CHINA EM FOCO

Apple tornou a China poderosa? Não é bem assim

Livro de Patrick McGee, jornalista do Financial Times, sobre a empresa do Vale do Silício na potência asiática exagera e distorce dados, analisa especialista chinês

Livro de Patrick McGee, jornalista do Financial Times, sobre a empresa do Vale do Silício na potência asiática exagera e distorce dados, analisa especialista chinês
Apple tornou a China poderosa? Não é bem assim.Livro de Patrick McGee, jornalista do Financial Times, sobre a empresa do Vale do Silício na potência asiática exagera e distorce dados, analisa especialista chinêsCréditos: iFeng
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O livro Apple in China: The Capture of the World’s Greatest Company (Apple na China: A captura da maior empresa do mundo, em tradução livre), ainda sem versão em português, lança luz sobre um dos capítulos menos conhecidos — e mais controversos — da história da Apple.

Reprodução Amazon

Escrito por Patrick McGee, repórter do Financial Times, a obra investiga como a gigante da tecnologia, famosa por criar o iPhone, contribuiu para consolidar a China como potência global na fabricação de eletrônicos.

A partir de mais de 200 entrevistas com ex-executivos, engenheiros e fontes ligadas à empresa, o autor mostra que, ao transferir grande parte da sua produção para o país asiático, a Apple não apenas reduziu custos e ampliou lucros, mas também ajudou a impulsionar o avanço tecnológico da China em larga escala.

Ao longo de 304 páginas, McGee detalha como a busca por eficiência e escala levou a Apple a depender fortemente de fábricas chinesas, criando uma relação de interdependência com Pequim que, segundo ele, hoje impõe exigências cada vez mais rígidas à companhia do Vale do Silício. O livro ainda revela bastidores de reuniões secretas, decisões estratégicas e dilemas éticos enfrentados por executivos da marca.

A obra vem sendo discutida por analistas e especialistas em geopolítica e tecnologia como uma contribuição relevante para entender os riscos — e os limites — de negócios bilionários entre o Vale do Silício e a China.

A Apple tornou a China poderosa?

A tese de que a Apple teria desempenhado um papel central no fortalecimento industrial da China vem sendo contestada por especialistas do próprio país asiático. Em artigo publicado em 20 de maio no site da Universidade de Ciência e Tecnologia da China, o vice-diretor do Departamento de Comunicação em Ciência e Tecnologia da instituição, Chen Jing, critica a ideia central do livro — a de que “foi a Apple quem tornou a China poderosa”.

“Se essa narrativa corresponde integralmente aos fatos é algo debatível”, afirma Chen. “O que é inegável, no entanto, é que a manufatura chinesa hoje é extremamente avançada. Atribuir esse sucesso exclusivamente à Apple claramente favorece uma perspectiva estratégica dos Estados Unidos.”

Chen destaca que McGee parte da premissa de que, no início da parceria, a China ainda “não sabia fabricar” e que foi a Apple quem a ensinou. Um dos dados apresentados pelo autor — e que mais chama a atenção — é o número de trabalhadores treinados pela empresa: 28 milhões desde 2008. Isso superaria, por exemplo, toda a força de trabalho do estado da Califórnia.

Segundo dados atualizados de abril de 2025 pelo Departamento de Desenvolvimento do Emprego da Califórnia (EDD, da sigla em inglês), a Califórnia, estado mais populoso dos EUA, conta com uma força de trabalho estimada em 19,8 milhões de pessoas. Esse número inclui todos os residentes com 16 anos ou mais que estão empregados ou procurando ativamente por trabalho — o que abrange tanto trabalhadores assalariados quanto autônomos.

“A afirmação de que a Apple treinou 28 milhões de pessoas definitivamente não é precisa. Esse número parece referir-se aos trabalhadores de toda a cadeia de suprimentos da Apple. Mais justo seria dizer que foram os fornecedores da Apple que os treinaram, o que é algo muito diferente”, sublinha Chen.

Outro dado citado por McGee é que, até 2015, a Apple teria investido anualmente até US$ 55 bilhões na China. O autor compara esse montante, ajustado pela inflação, ao dobro do valor do Plano Marshall, que reconstruiu a Europa após a Segunda Guerra Mundial. A diferença, segundo McGee, é que os investimentos da Apple se concentraram exclusivamente na China — o que sugeriria que a gigante da tecnologia teria sido o principal motor da prosperidade chinesa recente.

Para Chen, essa comparação é simplista e ignora um fator essencial: o planejamento estatal chinês.

Como a China virou potência industrial: o papel dos planos quinquenais

Desde a abertura econômica promovida por Deng Xiaoping em 1978, a China protagonizou uma das transformações industriais mais impressionantes da história moderna. Parte essencial desse processo foram os planos quinquenais, programas de metas econômicas a cada cinco anos que orientam a política pública do país desde 1953. A partir deles, o Estado chinês estruturou, gradualmente, a transição de uma economia agrária para um gigante da manufatura, da tecnologia e da inovação.

Da agricultura às Zonas Econômicas Especiais

A virada começou com o 6º (1981–1985) e o 7º Plano Quinquenal (1986–1990), já sob a política de Reforma e Abertura. Nesse período, a China deu os primeiros passos rumo a um novo modelo, mais flexível e conectado ao mercado global. O foco ainda estava na agricultura, mas surgiram as primeiras Zonas Econômicas Especiais, como Shenzhen, que atraiam investimentos estrangeiros e estimulavam a produção de bens leves para exportação, como calçados e têxteis.

A “fábrica do mundo”

Entre 1992 e 2006, o país acelerou seu processo de industrialização. A entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 foi um marco fundamental, forçando reformas e tornando a indústria chinesa mais competitiva globalmente. Os 8º, 9º e 10º planos quinquenais reforçaram o papel das grandes estatais e consolidaram a China como a “fábrica do mundo”, com exportações em alta e saldo comercial positivo.

Do “Made in China” ao “Designed in China”

A partir de 2006, a meta deixou de ser apenas produzir em volume. O foco passou a ser inovação tecnológica e substituição de importações, conforme apontam o 11º e o 12º planos. O governo passou a investir em áreas como automação industrial, energias renováveis, trens de alta velocidade, semicondutores e TI. Foi nesse contexto que marcas como Huawei, Lenovo e BYD ganharam relevância internacional.

Liderança global em tecnologia

Nos últimos dez anos, a China passou a mirar a liderança em setores estratégicos, conforme estabelecido nos 13º e 14º planos quinquenais. O ambicioso programa Made in China 2025 tornou-se o norte do desenvolvimento tecnológico do país, com foco em IA, biotecnologia, aeroespacial, carros elétricos e semicondutores. Paralelamente, o país passou a apostar em tecnologia limpa como diferencial competitivo, com foco em urbanização inteligente e economia verde.

Interdependência, não tutela

É nesse contexto histórico e estrutural que a análise de Chen Jing ganha força. Segundo ele, embora a Apple tenha contribuído para o desenvolvimento da China, foi o país que ofereceu as condições — planejadas, financiadas e executadas pelo Estado — para que empresas como Apple e Tesla pudessem prosperar.

O especialista recorda que o auge dessa parceria ocorreu em 2016, quando Tim Cook assinou um acordo secreto de US$ 275 bilhões com o governo chinês para ampliar infraestrutura e laços comerciais. No entanto, esse cenário começou a mudar com a posse de Donald Trump em 2017 para seu primeiro mandato como presidente, quando a Apple anunciou a migração de parte da produção para Índia e Vietnã, além de novos investimentos nos EUA.

“Sem o esforço dos fornecedores chineses, a Apple não teria conseguido montar um sistema de produção tão vasto e eficiente”, afirma Chen. “Atribuir todos esses méritos exclusivamente à Apple é injustificável — o que temos aqui é uma relação de ganha-ganha.”

A crítica final de Chen mira o reducionismo geopolítico:

“Deixem a Apple investir na Índia e veremos se será capaz de repetir esse sucesso — a verdade ficará evidente.”

Leia aqui o artigo completo de Chen Jing (em inglês) 

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