CHINA EM FOCO

Opinião: BRICS e as 'armadilhas da dívida' do FMI

Análise do pesquisador Marco Fernandes sobre o fundo alternativo criado para ajudar países do Sul Global a enfrentar crises de liquidez em suas reservas internacionais

Créditos: NDB - O Novo Banco de Desenvolvimento, Banco dos BRICS, está amarrado ao Fundo Monetário Internacional
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Nota da editora: O Arranjo Contingente de Reservas (CRA), criado pelos BRICS em 2014, foi concebido como uma alternativa ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para ajudar os países membros a enfrentar crises de liquidez em suas reservas internacionais. Com um fundo de US$ 100 bilhões, o CRA visa fornecer assistência financeira rápida para evitar que países caiam nas clássicas armadilhas da dívida que são muitas vezes associadas aos empréstimos do FMI. Essas armadilhas incluem condições severas, como cortes nos gastos sociais, desvalorização da moeda e abertura de mercados para o capital privado internacional, que frequentemente exacerbam a pobreza e a desigualdade em países do Sul Global.

Nos últimos dois anos, os BRICS experimentaram uma popularidade inédita em sua existência. Além da expansão realizada em 2023, a lista de países que desejam se juntar ao grupo está em constante crescimento. No entanto, a expansão da adesão plena foi temporariamente suspensa, pois não há capacidade para incorporar mais países no momento. Em vez disso, está sendo discutida a criação da categoria de "países parceiros", uma solução semelhante aos "observadores" na Organização de Cooperação de Xangai.

Por um lado, a popularidade dos BRICS mostra fissuras na hegemonia das potências ocidentais, uma hegemonia que foi erodida pela guerra na Ucrânia, pelas milhares de sanções impostas aos países do Sul Global e pelo apoio incondicional ao massacre do povo palestino.

Por outro lado, essa nova popularidade aumenta a pressão para que os BRICS, nos próximos anos, apresentem alternativas concretas para as demandas mais urgentes do Sul Global, como desenvolvimento econômico, enfrentamento das crises climáticas e ambientais, e combate à pobreza e à desigualdade.

Ao enfrentar e resolver algumas das exigências prementes do Sul Global, acredito que há um potencial inexplorado no Arranjo Contingente de Reservas (CRA) criado pelos BRICS. Com o apoio dos chefes de Estado dos países membros, decisões políticas poderiam ser tomadas em relação ao CRA que poderiam fornecer uma solução de curto prazo para uma questão econômica atualmente premente em muitos países.

Importância e Contradições do CRA

Em 2014, a Cúpula de Fortaleza (Brasil) estabeleceu tanto o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) quanto o decreto que criou o Arranjo Contingente de Reservas (CRA). Enquanto o chamado "Banco dos BRICS" foi concebido como uma alternativa ao Banco Mundial, o CRA tinha como objetivo se tornar uma alternativa ao FMI. O CRA busca garantir ajuda emergencial aos países dos BRICS em caso de problemas de liquidez em suas reservas internacionais.

Em outras palavras, se um país se encontrar com um baixo nível de reservas em moeda estrangeira (na prática, dólares), o que representa um risco de curto prazo para suas operações de comércio internacional ou para o pagamento de serviços da dívida, o CRA prevê o desembolso dos recursos necessários para evitar a suspensão de seu comércio internacional ou até mesmo um calote nos serviços da dívida externa.

É um fundo de US$ 100 bilhões, cuja contribuição está dividida da seguinte forma: 41% da China, 18% da Rússia, Brasil e Índia, e 5% da África do Sul. O poder de voto de cada país corresponde ao peso de sua contribuição financeira, de modo que nenhum país sozinho tem poder de veto – como é o caso dos EUA no FMI. Pelo acordo, o dinheiro permanece nos respectivos bancos centrais e é retirado mediante solicitação através de swaps cambiais entre os dólares nas reservas dos países provedores e a moeda local do país solicitante.

No entanto, apesar de ser uma ferramenta promissora para enfrentar crises de liquidez, o CRA enfrenta contradições. Uma das principais é que, embora tenha sido criado como uma alternativa ao FMI, o acesso a mais de 30% dos recursos do CRA requer a aprovação prévia de um programa do FMI, o que limita a independência do mecanismo e reflete uma contradição em seu propósito original de ser uma alternativa ao fundo controlado pelos EUA.

É um acordo fundamental, pois a escassez de reservas internacionais tem sido a base material para as ações perversas do FMI nas economias do Sul Global nas últimas décadas. No entanto, carrega uma contradição: os cinco países dos BRICS que o criaram têm reservas internacionais substanciais, e é duvidoso que precisem acessar o fundo no curto ou médio prazo. Assim, o fundo existe há nove anos e nunca foi utilizado.

Por outro lado, e como sempre, inúmeros países do Sul Global dependem atualmente de empréstimos do FMI, incluindo Gana, Sri Lanka, Paquistão, Argentina e Quênia, cujas populações têm protestado massivamente por semanas contra um aumento de impostos exigido pelo fundo.

As condições desses empréstimos seguem a mesma cantilena neoliberal de austeridade fiscal das últimas décadas: cortar gastos sociais e abrir ainda mais seus mercados ao capital privado internacional (do Norte Global), uma receita que já devastou inúmeras economias nacionais.

Existem até dois novos membros dos BRICS nessa situação: Etiópia e Egito, sendo que este último, além de ser membro dos BRICS, também é membro do NBD, que tem outro membro, Bangladesh, na mesma situação.

A Etiópia declarou moratória no pagamento dos serviços da dívida em dezembro de 2023 (US$ 31 milhões) e está sendo pressionada pelo Clube de Paris a garantir um empréstimo de US$ 3,5 bilhões com o FMI como condição para suspender os pagamentos da dívida de 2025.

Analistas dizem que o FMI deve impor uma desvalorização cambial ao país e a privatização de parte dos setores bancário e de telecomunicações. Em outras palavras, a Etiópia desvalorizará seus ativos e depois os venderá a estrangeiros. Um clássico exemplo de "armadilha da dívida".

O Egito encontra-se em uma situação semelhante. Solicitou uma extensão de US$ 5 bilhões ao FMI (após solicitar US$ 3 bilhões em dezembro de 2022), que foi confirmada em março de 2024. As condições do Fundo são a desvalorização da libra egípcia, o cancelamento de qualquer mecanismo de controle cambial, rigidez monetária e fiscal, corte de gastos sociais para os mais pobres e o fim dos incentivos estatais para as empresas estatais.

Aposta ousada dos BRICS requer uma decisão política

Agora, vamos imaginar: em vez de solicitar recursos ao FMI e ser obrigado a submeter-se às condições do fundo de Washington, esses países – que já são membros dos BRICS e/ou do NBD – poderiam acessar o Arranjo Contingente de Reservas. Em vez de ligar para Kristalina Georgieva, eles ligam para Dilma Rousseff.

Em vez de se submeter à armadilha da dívida do FMI, buscam soluções de ajuste econômico dentro do marco dos BRICS, cujo objetivo seria priorizar os interesses das economias e dos povos da Etiópia, Egito e Bangladesh e não os interesses de Wall Street ou da City de Londres.

É esta uma proposta idealista demais para um fundo monetário que atualmente possui US$ 100 bilhões e que poderia crescer com contribuições de novos membros com robusta liquidez em reservas internacionais, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos?

Eu não acho. Cerca de 10% dos recursos do fundo resolveriam a emergência da Etiópia e do Egito. No entanto, para que isso aconteça, ainda é necessário revisar outro obstáculo no estatuto do CRA. Atualmente, se um país membro do CRA solicitar recursos do fundo, apenas 30% podem ser autorizados soberanamente pelos países dos BRICS. Os outros 70% devem ser autorizados pelo... FMI!

Em outras palavras, um fundo monetário "alternativo" ao FMI foi criado, mas precisa da bênção do FMI para ser utilizado. É irônico, mas demonstra o que Sergei Glazyev disse recentemente ao se referir ao NBD, o que também se aplica ao CRA:

"O problema é que o NBD funciona de acordo com o status do dólar. Eles precisam reorganizar essa instituição para torná-la viável".

É compreensível, pois ambos foram criados em um contexto diferente do atual, no qual ainda não tínhamos experimentado o acirramento das contradições entre as potências imperialistas e a maioria global. Mas a história exige uma mudança.

Em última análise, esta é uma decisão política dos chefes de Estado dos BRICS. Salvar alguns de seus membros das clássicas "armadilhas da dívida" impostas pelo FMI seria uma vitória política histórica para o Sul Global, que poderia demonstrar, na prática, o potencial da cooperação nos BRICS. Quem sabe, talvez no futuro, o CRA seja ampliado para mais países do Sul.

O resgate para países que enfrentam problemas de liquidez em reservas internacionais é apenas uma medida de emergência, que não resolve os problemas estruturais das relações desiguais entre os países do Norte e Sul Globais dentro do sistema capitalista global. Nem resolve o grave problema da dívida dos países do Sul Global com as instituições financeiras multilaterais e bancos privados nos EUA e na Europa.

Para que isso aconteça, será necessário avançar com diferentes estratégias que abordem os gargalos para o desenvolvimento na América Latina, África e Ásia. Isso pode envolver também um debate global significativo sobre o cancelamento de parte da dívida do Sul Global. No entanto, os BRICS precisam de realizações concretas, e o Arranjo Contingente de Reservas pode ser o nosso fruto mais acessível.

* Marco Fernandes é Co-fundador do Dongsheng e editor da Wenhua Zongheng International. Bacharel e Mestre em História, Doutor em Psicologia Social, pela Universidade de São Paulo

* Artigo publicado originalmente no Valdai Discussion Club

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum