Harmonia é um conceito-chave para entendermos o pensamento chinês: dos imperadores da antiguidade ao presidente Xi Jinping, dos antigos filósofos aos atuais docentes de universidades chinesas, das pequenas aldeias rurais às grandes metrópoles, o termo harmonia sempre teve grande apreço do povo chinês, que ao longo de sua história milenar sempre buscou manter uma relação harmônica com tudo aquilo que faz parte de nossa vida diária.
Mas harmonia é um conceito abstrato, compreendido de diferentes formas por diferentes povos. Os dicionários costumam defini-lo como uma situação de concordância entre diferentes partes ou um equilíbrio entre diferentes elementos que gera uma sensação agradável. Tais definições vagas captam a essência de um conceito intuitivo que temos, mas escondem sutilezas que podem causar diferenças de interpretação.
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Na cultura ocidental, a harmonia costuma ser vista, no campo teórico, como a utopia de um equilíbrio absoluto e completo entre tudo o que existe, e, na prática, como um ajuste de interesses entre diferentes agentes em busca de um consenso.
Dessa visão da harmonia como um processo de ajuste de interesses nasce a visão pasteurizante da globalização ao estilo ocidental, focada em anular diferenças para padronizar a cultura segundo a lógica do mercado: é o modelo das grandes redes de fast food, que disponibilizam o mesmo cardápio em qualquer lugar do planeta para simplificar o processo de produção e reduzir custos.
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Para cada povo, um entendimento
No entanto, como cada povo está acostumado a uma dieta diferente, esse processo acaba sendo dificultado e obriga tais empresas a adaptar seus produtos ao gosto local. Sob a ótica daquela globalização que vimos florescer nos anos 1990, a diversidade cultural é um problema e a imposição de uma única cultura hegemônica seria a solução.
Na China, o conceito de harmonia tem origem no taoísmo. No início, tudo o que existia era aquela unidade pasteurizada com a qual o Ocidente sonha, e justamente por isso não havia harmonia, que depende da interação entre diferentes elementos para existir.
Foi quando essa unidade primordial se dividiu entre o yin e o yang, dois elementos de naturezas opostas, que a harmonização entre eles deu origem a todas as coisas. Um exemplo: se você misturar água com água, terá apenas água, mas ao misturar água com folhas de chá, o resultado não será água nem folhas, será chá. A harmonização de duas coisas deu origem a uma terceira.
Harmonia na diplomacia chinesa
Conseguiu entender porque, enquanto o Ocidente propõe uma harmonia que busca anular as diferenças, a China propõe a harmonização dessas diferenças? No atual momento de tensão internacional, quanto mais os políticos e diplomatas querem falar, menos eles querem ouvir, convertendo o diálogo em um monólogo incapaz de propor as soluções que só podem surgir do contraditório.
O conceito de harmonia tem papel central no pensamento chinês. Na diplomacia, ele atesta a sinceridade do compromisso da China em promover o multilateralismo e jamais buscar hegemonia. Mas é difícil para o Ocidente, acostumado a ver o mundo de outra forma, acreditar nesse compromisso, uma vez que é parte da natureza humana ver o outro como um espelho de si mesmo.
Exemplo na economia
A economia nos dá um outro exemplo de como o conceito de harmonia molda o pensamento chinês: um jovem dos EUA, que vive na China há anos, divulgou um vídeo em suas redes sociais elogiando o progresso das empresas chinesas que fazem veículos elétricos, mas criticou o fato dessas empresas concorrerem entre si em um mercado onde montadoras estrangeiras possuem uma fatia generosa. Na lógica deste jovem, as empresas chinesas deveriam unir forças contra as concorrentes estrangeiras e tomar o espaço ocupado por elas, para só depois concorrerem entre si.
No Brasil dos 1990 aconteceu o oposto do que ele propôs: o lobby das grandes montadoras estrangeiras pela isenção de impostos para veículos com motor até 1.0 lhes permitiu concorrer com a brasileira Gurgel, até então a única a oferecer um carro urbano popular, levando-a à falência.
Com ideias arrojadas e inovadoras, a montadora brasileira trouxe várias novidades ao mercado, de novos materiais ao primeiro carro elétrico produzido em série no país, e chegou até a projetar um veículo com paredes translúcidas entre o motorista e os passageiros para ser usado como táxi, conceito que só voltou a ser explorado em 2020, em plena pandemia, pela chinesa BYD. Sem a Gurgel, o mercado brasileiro de automóveis perdeu muito em termos de inovação.
Os empresários chineses entendem que a concorrência é o motor da inovação, por isso, ao invés de agir em bloco, preferem aprender com os pontos fortes de seus concorrentes e investir em inovação para superá-los ou pelo menos não ficar para trás.
Foi assim, aprendendo e inovando, que a China conseguiu evoluir de um país pobre ofertando mão de obra barata às empresas estrangeiras a uma potência emergente com empresas nacionais altamente competitivas.
A concorrência entre os países é uma mistura de diferentes visões e conceitos que gera inovação, ou seja, ao harmonizar dois elementos de naturezas diferentes, cria-se um terceiro.
Conhecer mais profundamente o conceito chinês de harmonia nos ajuda a entender porque diversas declarações de autoridades chinesas enfatizam a ideia de que adotar medidas protecionistas é um tiro no pé. É o que nos ensina a sabedoria de uma civilização milenar.
* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há oito anos.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum