GUERRA EXTRATIVISTA

Bahia: entenda a escalada da violência contra indígenas que conta com milícia do agronegócio

Desde que o Congresso barrou os vetos de Lula sobre o marco temporal, pelo menos 4 indígenas foram brutalizados e mortos no sul da Bahia; Outras duas aldeias registraram ataques de homens armados e uma terceira foi assediada por empresário local que extraía areia ilegalmente do território

Povos indígenas do Brasil - imagem ilustrativa.Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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“Está claro que a polícia está fazendo um trabalho de pistolagem para defender interesses particulares dos fazendeiros”. A frase, uma pesada denúncia contra as forças de segurança da Bahia, foi dita pelo cacique Nailton Muniz Pataxó, de 77 anos, em entrevista publicada nesta terça-feira (30) nas redes sociais da Teia dos Povos, um potente movimento de quilombolas, indígenas e camponeses que cresce na região.

Ele é um dos três líderes do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe baleados por uma milícia de fazendeiros no último dia 20 de janeiro no território Caramuru-Catarina Paraguassu, em Potiguará, no sul da Bahia. Ele ainda está no hospital, se recuperando de tiros recebidos no quadril.

Também baleada, a irmã dele Maria de Fátima Muniz, de 52 anos, conhecida como “Nega Pataxó”, não teve a mesma sorte. A mulher, que exercia uma liderança natural no povo como professora e liderança espiritual, não resistiu aos ferimentos e morreu no ato.

Desde aquele dia os indígenas já denunciavam que a Polícia Militar participou, ao lado dos fazendeiros, da ação que desde início se armou para massacrar os indígenas. Por sua vez, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) nega que tenha havido confronto entre policiais militares e indígenas.

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Segundo o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que mais tarde foi ao local apurar o ocorrido, a ação foi planejada em um grupo de WhatsApp chamado “Invasão Zero” e composto por cerca de 200 fazendeiros.

Os Pataxó Hã-Hã-Hãe reivindicam a retomada da Terra Caramuru-Catarina Paraguassu, que lhes foi concedida judicialmente mas ainda não foi transformada em Terra Indígena pela Funai. Por isso ocuparam a área.

Contrariados, os fazendeiros não quiseram tentar a recuperação da propriedade da forma devida, conforme previsto em lei. Pelo contrário, passaram por cima da Justiça. Em mensagem do grupo de WhatsApp que organizava a ação e marcava um ponto de encontro, os fazendeiros colocaram um aviso de “caráter de urgência” para o que consideraram uma “ação de reintegração de posse”.

Após a ação dois fazendeiros foram presos, entre eles o homem que disparou contra a líder indígena morta no episódio. Um indígena também foi preso portando "arma artesanal", provavelmente um arco e flecha. Um dos fazendeiros envolvidos na ação foi ferido com uma flechada no braço.

“Foi tão planejado que sábado a polícia esteve na área, espancou alguns índios, tomou todos os celulares dos índios que se encontravam lá, já premeditando que os índios não iam filmar essa ação do dia seguinte. Foi tudo controlado, junto, participado, junto com o fazendeiro e os milicianos e a Polícia Militar. Existe um projeto de extermínio do nosso povo, mas enquanto não exterminar, estaremos de pé para colocar a luta pra frente”, declarou Nailton à Teia dos Povos.

“Projeto de extermínio”

Logo após o ataque, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) publicou uma nota em que explica o que Nailton Pataxó chamou de “projeto de extermínio”. No texto, a organização expressa indignação e extrema preocupação sobre a escalada de violência contra povos indígenas, quilombolas e sem-terras no Sul e Extremo Sul da Bahia.

De acordo com o Cimi, tudo começou em 14 de dezembro de 2023, quando o Congresso Nacional, em sessão conjunta, derrubou os vetos do presidente Lula (PT) ao PL 2903, entre eles aquele vetava a tese do marco temporal como pré requisito para a demarcação de terras indígenas. Com a nova lei, agora os indígenas teriam de provar que ocupavam os territórios reivindicados em 1988, quando a Constituição foi proclamada.

Uma semana depois, em 21 de dezembro, Lucas Santos Oliveira, de 31 anos e cacique do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, foi assassinado numa emboscada. Ele voltava da cidade de Pau Brasil (BA) para casa, na aldeia Caramuru-Catarina Paraguassu. Foi morto por dois homens em uma moto sobre os quais não há quaisquer informações apuradas, seja pelas autoridades, seja pela imprensa.

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Oito dias depois, em 29 de dezembro, às vésperas das Festas de Ano Novo, um grupo de famílias Pataxó da comunidade de Itacipiera, localizada no famoso destino turístico de Trancoso (BA), foi atacado por homens armados, que destruíram a comunidade e queimaram motos, eletrodomésticos e pertences dos indígenas. A Fundação Nacional do Povos Indígenas (Funai) conduziu as famílias até a sede da Polícia Federal (PF) em Porto Seguro, para registrar boletim de ocorrência. O caso segue acompanhado pela procuradoria do órgão indigenista do Estado.

Se com a morte do jovem já se imaginava que o objetivo desta verdadeira milícia formada pelo agronegócio da região era tomar as terras ocupadas pelos povos, após os ataques às famílias isso ficou claro para os indígenas. Mas não foi “só” isso.

“Neste mesmo dia, um empresário adentrou a Aldeia Tibá, ameaçando mulheres e crianças após os indígenas terem proibido a extração de areia para comercialização na Vila de Cumuruxatibá e região. A extração, realizada pelo empresário dentro da Terra Indígena Comexatibá, estava afetando as nascentes de dois rios que abastecem o território. Acompanhados de um servidor da Funai, os indígenas registaram boletim de ocorrência na delegacia de Polícia Civil de Prado (BA). O delegado informou as lideranças que iria remeter o processo à Polícia Federal, em Porto Seguro”, informa um trecho da nota do Cimi.

Já neste mês, no último dia 5 um fazendeiro da região estava acompanhado de um grupo de pessoas não identificados pelos indígenas quando tentou quebrar o cadeado de uma porteira que dá acesso a região de Monte Pascoal, nas proximidades da Aldeia Jitaí, onde os indígenas estão em processo de retomada de terra ancestral. Quem impediu a invasão foram os próprios Pataxó.

Em 8 de janeiro, só três dias depois, foi a vez dos Pataxó de Aldeia Quero Ver serem “visitados” pela Polícia Militar, que entraram no território sem o consentimento do cacique local ou de quaisquer outras lideranças. No dia seguinte, outro indígena foi encontrado morto na região. Ademir Machado Reis, morador da Aldeia Trevo do Parque, foi achado próximo de onde vivia e tinha laços de parentesco com os moradores da Aldeia Caramuru-Catarina Paraguassu. O caso é investigado pela Polícia Civil de Itamaraju (BA).

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Em 16 de janeiro foi a vez de Roberto Bráz Ferreira, morador da Aldeia Barra Velha, ser encontrado morto em sinais de golpes de machado em várias partes do corpo. Ele tinha 46 anos e era artesão. O caso é investigado pela delegacia de Trancoso, mas nem a polícia e nem os indígenas fazem qualquer ideia sobre a motivação para o crime.

Resumindo, em pouco mais de 30 dias partindo do desaforo do Congresso Nacional em aprovar na marra a tese do marco temporal, passando por cima do Poder Judiciário, foram registradas pelo menos oito investidas violentas contra os povos indígenas no Sul da Bahia. De acordo com avaliação do Cimi, a situação demonstra a necessidade de que os direitos territoriais reivindicados pelos povos indígenas sejam analisados e garantidos de forma rápida e efetiva, o que não irá acontecer enquanto o PL aprovado pelo Congresso não for derrubado.

“Não é preciso investigar muito para descobrir quem são os cabeças pensantes deste ‘poder paralelo’, desta milícia armada que se instalou na Bahia, da ligação destes com os atos antidemocráticos que se espalhou pelo país e que abertamente e sem nenhum pudor ou medo de punição convocam ações ilegais contra os indígenas, trabalhadores sem-terra entre outros, pois têm plena convicção que não serão penalizados. Alguém pode explicar este sentimento de impunidade?”, analisa e indaga o Cimi.

Depois dos ataques aos Pataxó Hã-Hã-Hãe

No domingo (21), o governador Jerônimo Rodrigues se reuniu com secretários e chefes das forças de segurança para deliberar sobre o monitoramento dos conflitos fundiários na região. Após a reunião ficou decidido um incremento na atuação das polícias Civil e Militar na região. As investigações estão a cargo da delegacia de Itapetinga, a 79 km de Potiraguá, com apoio da Diretoria Regional de Polícia do Interior (Dirpin/Sudoeste-sul)

Na segunda-feira (22) a BR-101 amanheceu ocupada pelos indígenas e por 500 famílias do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que compareceu ao protesto em solidariedade aos indígenas. Sem grandes incidentes, o movimento pedia a investigação do episódio.

Horas mais tarde, a comissão do MPI, liderada pela ministra Sonia Guajajara, chegou ao local. A ministra visitou os feridos, participou do velório de Fátima e tem colhido depoimentos dos indígenas a fim de contribuir com o esclarecimento do caso.

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Na terça (23), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se pronunciou. Em entrevista ao jornalista Mário Kertész, para a Rádio Metrópole de Salvador, o mandatário afirmou que o Governo Federal irá discutir o envio de ajuda aos indígenas.

“O povo baiano pode ficar tranquilo que vou discutir muito esse assunto hoje em Brasília Quero colocar o Governo Federal à disposição para ajudar os povos indígenas a encontrarem uma solução, para que a gente resolva isso”, afirmou o presidente.

Além de Lula, diversas entidades de defesa dos direitos humanos também se pronunciaram sobre o caso. A Comissão Arns e a Conectas emitiram notas públicas em que pedem ao governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, que garanta uma investigação implacável sobre o caso.

“Diante destes fatos, a Comissão Arns e a Conectas Direitos Humanos também se dirigem publicamente ao Exmo Sr. Governador do estado da Bahia, Jerônimo Rodrigues, pedindo completa e rápida apuração do caso, ainda mais em se tratando de um ataque anunciado”, diz a nota da Comissão Arns.

Já o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foi ainda mais duro em suas palavras e comparou o grupo ligado ao agronegócio que fez os ataques a milícias.

“Não é preciso investigar muito para descobrir quem são os cabeças pensante deste “poder paralelo”, desta milicia armada que se instalou na Bahia, da ligação destes com os atos antidemocráticos que se espalhou pelo país e que abertamente e sem nenhum pudor ou medo de punição convocam ações ilegais contra os indígenas, trabalhadores sem-terra entre outros, pois tem plena convicção que não serão penalizados. Alguém pode explicar este sentimento de impunidade?”, diz a nota da entidade.