas e levaram embora seus celulares. No dia seguinte, vídeos produzidos e divulgados pelo próprio movimento Invasão Zero mostram os policiais atuando a serviço dos fazendeiros.

Nas imagens que mostram a concentração de camionetes, a poucos quilômetros de distância da comunidade atacada, onde os fazendeiros se reuniram para realizar o ataque, o narrador diz que o grupo tem o “apoio de policiais militares”. Em um segundo vídeo, é possível ver policiais fardados virados de costas para os ataques.

"Existem policiais que não se prestam a isso, mas estão transformando agentes da Polícia Militar em capangas do latifúndio", afirmou o Mestre Joelson.

Quem está por trás do Invasão Zero

O Invasão Zero nega ser um grupo miliciano. Ao próprio Intercept o coordenador-geral do movimento, Luiz Uaquim, afirmou que as acusações são infundadas e que proíbe o uso de armas em atos e ações do movimento. Ele é fazendeiro em Ilhéus, no Sul da Bahia. A área de 47 mil hectares estaria dentro da Terra Indígena dos Tupinambá de Olivença segundo a apuração do Repórter Brasil.

Ele justifica que o recente conflito ocorreu porque “um grupo de homens armados e encapuzados, que só depois se nomearam como indígenas, invadiram a propriedade rural” onde estavam os Pataxó Hã-Hã-Hãe. E argumentou: “Quem invade encapuzado e armado decerto invade o que não é seu (…) Por isso agimos de imediato e com apoio da Polícia Militar. Lamentamos o desfecho do episódio”.

Uaquim ganhou notoriedade no começo dos anos 2000 quando organizou um movimento de produtores de cacau da região contra a demarcação do território indígena. Desde o século XX, quando a região se tornou atrativa para os produtores de cacau, os indígenas denunciam que há um processo que os expulsa de lá para as periferias de grandes cidades.

O Invasão Zero, seu atual grupo, além de contar com diversos fazendeiros locais, incluindo produtores de cacau, também tem membros da Faep (Federação de Agricultura da Bahia) em suas fileiras. Roberto Miranda, presidente da Faeb, já se manifestou publicamente a favor da “autodefesa” dos proprietários de terra. A Federação é filiada à Confederação da Agricultura e Pecuria do Brasil (CNA), que é apontada pelo Repórter Brasil como participante do lobby do agronegócio em Brasília.

Na presidência da Invasão Zero está Renilda Maria Vitória de Souza, conhecida como Dida Souza. Além de funcionária do Tribunal de Contas da Bahia, também é herdeira de um ex-político e produtor de gado e cacau da região, Osvaldo José de Souza, fundador da Osvaldo Souza Agropastoril. O movimento alega estar presente em 200 municípios e organizado em 16 núcleos regionais.

“Se ocorre uma invasão na sua terra, você coloca dentro do grupo que participa. Manda sua localização, diz o que está acontecendo, quem está indo, quantos são, e todo mundo dos núcleos ao redor se une e vai tirar o invasor”, disse Dida Souza em meios de comunicação internos do movimento.

Entrevistado pelo Repórter Brasil, o defensor público da União Gabriel Cesar não tem dúvidas: “o grupo tem uma gênese criminosa ao se constituir para fazer operações ilegais de reintegração de posse. Isso é formação de milícia e precisa ser investigado”.