Biopolítica: o que é o conceito de Foucault que explica o poder na modernidade
A biopolítica é um governo dos corpos que evolui como governo da vida; entenda o conceito e como ele se relaciona ao poder na modernidade
O termo “biopolítica” aparece pela primeira vez na obra de Foucault em 1976, no último capítulo do primeiro volume de sua História da Sexualidade: A vontade de saber.
O capítulo, intitulado “Direito de morte e poder sobre a vida”, brinca com a inversão da máxima que Foucault atribui à Era Clássica: “Deixar viver e fazer morrer”.
Biopolítica - contexto
A inversão é feita sobre o pressuposto do poder soberano — personificado pela figura dos monarcas e imperadores —, que exercia juízo sobre a vida de seus súditos e podia, no seu ato máximo, condená-los à morte. Ou deixá-los viver.
A vida era, então, apenas um “deixar viver”, e o poder se exercia essencialmente “sobre os produtos, bens e serviços” produzidos pela vida, a partir do direito de confisco — de apropriar-se dos bens gerados pelo trabalho.

Era assim com a cobrança de impostos, os sistemas de vassalagem e, enfim, a submissão à vontade soberana, cuja justificativa era encontrada no próprio monarca.
A inversão apresentada por Foucault, que se inicia com a passagem para a Era Moderna, é, por sua vez, a de “fazer viver e deixar morrer” — o poder já não se exerce sobre a morte, mas sobre os fundamentos e a administração da vida; e já não se trata simplesmente de um confisco, mas de um poder “sobre o homem em sua relação com as coisas”: o poder sobre o homem em sua relação com o trabalho — a disciplina produtiva das fábricas —, com as funções reprodutivas e sexuais — a demografia, o estudo dos nascimentos, a profilaxia —, com a biologia — o controle das doenças e a medicina —; e uma certa “docilidade” dos corpos, que perdem o aparato da violência como prerrogativa para as relações sociais e o substituem pela diplomacia, pelo controle das pulsões.
Ela só é possível, é claro, com uma mudança nas formas como o próprio poder se percebe na modernidade. Uma mudança na racionalidade das formas de poder, a partir do século 17, introduz o governo da vida — e mesmo o “governo das formas de governo”, no que Foucault denomina “governamentalidade”. Uma razão própria das funções do governo que pode ser retraçada ao surgimento de uma “razão de Estado”, de um governo que se fundamenta não mais pela vontade do soberano, mas pela forma como este pode conduzir seu povo e seu domínio a atingir sua máxima potência. Isto é, a melhor forma de se governar, e o conhecimento produzido que pode determiná-la (por meio da ciência, da biologia, da economia política).
A diferença inaugurada pela modernidade é, portanto, a de um governo sujeito às técnicas dessa governamentalidade.
O que é biopolítica?
Diz Foucault, na sua Microfísica do Poder: “As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornam vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens.”
Da mesma forma, os soberanos já não governam territórios, mas populações. Já não só transferem recursos, mas disciplinam os corpos a serviço do capitalismo, e regulam as relações do homem numa “anátomo-política” — uma política dos corpos desde o nascer até o morrer (isto é, o deixar-morrer). É uma política de controle, disciplina e vigilância.
É então que Foucault cunha o termo “biopolítica”, ao tratar do “governo da vida” e dos corpos. O governo da vida é uma face do “biopoder” — o poder sobre o fazer-viver, e os cálculos inaugurados por ele.
É assim que se vai começar a pensar, como pensam os conservadores norte-americanos, em aumentar as taxas de natalidade dos “americanos legítimos”; ou que Israel vai bombardear palestinos sob o discurso de “proteger a existência” de sua população.
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A autoridade do soberano já não é exercida na forma de uma cadeia vertical de dominação que tem como fim último e representação máxima de seu poder o “deixar viver”, mas torna-se o projeto racional de um governo que busca regular a relação do homem com as coisas e, principalmente, com os corpos: é um regime produtivo da vida — um fazer-viver.
“A velha potência de morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida.”
A instalação, durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces (anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida) caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima abaixo.
Escolas e Exército, observações econômicas e melhoria dos processos agrícolas, problemas de natalidade e longevidade, a criação de um conceito de “saúde pública”, as questões de habitação e migração, o desenvolvimento de complexos psiquiátricos para tratar desvios de conduta — todos passam ao âmbito do biopoder como “técnicas diversas e numerosas para se obter a sujeição dos corpos e o controle das populações”.
Biopolítica e capitalismo
O biopoder é, nesse ponto, um fundamento essencial do capitalismo, que só é possibilitado pela “inserção controlada dos corpos no aparelho de produção”, e não de quaisquer corpos: necessitam-se corpos “docilizados”, mais fáceis de sujeitar-se ao nível do que exigem os processos econômicos — as longas horas de trabalho, o regime de hierarquias, a produção sensível dos meios de existência que subordina vontades, desejos e pulsões pessoais.
A microfísica do poder, um outro conceito foucaultiano, vai mostrar-se nessas técnicas, que evoluem de maneira profundamente relacionada às formas de subjetivação (de tornar-se sujeito no mundo). Os processos de subjetivação são, assim, atravessados pela “disciplina de si” que nasce junto à anátomo-política e ao biopoder. Sem nem perceber, essas técnicas de disciplina colonizam o mundo da vida e se tornam indissociáveis de quem somos.
A biopolítica é um regime de poder produtivo que visa a produção da própria vida, e a sujeita às técnicas de um autogoverno disciplinar.