A Cacau Show, uma das maiores redes de franquias do Brasil, enfrenta uma avalanche de denúncias por parte de franqueados e ex-funcionários. As acusações envolvem práticas abusivas, endividamento forçado e condições de trabalho constrangedoras. Caso operasse na China, a empresa já estaria na mira das autoridades reguladoras — e, muito provavelmente, com as portas fechadas por ordem estatal.
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Franqueados relatam a imposição de taxas consideradas abusivas — como a chamada "taxa do cacau" e cobranças de publicidade —, além de contratos com cláusulas que dificultam a saída da rede sem grandes prejuízos.
Há relatos de empresários que acumularam dívidas milionárias e perderam bens pessoais, como casas e automóveis. Mesmo diante de desastres naturais, como enchentes que comprometeram a operação das lojas, as cobranças continuaram sem flexibilização.
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No ambiente interno, as denúncias são igualmente graves: ex-funcionários relatam assédio moral, homofobia e imposição de rituais corporativos constrangedores — como tatuagens obrigatórias e cerimônias lideradas pelo próprio CEO da companhia.
Diante da gravidade dos relatos, o Ministério Público do Trabalho de São Paulo abriu um inquérito para investigar possíveis irregularidades, incluindo más condições de trabalho e condutas abusivas.
Na China, o destino seria outro
Segundo a especialista em importação Meng Wu, de origem taiwanesa, “no país do ‘empreendedorismo de palco’, aplaude-se quem lucra com o colapso do pequeno. Na China, o desfecho seria outro. O Estado interviria. Rápido.”
Na China, práticas empresariais que prejudicam franqueados — como contratos opressivos, imposição de compras forçadas e ocultação de taxas — são tratadas com rigor. A Administração Estatal de Regulação de Mercado (SAMR), principal órgão antitruste do país, atua com firmeza contra abusos de poder de mercado e condutas anticoncorrenciais.
Como age a SAMR
A SAMR é responsável por aplicar a Lei Antimonopólio da China, que proíbe imposição de condições comerciais injustas a parceiros ou clientes; uso de cláusulas contratuais que limitem indevidamente a concorrência; e abuso de posição dominante para impor obrigações excessivas ou discriminatórias.
Empresas com posição dominante no mercado — ou seja, com grande influência sobre preços e regras — estão sujeitas a sanções severas em caso de abuso. As penalidades incluem multas de até 10% do faturamento anual, confisco de lucros indevidos e ordens para cessar imediatamente as práticas abusivas.
Casos emblemáticos de intervenção na China
A atuação da SAMR atinge grandes conglomerados, como Alibaba, JD.com e Chongqing Yongkang Gas Co. Esses três casos ilustram como a China vem aplicando com crescente firmeza sua legislação antimonopólio, visando proteger consumidores, pequenas empresas e a integridade do mercado interno — sobretudo frente ao avanço de gigantes corporativos em setores estratégicos.
Em abril de 2021, a SAMR aplicou à Alibaba Group uma multa histórica de 18,2 bilhões de yuans (cerca de US$ 2,8 bilhões), a maior já imposta sob a Lei Antimonopólio chinesa até então. A penalidade foi motivada pelo uso da prática conhecida como "er xuan yi" (ou “escolha um entre dois”), na qual a Alibaba obrigava lojistas a vender exclusivamente em sua plataforma, impedindo que comercializassem produtos também em sites concorrentes, como JD.com ou Pinduoduo.
Segundo a SAMR, tal prática restringia de forma indevida a concorrência no setor de comércio eletrônico, prejudicava a inovação e minava os direitos dos consumidores. A empresa foi obrigada não só a pagar a multa, como a revisar seus termos contratuais com lojistas, implementar políticas de compliance e entregar relatórios periódicos às autoridades.
Em 2023, a SAMR iniciou uma investigação sobre a JD.com — uma das maiores varejistas digitais da China — por suspeitas de uso de algoritmos para ajustar dinamicamente os preços de acordo com o perfil do consumidor. A acusação central era de que a plataforma usava big data para cobrar preços mais altos de clientes frequentes, prática conhecida como “discriminação algorítmica” (ou data discrimination). Isso prejudicava tanto consumidores quanto fornecedores, ao distorcer o funcionamento livre e justo do mercado.
O caso levou a uma série de debates públicos sobre ética na inteligência artificial e transparência de plataformas digitais, forçando a empresa a revisar seus mecanismos de precificação e implementar medidas de auditoria algorítmica sob supervisão estatal.
A empresa Chongqing Yongkang Gas Co., fornecedora local de gás natural, foi investigada e penalizada pela SAMR por impor venda casada aos consumidores residenciais. Para ter acesso ao serviço de gás, os clientes eram forçados a comprar itens adicionais, como fogões, válvulas e apólices de seguro residencial, sem a opção de recusá-los. A prática foi considerada abuso de posição dominante, já que a empresa detinha monopólio regional no fornecimento de gás, e os consumidores não tinham alternativas viáveis.
Como resultado, a SAMR determinou a cessação imediata da prática, impôs multas administrativas e obrigou a empresa a emitir reembolsos aos consumidores prejudicados. O caso serviu como alerta para outras companhias de serviços públicos, que passaram a ser mais rigorosamente fiscalizadas por condutas semelhantes.
E se fosse com a Cacau Show?
Se uma empresa como a Cacau Show operasse na China e adotasse práticas semelhantes, a resposta estatal seria dura e imediata. As medidas prováveis incluiriam investigação imediata das práticas comerciais pela SAMR; suspensão temporária das atividades em caso de riscos a consumidores ou franqueados; aplicação de multas e sanções financeiras; reestruturação compulsória de contratos; divulgação pública dos resultados das investigações, com exposição midiática; e responsabilização criminal dos envolvidos, especialmente se o caso implicasse instabilidade social.
Modelo de regulação diferente
Esse tipo de abordagem reflete a lógica do sistema chinês, que prioriza a estabilidade social e a proteção dos pequenos empresários frente ao poder econômico das grandes corporações. O sucesso, na China, precisa coexistir com responsabilidade social e equilíbrio de mercado.
Enquanto no Brasil casos de exploração de franqueados podem passar despercebidos — ou até serem celebrados como exemplos de “sucesso” —, na China, seriam tratados como infrações graves ao interesse público. A atuação proativa da SAMR revela um compromisso estatal com a construção de um ambiente de negócios justo, transparente e equilibrado. Por lá, enriquecer à custa da falência alheia não é sinal de genialidade: é passível de punição.
Como funcionam das franquias no Brasil
No Brasil, o setor de franquias é regulado pela Lei nº 13.966/2019 e permite que empresas consolidadas (franqueadoras) expandam seus negócios por meio de parceiros independentes (franqueados) que operam sob a mesma marca e modelo.
Dados oficiais indicam que, em 2022, o setor faturou R$ 211,4 bilhões, com crescimento de 14,3% em relação ao ano anterior. O país conta com mais de três mil redes de franquias e 184 mil unidades, gerando mais de 1,5 milhão de empregos diretos.
O modelo funciona com base na Circular de Oferta de Franquia (COF), documento obrigatório que detalha informações essenciais para o candidato, e contratos formais que estabelecem direitos e deveres entre franqueador e franqueado. As franquias envolvem taxas iniciais (taxa de franquia), royalties mensais e contribuições para marketing.
Entre as vantagens estão o uso de um modelo de negócio testado, suporte contínuo e reconhecimento de marca. Entre os desafios, destacam-se os custos iniciais elevados e a necessidade de seguir rigorosamente as diretrizes contratuais.
Para quem deseja empreender, o sistema de franquias representa uma alternativa com menor risco, desde que haja análise criteriosa da COF e diálogo com outros franqueados para avaliar o perfil empreendedor adequado.
Como funcionam as franquias na China
Nas últimas décadas, o setor de franquias na China tem acompanhado o crescimento econômico acelerado do país, beneficiando-se da abertura do mercado a modelos de negócios internacionais. Apesar de compartilhar semelhanças com o sistema ocidental, o modelo chinês tem características próprias, amparadas por leis específicas e uma supervisão rigorosa do governo.
A primeira legislação específica sobre franquias foi instituída em 1997, com a “Regulamentação sobre Operação de Franquia”, que protege os direitos de franqueadores e franqueados e estabelece regras para a operação do sistema. Em 2007, essa regulamentação foi atualizada para ampliar as exigências de transparência, tornando obrigatória a entrega de uma Circular de Divulgação de Franquia — documento semelhante à Circular de Oferta de Franquia brasileira — que detalha informações essenciais sobre a empresa, seu histórico financeiro, taxas cobradas e obrigações contratuais.
O mercado de franquias na China é dominado por grandes redes internacionais, sobretudo dos setores de alimentação, varejo, educação e serviços, embora o número de franquias locais também tenha crescido rapidamente. Esse crescimento é impulsionado pela rápida urbanização, expansão da classe média e mudanças nos hábitos de consumo. O governo, por meio da SAMR, exerce papel ativo na fiscalização, combatendo práticas anticoncorrenciais e protegendo os direitos dos franqueados.
No aspecto operacional, os franqueadores devem garantir total transparência aos candidatos antes da assinatura dos contratos, que costumam ser detalhados e vinculativos, com cláusulas rigorosas para proteção da marca e padrões operacionais. As taxas mais comuns são a taxa inicial de franquia, royalties mensais e contribuições para marketing, similares às praticadas no Brasil. Em casos de abuso, a SAMR pode aplicar multas, suspender operações, exigir revisão contratual e, em situações extremas, responsabilizar criminalmente os responsáveis.
O setor movimenta dezenas de bilhões de dólares anualmente, com milhares de redes e dezenas de milhares de unidades espalhadas pelo país. O segmento de alimentação destaca-se como principal fonte de faturamento. O crescimento é associado ao aumento da confiança do consumidor, à urbanização e a políticas governamentais voltadas à modernização do varejo.
Apesar das dificuldades enfrentadas por franqueados diante de grandes corporações com forte poder de mercado, a proteção regulatória tem se fortalecido na China. A adaptação cultural também é um fator crucial para o sucesso, uma vez que franquias estrangeiras precisam adequar seus modelos aos hábitos locais, legislações trabalhistas e particularidades regionais. O governo enfatiza ainda a responsabilidade social das empresas, esperando que mantenham práticas comerciais justas e estáveis.
Esse modelo regulatório e de crescimento aponta para um setor de franquias dinâmico, robusto e em constante evolução, refletindo a complexidade e a maturidade do mercado chinês.
O que diz a Cacau Show
O fundador e CEO da Cacau Show, Alê Costa, encaminhou uma carta aos franqueados em resposta às denúncias que vieram à tona, incluindo revelações sobre processos judiciais e um ambiente interno marcado por acusações de clima de seita e perseguição dentro da maior rede de franquias do país.
Confira a carta na íntegra
"Querido(a) franqueado(a),
Espero que tenham retornado bem após a nossa deliciosa Convenção Nacional de Vendas. Foi uma alegria ter vocês conosco e termos vivido momentos tão especiais.
Aqui na Cacau Show, acreditamos que cada história empreendedora que construímos juntos é única, e é exatamente por isso que estou escrevendo a vocês.
Nos últimos dias, algumas matérias circularam na mídia com interpretações e alegações que não representam quem somos, e tenho noção de como isso pode gerar preocupações. Quero reforçar que, nesses 37 anos de história, sempre buscamos estar ao lado de cada um de vocês, com uma comunicação aberta e transparente, para enfrentar desafios e celebrar conquistas.
Se hoje somos a maior rede de chocolates finos do mundo e a maior franqueadora do Brasil, é porque nunca abrimos mão do que realmente importa: ética, confiança, respeito e, acima de tudo, a conexão verdadeira com você e seu negócio.
Sabemos que o cenário recente tem sido desafiador. Desde o ano passado, enfrentamos o maior aumento de preço do cacau da história, motivado por questões climáticas e dificuldades nas lavouras globais. Além disso, a instabilidade econômica também impactou fatores como crédito e custos operacionais.
Mas quero que você saiba que não estamos parados. Estamos investindo mais do que nunca na melhoria dos nossos processos: reforçamos a área de Logística, aceleramos a construção de um novo Centro de Distribuição e demos passos ousados como o Cacau Park — um espaço pioneiro que representa o futuro da nossa marca e será um orgulho para todos os brasileiros.
Tudo isso é para fortalecer ainda mais o seu negócio e garantir que possamos seguir crescendo juntos, Porque acreditamos que cada loja, cada franqueado, é parte essencial do que somos e do que podemos ser.
Por isso, quero deixar claro que rejeitamos veementemente qualquer afirmação ou acusação que vá contra os valores que sempre nos guiaram. E reafirmo o nosso compromisso com você, com nossos clientes e com o mercado: vamos continuar lado a lado, tocando a vida das pessoas e criando momentos especiais que só a Cacau Show sabe oferecer.
Reconheço esse momento delicado e reforço que estamos mais fortes e unidos do que nunca, acompanhando e gerindo tudo da melhor maneira possível.
Estamos à disposição para conversar e esclarecer qualquer dúvida. A sua confiança é a base dessa história linda que estamos construindo e fundamental para atravessarmos, juntos, esse momento.
Com carinho,
Alê Costa"