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HeartsTopper: ausência de sexo em série LGBT da Netflix é um problema?

Série que adapta graphic novel de Alice Oseman se tornou fenômeno de audiência da plataforma de streaming

HeartsTopper: ausência de sexo em série LGBT da Netflix é um problema?.Créditos: Divulgação / Netflix
Escrito en LGBTQIAP+ el

Com a estreia da segunda temporada de “HeartsTopper”, série teen LGBT da Netflix que adapta a graphic novel da escritora Alice Oseman, um debate se estabeleceu nas redes: a ausência de cenas de sexo na trama.

Parte dessa crítica vem de perfis que, em sua maioria, possuem mais de 30 anos, o que nos dá algumas pistas do porquê, para tais pessoas, a falta de sexo na série seja um problema.

No entanto, antes de avançarmos na questão, é preciso pontuar algumas coisas: a série acompanha um grupo de adolescentes. A trama gira em torno do casal Charles (Joe Lock) e Nick (Kit Connor), e de seus amigos, todos adolescentes e estudantes do ensino médio. Dessa maneira, estamos diante de personagens com idades entre 15 e 16 anos.

Outro ponto: é óbvio que o sexo faz parte da vida dos adolescentes, mas o ponto central da história contada por Alice Oseman não é esse. A autora quer tratar das saídas do armário e das consequências que a LGBTfobia traz à vida de jovens que ainda estão construindo suas identidades e buscando um lugar no mundo.

Sem cair no lugar comum das tragédias LGBT - que também gostamos - a trama de HeartsTopper consegue abordar temas pesados, mas sem se paralisar neles. Alice Oseman consegue mostrar que, mesmo em um país dito "de primeiro mundo", a repulsa às vidas LGBT está presente nas escolas, nos lares e na sociedade como um todo. Há um longo caminho a percorrer, mas nele também pode haver espaço para o "amor romântico" e saídas otimistas.

Ausência de sexo

Parte das críticas considera o texto de HeartsTopper “fora da realidade” devido à ausência de sexo, mas devo discordar profundamente e quero elencar alguns pontos:

Sobre a qualidade técnica, estética e textual da série, já falei aqui e aqui. Mas, para rebater a crítica em torno da segunda temporada, vou partir de três pontos que, ao meu ver, explicam por que a ausência de sexo é um problema: política do gueto, violência e invisibilidade nos produtos culturais.

Política do gueto

Ao longo do século XX, a comunidade LGBT+ foi obrigada a viver à sombra e em guetos políticos.

Até o final dos anos 1990, eram raríssimos os eventos de sociabilidade LGBT que ocorriam de manhã ou à tarde. Em sua maioria, as pessoas não heterossexuais socializavam apenas à noite.

A sociabilização noturna imposta às LGBT+ devido à LGBTfobia estrutural condicionou gerações a viverem em torno de bares, saunas e boates. O sexo e o anonimato davam o tom. Isso não é um problema, mas, quando não se tem outra opção, passa a ser uma questão de controle social: "podem existir, desde que permaneçam longe dos espaços públicos e comuns".

Violência

Impostas às margens das sociedades, as LGBT+ viveram e ainda vivem sujeitas a toda sorte de violência.

Aqui temos outra questão: não estamos acostumados a consumir narrativas que não estejam vinculadas ao desprezo, à violência e à tragédia fatal.

Dessa maneira, quando nos deparamos com histórias da indústria cultural que fogem à regra e se tornam populares, estranhamos: cadê a morte nesta trama? Mas reparem: em “HeartsTopper”, há violência e dramas pesados, mas eles não são centrais.

Invisibilidade nos produtos culturais

Além de vivermos involuntariamente nos guetos noturnos e alvos de toda sorte de violência, ao longo do século XX também não existíamos nos produtos culturais voltados para as massas.

Claro que há toda uma produção literária e cinematográfica LGBT+ e o Festival Mix Brasil de Cinema está aí para comprovar, mas estar na cultura de massa é outra questão e outro patamar.

Este cenário começou a mudar no início do século XXI, com novelas brasileiras com personagens LGBT+ que possuíam estrutura narrativa (começo, meio e fim) e filmes como "O Segredo de Brokeback Mountain" (2005), "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" (2014) e "Com Amor, Simon" (2018).

Ou seja, até a estreia de "HeartsTopper" na Netflix, fomos educados por comédias românticas completamente heterossexuais e quando havia personagens LGBT, eram completamente descartáveis e esquecíveis.

Capa do filme "Vermelho Branco Sangue Azul"/ PrimeVideo/Divulgação

A virada que a série da Netflix proporciona é justamente essa: ela traz o romance ideal na juventude, que envolve "o amor para sempre", o "amor romântico", e que até agora possuía narrativas completamente heterossexuais.

Outra questão que "HeartsTopper" traz: pessoas LGBT que vivem de dia e não se entopem de substâncias químicas, legais ou ilegais. E além disso: vidas que não giram em torno do sexo como prática.

Para gerações que foram formadas em torno do gueto e de uma vida noturna profundamente marcada pelo sexo, séries como HeartsTopper - ou agora o filme "Vermelho Branco Sangue Azul" (PrimeVideo) - representam uma ruptura com tudo aquilo que fomos "educados" a aprender enquanto sociabilidade LGBT, causando estranhamento e repulsa. 

Por outro lado, produções como “HeartsTopper” apresentam à geração atual e às futuras inúmeras possibilidades de vidas que não se restringem à vida noturna e ao sexo. Para aqueles que buscam esse enredo, indico as excelentes “Euphoria” (HBO) e “Skins” (Netflix/Channel 4).