Estreou neste final de semana na Netflix a série "HeartsStopper" que acompanha o dia a dia de Charlie Spring (Joe Locke), adolescente que vive a sua homossexualidade fora do armário. No começo do ano letivo, Charlie conhece Nick (Kit Connor), jogador de Rugby e atleta da escola.
Não é difícil compreender por que a série se tornou um fenômeno de audiência em tão pouco tempo: a partir de um clichê - o gay que se apaixona pelo amigo atleta - a trama, que é uma adaptação da graphic novel de Alice Oseman, se aproveita do amor romântico para inserir uma série de questões espinhosas e que são comuns às vidas LGBTQIA+.
Adolescência fora do armário
De início acreditamos que Charlie é um jovem gay que vive a sua sexualidade de maneira segura e sem problemas, mas o fato é que ele esconde um lado obscuro de sua personalidade que foi moldado por toda sorte de bullying que ele sofreu no ano anterior da trama - somos informados sobre isso.
Charlie acredita - e apenas os seus amigos próximos sabem disso -, que é uma pessoa tóxica e que contamina todos aqueles que se aproximam e que ele intoxica aqueles por quem se apaixona, e por que ele acredita nisso? Porque os seus namorados anteriores vivem no armário e sempre pediram segredo dos relacionamentos, pois não queriam problemas com os colegas e com a família.
A dissimulação de uma suposta segurança e felicidade é um traço produzido pela LGBTfobia estruturada em todas as sociedades: Charlie é a única pessoa de sua escola assumidamente gay, ou seja, ele é centro de atenções, para o bem e para o mal. A suposta segurança esconde densos sofrimentos.
Eu sou gay?
Mas, se com Charlie o roteiro dá conta de uma vida que, pelo menos em termos de sua sexualidade, há alguma segurança, com Nick o roteiro busca tratar do jovem que vive a heterossexualidade padrão que escolheram para ele.
Porém, ao se tornar amigo de Charlie, o personagem de Nick traz algumas questões, por exemplo, quando foi que ele se assumiu heterossexual? E por que a sua mãe sempre presume que ele será pai e se casará com outra mulher. Estes questionamentos podem parecer banais, mas eles acompanham todos os adolescentes LGBTQIA+.
Em determinado momento Nick, após trocar um beijo com Charlie, vai ao Google e digita: "como identificar se eu sou gay"... Todo adolescente LGBT em algum momento se fez essa pergunta e na contemporaneidade pesquisou tal questão.
Sem cair na narrativa trágica, muito comum nas produções LGBTQIA+, mas também sem resvalar para o otimismo extremado, o roteiro, cuja adaptação também foi feita pela autora da graphic novel e isso fez toda a diferença, desenha (literalmente) para o espectador que, ainda que o mundo contemporâneo tenha avanço no direito civil às pessoas não heterossexuais, ainda há uma profunda cisão entre os mundos hetero e LGBT e, por hora, não há reconciliação.
Os corpos LGBTQIA+ no espaço público
Além das questões referentes a autoestima e entendimento da orientação sexual, outro ponto abordado de maneira excelente é a questão do andar dos corpos LGBTQIA+ no espaço público.
Atos como andar de mãos dadas e trocar beijos nas ruas ou em qualquer lugar público para as LGBT pode significar violência e morte.
A questão do abraçar, beijar e trocar beijos no espaço público será um dilema dos personagens da trama e a série desenvolve essa discussão de maneira alegre, mas também densa e consegue transmitir o fato de que as vidas LGBT, desde sempre, são atravessadas por interdições, pela vergonha, humilhação e o medo de expressar o afeto no espaço público.
Além disso, o roteiro é magistral ao nos apresentar personagens que na aparência falam o que querem, mas que no fundo têm as suas respectivas vidas construídas pelo silêncio de tudo aquilo que a LGBTfobia desencorajou a ser dito.
Leve e com muitas cores, “HeartsTopper” consegue mostrar como a igualdade é uma farsa liberal e que a diferença com base no sexo/gênero é cruel com os corpos LGBT desde a infância.
Por fim, é um fato a ser celebrado que a atual geração possa contar com produções como “Hoje eu quero voltar sozinho” (2014), “Sex Education” (2019-atual) e agora “HeartsTopper” (2022-atual), pois, há menos de 10 anos as produções populares eram, em mais de 90%, completamente heterossexuais, as produções LGBT ainda estavam restritas aos chamados circuitos underground, festivais ou canais especializados. A diferença das obras citadas e de “HeartsTopper” é que são populares e dialogam com variados extratos da sociedade.