Uma declaração do presidente eleito dos EUA, Donald Trump, de que os países que integram o BRICS não vão criar uma nova moeda do bloco para substituir o dólar sob o risco de enfrentarem 100% de tarifas gerou reações no Sul Global, inclusive na China.
Durante entrevista regular de imprensa do Ministério das Relações Exteriores da China nesta terça-feira (3), em Pequim, o porta-voz Lin Jian comentou a fala de Trump.
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“Como uma importante plataforma de cooperação para os mercados emergentes e os países em desenvolvimento, o BRICS defende a abertura, a inclusão e a cooperação ganha-ganha, não o confronto em bloco, e não tem como alvo nenhum terceiro. O objetivo é realizar o desenvolvimento e a prosperidade comuns. A China está pronta para continuar trabalhando com os parceiros do BRICS para aprofundar a cooperação prática em vários campos e contribuir mais para o crescimento sustentado e constante da economia mundial”, afirmou Lin.
A ameaça de Trump
No domingo (30), Trump usou a conta no X para ameaçar países do BRICS que queiram aderir a um sistema de pagamentos independente do dólar.
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"A ideia de que os países BRICS estão tentando se afastar do dólar enquanto nós ficamos parados e assistimos ACABOU. Exigimos um compromisso desses países de que eles não criarão uma nova moeda BRICS, nem apoiarão nenhuma outra moeda para substituir o poderoso dólar estadunidense o ou enfrentarão tarifas de 100% e devem esperar dizer adeus à venda para a maravilhosa economia dos EUA. Eles podem ir encontrar outro "otário!" Não há chance de que os BRICS substituam o dólar dos EUA no comércio internacional, e qualquer país que tente deve acenar adeus à América”, escreveu o republicano.
Lula defende sistema de pagamento do BRICS
Em outubro, durante a cúpula do BRICS em Kazan, na Rússia, o presidente Lula, em participação por meio de vídeo, defendeu o desenvolvimento de meios de pagamento alternativos entre os países do bloco para reduzir a dependência do dólar nas transações internas.
Lula afirmou que o Mecanismo de Cooperação Interbancária dos BRICS pretende estabelecer linhas de crédito em moedas locais para reduzir os custos de transação para pequenas e médias empresas como uma maneira de promover uma maior autonomia financeira entre os países do bloco.
Na fala para Kazan, o presidente brasileiro também destacou que o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o Banco do BRICS, que celebra seu décimo aniversário este ano, desempenha um papel central nessa estratégia.
Sob a liderança da ex-presidenta Dilma Rousseff, a instituição administra uma carteira com quase 100 projetos que totalizam financiamentos de aproximadamente 33 bilhões de dólares.
Lula ressaltou que o banco se diferencia das instituições tradicionais, como o FMI e o Banco Mundial, ao evitar condicionalidades e priorizar projetos alinhados às demandas nacionais, com governança baseada na igualdade de voto.
“Agora é chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre nossos países. Não se trata de substituir nossas moedas. Mas é preciso trabalhar para que a ordem multipolar que almejamos se reflita no sistema financeiro internacional. Essa discussão precisa ser enfrentada com seriedade, cautela e solidez técnica, mas não pode ser mais adiada”, disse Lula.
Leia aqui o discurso completo de Lula.
África do Sul nega criação de moeda única pelo BRICS
A África do Sul negou que o BRICS planeje criar uma moeda para substituir o dólar. O porta-voz do Ministério das Relações Internacionais, Chrispin Phiri, em postagem no X no domingo (1), afirmou que a ideia é baseada em “relatos errôneos” e que as discussões no bloco focam no uso de moedas nacionais para transações comerciais.
Phiri esclareceu que as discussões dentro do BRICS focam no comércio entre países-membros usando suas próprias moedas nacionais.
Ele destacou que a África do Sul tem a maior economia da África, enquanto Brasil, Índia e China estão entre os dez maiores países do mundo em população, área e PIB.
Pontuou ainda que todos os cinco países iniciais do BRICS são membros do G20, juntamente com os Estados Unidos.
“Os líderes do BRICS pediram um sistema financeiro internacional reformado para facilitar o comércio em moedas locais. No entanto, o BRICS não está discutindo a criação de uma moeda comum do BRICS”, escreveu.
O porta-voz da diplomacia sul-africana comentou ainda que a África do Sul apoia o uso crescente de moedas nacionais no comércio internacional e transações financeiras para mitigar o impacto das flutuações cambiais, em vez de focar na desdolarização.
“O fortalecimento das redes de bancos correspondentes e o desenvolvimento de infraestrutura para liquidações em moedas nacionais podem promover esse objetivo. Aprimorar os sistemas de pagamento do BRICS para acomodar negociações em moedas locais não implica desdolarização”, finalizou.
Rússia contextualiza uso do dólar
Já o Kremlin classificou como um "tiro pela culatra" as ameaças de Trump de impor tarifas aos países do BRICS caso avancem na criação de uma moeda própria e abandonem o dólar.
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Segundo o porta-voz Dmitry Peskov, a pressão de Washington apenas reforçará a tendência global de adoção de moedas nacionais nas transações comerciais.
Peskov destacou que o dólar está perdendo atratividade como moeda de reserva, um processo que chamou de "erosão" e que estaria ganhando força no mundo. Ele afirmou que a transição para moedas nacionais é uma realidade crescente, não limitada ao BRICS.
Desdolarização durante Cúpula de Kazan
Durante a 16ª Cúpula do BRICS, realizada em Kazan, Rússia, de 22 a 24 de outubro deste ano, os líderes do bloco discutiram o papel do Banco do BRICS no fortalecimento da cooperação financeira entre os países membros.
Além do discurso do presidente Lula, o presidente russo, Vladimir Putin, anfitrião do evento, destacou a importância de iniciativas conjuntas, como a criação de uma plataforma de investimento do BRICS, que facilitaria investimentos mútuos e poderia ser utilizada para financiar projetos em outros países do Sul Global.
O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, expressou apoio às medidas de integração financeira dos países do BRICS, enfatizando a necessidade de aprofundar a cooperação econômica e financeira dentro do bloco.
A Índia é resistente à criação de uma moeda do BRICS. Durante a cúpula em Joanesburgo, em agosto de 2023, Modi resistiu à ideia, resultando em um tratamento tímido do assunto no documento final do encontro. A avaliação é que a Índia prefere focar em fortalecer o uso de moedas locais nas transações comerciais entre os países membros, em vez de adotar uma moeda única para o bloco.
Em Kazan, o presidente chinês, Xi Jinping, também instou os países do BRICS a aprofundarem a cooperação financeira e econômica, reforçando a importância do NDB nesse contexto.
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A Declaração de Kazan, documento final da cúpula, reafirmou o compromisso dos países do BRICS com o fortalecimento do NDB, instando o banco a cumprir seus objetivos de maneira justa e não discriminatória.
Os líderes apoiaram a expansão da filiação ao NDB e a rápida consideração das solicitações dos países do BRICS, de acordo com a Estratégia Geral do banco e políticas relacionadas.
Por que o uso do dólar?
O dólar dos EUA consolidou-se como a principal moeda internacional ao longo do século 20, especialmente após a Segunda Guerra Mundial.
Em 1944, durante a Conferência de Bretton Woods, foi estabelecido um sistema financeiro internacional que vinculava o valor das principais moedas ao dólar, que, por sua vez, era conversível em ouro a uma taxa fixa de US$ 35 por onça troy. Esse acordo posicionou o dólar como a principal moeda de reserva global, devido à robustez econômica dos Estados Unidos no período.
No entanto, em 1971, o presidente Richard Nixon encerrou a conversibilidade do dólar em ouro, medida conhecida como "Nixon Shock". Isso levou ao fim do sistema de Bretton Woods e ao início de taxas de câmbio flutuantes.
Apesar dessa mudança, o dólar manteve sua posição dominante no comércio internacional e nas reservas dos bancos centrais, devido à confiança na economia dos EUA e à falta de alternativas viáveis.
Atualmente, o dólar continua sendo a moeda mais utilizada em transações internacionais e constitui a maior parte das reservas cambiais globais. Essa hegemonia é sustentada, na teoria, pela estabilidade econômica dos Estados Unidos, pela profundidade dos mercados financeiros estadunidenses e pela ausência de substitutos equivalentes no cenário econômico mundial.
O impacto do mundo multipolar
A tendência de desdolarização é alvo da preocupação do presidente eleito dos EUA que ele deixou à mostra com a sua ameaça aos países do BRICS.
Essa redução da dependência global do dólar dos EUA tem sido impulsionada por diversos fatores nos últimos anos:
- Uso do dólar como instrumento de sanções: Os Estados Unidos têm utilizado o dólar para impor sanções econômicas, o que levou países como Rússia e China a buscar alternativas para mitigar os impactos dessas medidas.
- Instabilidades financeiras e políticas: As crises econômicas e políticas aumentaram a insatisfação com o sistema monetário internacional baseado no dólar, incentivando nações emergentes a buscar maior autonomia financeira.
- Avanços tecnológicos: O desenvolvimento de tecnologias como blockchain e moedas digitais facilitou a criação de sistemas de pagamento alternativos, reduzindo a necessidade de intermediários tradicionais.
- Crescimento econômico de países emergentes: Nações como China e membros do BRICS têm aumentado sua participação no comércio global, promovendo o uso de suas próprias moedas em transações internacionais.
- Busca por uma ordem multipolar: Há um movimento crescente para diversificar as reservas internacionais e diminuir a hegemonia do dólar, visando uma distribuição mais equilibrada do poder econômico global.
Esses fatores combinados têm levado a uma reavaliação do papel do dólar no sistema financeiro internacional, com países e blocos econômicos explorando alternativas para aumentar sua soberania econômica e reduzir vulnerabilidades associadas à dependência do dólar.
Desdolarização no pensamento chinês
Uma das principais vozes brasileiras sobre desdolarização é a do economista Paulo Nogueira Batista Jr. Ex-vice-presidente do Banco do BRICS (2015 – 2017) e ex-diretor executivo para o Brasil e outros países do Fundo Monetário Internacional (2007 – 2015), ele participa da edição de maio deste ano da revista Wenhua Zongheng que trata sobre o tema.
A Wenhua Zongheng é uma revista sobre o pensamento político e cultural contemporâneo na China. Publica artigos de intelectuais de todo o país, com diferentes perspectivas ideológicas, e é uma referência importante para o desenvolvimento do pensamento chinês.
O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Coletivo Dongsheng fizeram uma parceria com a revista para publicar uma edição internacional e oferecer aos leitores e leitoras uma oportunidade de interagir com o rico e complexo panorama intelectual da China moderna.
Leia aqui a publicação de maio de 2024.
Perspectiva brasileira para a desdolarização
Em seu editorial na edição de maio deste ano na Wenhua Zongheng, intitulado "O BRICS e o desafio da desdolarização", Batista Jr. debate os esforços de países do BRICS para reduzir a dependência do dólar no comércio global e fortalecer suas soberanias financeiras.
Naquela edição, a maioria das questões sobre a desdolarização são discutidas nos artigos escritos pelos professores chineses Gao Bai, Yu Yongding e Ding Yifan.
O próprio Batista Jr escreveu três vezes sobre a desdolarização e, na apresentação, retoma alguns aspectos do debate em curso e aborda questões levantadas nos três artigos dos pesquisadores chineses.
Batista Jr. relata que, desde 2022, a desdolarização ganhou destaque após Estados Unidos e Europa bloquearem reservas internacionais da Rússia em resposta à invasão da Ucrânia. Essas medidas, vistas como uma "destruição da confiança" no sistema financeiro ocidental, despertaram preocupações em países como a China, grande detentora de títulos em dólar.
Esse cenário levou a um aumento dos esforços globais para reduzir a dependência do dólar. Iniciativas incluem o uso de moedas nacionais em transações internacionais, fortalecimento de sistemas de pagamento alternativos e maior confiança no renminbi chinês. A discussão também se estende à possível criação de uma moeda de referência do BRICS, destacando a complexidade e as implicações geopolíticas dessa transição.
O economista brasileiro aponta desafios políticos e técnicos para uma transição efetiva. Entre os obstáculos estão a resistência dos EUA em abrir mão do “privilégio exorbitante” do dólar, as diferenças entre os países do BRICS e a complexidade de criar mecanismos financeiros alternativos coesos.
A expansão do BRICS e o cenário global instável indicam que a desdolarização continuará a ser um tema central, mesmo enfrentando barreiras significativas.
O que é o BRICS
Criado em 2006, o BRICS reúne Brasil, Rússia, Índia, China e, posteriormente, a África do Sul, que se juntou em 2010.
Durante seu primeiro mandato (2003-2006), o presidente Lula foi um dos principais defensores da aliança estratégica como forma de ampliar o espaço dos países emergentes na economia global e nos organismos internacionais, tradicionalmente dominados por potências ocidentais.
Em 2023, o bloco foi ampliado com a adesão de cinco novos membros: Irã, Arábia Saudita, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos, reforçando sua posição como um dos principais fóruns globais de cooperação entre economias emergentes.
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