Entre 1915 e 1918, durante a Primeira Guerra Mundial, cerca de 1,5 milhão de armênios do Império Otomano — que abarcava partes da Europa, Ásia e África, fundado no final do século XIII e dissolvido em 1923 — sofreram um extermínio sistemático disfarçado como política de Estado.
O extermínio armênio motivou a classificação, no cenário internacional, do genocídio praticado pelo Estado: o extermínio de um grupo étnico ou religioso, hoje reconhecido como crime grave em tribunais internacionais, distinguível de um massacre comum por se dar contra uma identidade ou povo específico.
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No dia 24 de abril de 1915, data que hoje marca o Dia de Luto pelo Genocídio Armênio, centenas de intelectuais foram presos e, posteriormente, executados em Constantinopla (a atual Istambul), dando início à campanha genocida do Império.
Apenas em 2015 o Senado Federal brasileiro reconheceu o Genocídio Armênio e recomendou à presidência da República que também o reconhecesse.
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O que foi o genocídio armênio
Para entender o evento que tirou a vida da população armênia e, nas palavras de Armen Yeganian, embaixador da Armênia no Brasil — em entrevista ao Correio Braziliense —, também apagou “tudo que lembrava a história e a cultura milenar” de sua sociedade, é preciso retraçar as longas e duradouras origens do Império Otomano, fundado por volta de 1299 e dissolvido apenas na primeira metade do século XX — quando deu lugar à República da Turquia. A história do Império Otomano é também a história do Oriente Médio moderno.
O Império nasceu sobre territórios que faziam parte de mais de 30 países, entre Europa, Ásia e África, definido como um califado islâmico relativamente tolerante com minorias religiosas. Os otomanos impunham sobre outras culturas e civilizações uma taxa de impostos específica, e a coexistência cultural era possível por esses meios.
Os armênios, uma das populações sob a "tutela" otomana, seguiam, no entanto, o cristianismo apostólico, o que os tornava uma minoria religiosa no Império.
Eles viviam nas regiões orientais de seu território histórico, a Anatólia, na Ásia Menor, que hoje compõem grande parte da Turquia. Banhado ao norte pelo Mar Negro, ao sul pelo Mediterrâneo e a oeste pelo Egeu, o território passou por diversas conquistas ao longo de sua história — primeiro, integrou o Império Assírio, embora tenha sido colonizado pelos gregos ao longo de toda a sua costa; depois, passou ao controle do Reino Lídio (de Ciro II), dos persas, até ser invadido pelas incursões de Alexandre, o Grande, no século IV a.C.
Em 133 a.C., foi conquistado por Roma, e, no início do século IV, passou a integrar a cidade grega de Bizâncio, posteriormente conhecida como Constantinopla.
A partir de então, a Anatólia passou a ser a porta de entrada, na Europa, para mercadores asiáticos, e especialmente para os europeus de tradição cristã — com portos espalhados por toda a costa do Mar Negro.
Território multifacetado, já dominado por persas, gregos e romanos, a Anatólia foi permeada por turcos-muçulmanos, assim como os Bálcãs. Os armênios viviam como minorias históricas nas regiões orientais da Anatólia, chamados de "a comunidade leal" (millet-i sadika) por seu pagamento de impostos e seu comportamento obediente. Frequentemente pagavam impostos extras e eram excluídos de cargos militares e administrativos de prestígio.
O processo histórico que transformou a população armênia em minoria foi marcado por guerras de expansão, assimilação imperial e reorganizações políticas do Império Otomano. Por serem uma das populações mais antigas do Cáucaso e da Anatólia Oriental, e por terem sido alvo de múltiplas colonizações, possuíam identidade, língua, religião e territórios próprios diversificados, que persistiam muito antes da formação otomana (em 1299).
Aliás, os armênios já se dividiam entre múltiplos impérios antes de sua conquista pelos otomanos, que avançaram sobre suas terras históricas para incorporá-los como súditos: já foram parte do Império Bizantino, do Império Sassânida (conhecido como o último império persa pré-islâmico) e dos persas safávidas, uma dinastia do Irã que reinou de 1501 a 1736.
Ao serem incorporados ao Império Otomano por meio de incursões de invasão, os armênios passaram à sua condição histórica de minoria: eram uma comunidade reconhecidamente cristã, enquanto os otomanos organizavam suas populações em grupos religiosos — e não étnicos —, o que lhes conferiu o título de infiéis e logo os relegou a direitos limitados no Império, como sua exclusão das estruturas militar e política.
Desde a conquista de seu território na Ásia Menor, ademais, os otomanos passaram a estimular a migração de populações turco-muçulmanas para regiões armênias, a fim de promover uma colonização étnico-religiosa capaz de tornar o território mais homogêneo.
Com o tempo, a perda de autonomia e as pressões culturais sofridas pelos armênios aumentaram os instrumentos de repressão do Império e, entre os séculos XVI e XIX, com o avanço das guerras contra a Pérsia e a Rússia, as populações armênias passaram a ser expulsas, deportadas ou tratadas como moeda de troca entre impérios.
A fragilização étnica dos armênios atingiu seu ápice no século XIX e, no início do século XX, o governo otomano iniciou sua política nacionalista de extermínio, às margens da Primeira Guerra Mundial.
Enfraquecido militarmente, o Império Otomano adentrou o século XX num cenário de dependência econômica e instabilidade política. A crise foi o colapso “natural” de uma estrutura imperial que durou séculos e atingia múltiplas dimensões: o endividamento com bancos franceses e britânicos, a ineficiência de suas estruturas administrativas, a divisão interna entre seus grupos étnicos, religiosos e linguísticos, e a perda de territórios e influência ao longo do século XIX.
Além disso, a Guerra Ítalo-Turca (1911–1912) e a Guerra dos Bálcãs (1912–1913) iniciaram o colapso total da autoridade otomana sobre seus antigos territórios, que pouco a pouco tornavam-se independentes. A pressão política pela igualdade de direitos entre os povos de tendência cristã e a tentativa fracassada de reforma como monarquia constitucional foram dois fatores relevantes para a ascensão do grupo chamado “Jovens Turcos” — uma ideologia política que pregava um Estado otomano centralizado e homogêneo, sob a identidade “turca” em vez de “otomana”, que carregava uma multiplicidade cultural secular.
Os nacionalistas turcos, cada vez mais autoritários e defensores da homogeneização populacional, tomaram o poder em 1908, restabelecendo a constituição otomana e, em 1913, concentraram o poder nas mãos de um triunvirato ditatorial: Ísmail Enver (ministro da Guerra), Mehmed Talat (ministro do Interior) e Ahmed Djemal (ministro da Marinha).
Iniciou-se, então, uma cruzada pela assimilação cultural turca, que consistia em expulsar ou eliminar populações que não se rendessem à identidade turca-sunita. Isso envolveu reformas nos aparelhos educacionais, instituições públicas — como tribunais e demais repartições do governo — e uma homogeneização linguística que dizimou línguas e religiões de populações minoritárias.
Entre 1914 e 1918, os armênios foram a população mais perseguida pelo governo ditatorial, acusados inclusive de colaborar com os russos na guerra.
De fato, a relação entre a Rússia e os armênios durante o conflito era complexa: alguns armênios uniram-se à Rússia na Frente Oriental para lutar contra os otomanos, e outros participaram da Campanha russa no Cáucaso. Em 1829, a Armênia Oriental havia sido integrada ao Império Russo, sob a pretensão de estabelecer um território autônomo para os armênios sob tutela russa. Durante a Revolução de 1905 e ao longo da Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha se aproximou do Império Otomano, a Rússia se ofereceu como alternativa aos armênios otomanos, buscando mobilizar seu patriotismo para campanhas militares no Cáucaso.
Isso motivou a retaliação otomana, que iniciou o genocídio dos armênios e o incorporou à campanha homogeneizadora já em curso. Agora também em nome da “segurança nacional”, o governo turco iniciou uma campanha de deportações e expropriações em massa contra os armênios em Constantinopla. Então, em 24 de abril de 1915, o ministro do Interior ordenou que mais de 200 intelectuais e líderes armênios fossem presos em Constantinopla, condenados à execução em massa.
Foram decretadas, além disso, duas leis que permitiam a remoção de populações armênias — consideradas "suspeitas" — e o confisco (isto é, o saque legalizado) de suas propriedades.
A deportação forçada da população envolveu sua expulsão, a pé, para os territórios que hoje compõem a Síria e o Iraque, por centenas de quilômetros — e sem comida, água ou abrigo. Massacres diretos também foram incentivados entre as tropas otomanas, e foram muitos os casos de escravidão sexual e conversão forçada ao islamismo.
A centralização das ordens que permitiram o massacre — por meio de leis e campanhas de hegemonia cultural — caracterizou o pretendido genocídio do Estado otomano, embora alguns Estados tenham optado por não reconhecê-lo ao longo dos anos.
Estima-se que até 1,8 milhão de armênios tenham sido mortos, e suas terras e propriedades foram ocupadas por turcos ou redistribuídas.
Nos anos posteriores, o enfraquecimento gradual do Império Otomano e a ascensão de movimentos nacionalistas entre suas diversas populações — somando-se às derrotas sofridas na Primeira Guerra, na qual lutou ao lado da Alemanha e da Áustria-Hungria — levaram à assinatura do Armistício de Mudros, em 1918, que encerrava as hostilidades entre otomanos e Aliados e permitia que tropas italianas, britânicas, francesas e gregas ocupassem partes do império, inclusive Istambul.
Entre 1919 e 1923, um movimento nacionalista liderado por turcos enfrentou as forças aliadas ocupantes e firmou um novo pacto, o Tratado de Lausanne (assinado em 1923), que reconheceu as fronteiras do atual Estado da República da Turquia. Após a queda do Império, partes da Península Arábica lutaram pela formação de Estados independentes, como a Arábia Saudita; outras, como a Palestina, a Jordânia e o Iraque, ficaram sob tutela britânica, enquanto Síria e Líbano passaram a ter mandatos franceses.
A Formação da Armênia Moderna
O primeiro Estado armênio moderno foi criado em 1918, após o colapso do Império Russo — que cedeu à Revolução Russa de 1917. A então República Democrática da Armênia fora possibilitada pelos esforços de grupos armênios que, até sua criação, viviam como um braço do domínio russo.
A independência foi proclamada em 28 de maio daquele ano, e marcou o estabelecimento do primeiro Estado armênio soberano em mais de 500 anos, após séculos de dominação por impérios e populações étnicas diversas. Mas ele teve uma curta duração: em 1920, apenas dois anos depois, a União Soviética invadiu o território da Primeira República da Armênia, incorporando-o ao seu domínio e transformando-o na República Socialista Soviética da Armênia.
Durante sua curta existência, entretanto, o "primeiro" Estado armênio recebeu até 500 mil refugiados do genocídio praticado pelos turcos, além de deslocados vindos de territórios como o Azerbaijão e a Geórgia, e se constituiu como o embrião do que viria a se tornar o Estado armênio atual, cuja independência foi alcançada de maneira oficial apenas em 1991, com o colapso da URSS.
Após 70 anos sob o governo soviético, os armênios realizaram, em 1991, um referendo acerca da independência nacional, que teve maioria esmagadora de votos a favor da criação de um Estado próprio e soberano.
A acusação de genocídio estatal contra a população armênia continua a ser um tópico sensível e motivo de rejeição por países como a Turquia, sua principal negacionista, que afirma que as mortes armênias sob o Império Otomano ocorreram no contexto de um conflito civil da Primeira Guerra Mundial — sem que tenha havido uma intenção sistemática de exterminar a população étnica —, e o Azerbaijão, que concentra descendentes de seu conflito histórico com a Armênia sobre o domínio da região em disputa de Nagorno-Karabakh, dado em duas guerras ocorridas entre 1991 e 1994.
Famosos armênios
Após o genocídio, muitos armênios emigraram e se dispersaram por países como França, Estados Unidos, Argentina e Brasil, formando núcleos da comunidade armênia que passaram a integrar culturalmente seus países de destino.
Aqui, a comunidade armênia sobrevivente da diáspora concentra-se em mais de 30 mil descendentes, distribuídos principalmente na cidade de São Paulo. Dentre eles, destacam-se alguns nomes conhecidos, como o da família de empreendedores Kherlakian, responsável pela única Carlo’s Bakery fora dos Estados Unidos; o do cantor Fiuk (Filipe Kartalian Ayrosa Galvão); e o da atriz global Aracy Balabanian — falecida em agosto de 2023 e conhecida por novelas como Sai de Baixo e Rainha da Sucata.
É também o caso de Fernando Gasparian, falecido em 2006, amigo e sócio do deputado Rubens Paiva — cuja história foi contada no filme Ainda Estou Aqui, premiado como Melhor Filme Internacional em 2025. Gasparian foi deputado durante a Constituinte de 1988, fundador do jornal Opinião (uma mídia de resistência durante a Ditadura brasileira) e dono da América Fabril, a maior fábrica têxtil da América Latina.
Internacionalmente, a descendência armênia também deu origem a personalidades conhecidas, como as irmãs Kardashian — Kim, Kourtney e Khloé —, filhas de Robert Kardashian, advogado de terceira geração de descendência armênio-americana; e a cantora Cher, filha de um pai armênio-americano, John Sarkisian.
Cher costuma falar abertamente da influência de sua herança armênia e já utilizou suas redes sociais para abordar o genocídio armênio de 1915. “Eu sou armênia, meus avós foram vítimas do massacre no Genocídio Armênio. A Turquia o nega. Eu não”, declarou ela em 2015, no antigo Twitter.
Além disso, em seu álbum Believe, de 1997, Cher incluiu a música Strong Enough, que incorpora influências de elementos da música folk armênia.
Três filmes sobre o genocídio armênio
1. A Promessa (The promise), 2016
Dirigido por Terry George, conta sobre um triângulo amoroso que se desenrola nos últimos "suspiros" do Império Otomano, em meio aos horrores do genocídio armênio. Ele é, provavelmente, o mais conhecido sobre o tema, e foi produzido com financiamento da comunidade armênia.
2. Ararat, 2002
Com direção de Atom Egoyan, cineasta armênio-canadense, Ararat mistura ficção e metacinema ao mostrar a produção de um filme dentro de um filme sobre o genocídio armênio. Fala sobre memória e história, e foi indicado em Cannes.
3. The cut, 2024
O filme, dirigido por Fatih Akin, cineasta alemão de origem turca, conta sobre um pai armênio que sobrevive ao genocídio e parte em uma jornada para reencontrar suas filhas desaparecidas. Ele se destaca pela direção turca, que enfrenta a negação do genocídio pelos turcos.