Em seu discurso durante a 16ª Cúpula do BRICS realizada na Rússia, o presidente Xi Jinping citou uma obra literária russa: "O que fazer?", de Nikolay Chernyshevsky.
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O encontro de líderes do BRICS foi realizado em Kazan, entre os dias 22 e 24 de outubro.
Quase um mês depois, um dos principais jornais do mundo, The New York Times, publica um artigo de opinião vergonhoso sobre o discurso de Xi e o romance citado por ele.
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O texto é assinado por John Garnaut e Sam Chetwin George, cofundadores da Garnaut Global, uma consultoria de risco geopolítico baseada em Melbourne, na Austrália, que faz as vezes de papagaio do Ocidente e se dedica a criar histórias mirabolantes sobre a China.
O artigo não foge do roteiro e faz ilações risíveis sobre Xi, a China e o romance russo. A dupla classifica o livro do século 19 como “obscuro e ilegível”.
O romance pode até não agradar os autores do artigo, mas é amplamente reconhecido como um dos mais influentes da literatura russa daquele período e impactou figuras históricas como Vladimir Lenin, líder da Revolução Russa.
Lenin, inclusive, chegou a nomear um de seus ensaios mais importantes, "O Que Fazer?" (1902), em homenagem ao romance de Chernyshevsky.
Diplomacia gentil
Os autores do artigo sinofóbico sequer consideram a prática da diplomacia chinesa de ser respeitosa com os anfitriões russos ao mostrar que valoriza seu patrimônio cultural.
Trata-se de uma gentileza diplomática padrão de lideranças bem preparadas: fazer referência a obras literárias ou culturais do país que visitam.
Tanto que quando esteve no Brasil para visita oficial de Estado algumas semanas após o evento em Kazan, Xi fez referências à cultura e literatura brasileiras.
Em um artigo publicado na Folha de S. Paulo em 17 de novembro, intitulado "China-Brasil: Com futuro compartilhado e amizade que supera distâncias é hora de navegarmos juntos sob velas cheias", o presidente chinês mencionou dois grandes escritores brasileiros.
"O fato de que Cecília Meireles e Machado de Assis, ambos poetas e escritores brasileiros bem conhecidos, traduziram poemas da dinastia chinesa Tang reflete uma sinfonia mental entre os dois lados [China e Brasil] que transcende tempo e espaço."
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Essa menção de Xi a dois autores brasileiros ressalta o interesse mútuo e a conexão cultural entre os dois países, evidenciada pelas traduções de poemas chineses realizadas por renomados escritores brasileiros.
Cecília Meireles traduziu cerca de 70 poemas de Li Po e Tu Fu, dois dos autores mais proeminentes da Dinastia Tang, publicados postumamente no volume "Poemas Chineses".
Machado de Assis demonstrou interesse pela China em suas crônicas, abordando temas como a imigração chinesa e as relações sino-brasileiras no século 19.
A referência de Xi a esses escritores brasileiros não apenas homenageia a rica tradição literária do Brasil, mas também enfatiza os laços culturais profundos que unem as duas nações, transcendentais no tempo e no espaço.
Análise absurda
A cereja do bolo na propaganda anti-China publicada pelo New York Times é a afirmação risível de que a referência literária russa seria um “guia espiritual” de Xi e uma indicação de um suposto plano revolucionário do líder chinês para minar valores e instituições ocidentais.
Em sua fala em Kazan, Xi observou que o mundo vivencia um período de turbulência e transformação que nos confronta com escolhas cruciais que vão moldar o nosso futuro e lança uma reflexão.
"Devemos permitir que o mundo desça ao abismo da desordem e do caos, ou devemos nos esforçar para guiá-lo de volta ao caminho da paz e do desenvolvimento? Isso me lembra de um romance de Nikolay Chernyshevsky intitulado 'O Que Fazer?'. A determinação inabalável e o impulso apaixonado do protagonista são exatamente o tipo de força de vontade de que precisamos hoje."
Leia aqui o discurso completo em inglês.
Na interpretação enviesada e ridícula dos autores do artigo no jornal estadunidense, a fala de Xi revela um plano sinistro para destruir o Ocidente.
“O senhor Xi frequentemente recorre à tradição histórica e literária da Rússia para transmitir sua intenção de minar — e, em última análise, substituir — as ideias e instituições ocidentais. Contudo, ao defender um espírito de sacrifício revolucionário dentro dos BRICS, um grupo que está se expandindo para incluir novos membros, Xi está sinalizando a intenção de mobilizar o mundo em desenvolvimento para uma luta intensificada contra o poder estadunidense”, escreveram.
Essa interpretação absurda do discurso de Xi em Kazan vai além de desonestidade intelectual; é pura invenção.
Obras chinesas para formação de Xi
Xi não precisou ultrapassar as fronteiras chinesas para construir sua formação política ou espiritual.
É de conhecimento público - basta um pouco de boa-fé e consultas às fontes oficiais do governo chinês e do Partido Comunista da China (PCCh) - que a formação política de Xi foi profundamente influenciada por obras literárias chinesas, o que não anula a importância de livros estrangeiros, como os russos.
Conforme registros oficiais é possível afirmar que o desenvolvimento intelectual de Xi teve grande influência dos Clássicos do Confucionismo, que são textos como o "Anacletos de Confúcio", considerados fundamentais na cultura chinesa que influenciaram gerações de líderes, incluindo o atual presidente.
Há ainda os escritos de Mao Zedong, como o "Livro Vermelho", que tiveram um impacto significativo na formação política de Xi, especialmente durante sua juventude. Além da literatura da Dinastia Tang (618 a 907), com poemas e escritos que refletem valores e pensamentos que moldaram a cultura e a política chinesas ao longo dos séculos.
Obras de Xi
A abordagem do New York Times sobre o discurso de Xi na cúpula dos BRICS desconsidera o vasto acervo de escritos e declarações do líder chinês, incluindo a série de livros "Xi Jinping: A Governança da China", que detalha sua visão para o desenvolvimento do país e seu papel no cenário global.
A coleção reúne discursos, artigos, entrevistas e outros documentos importantes de Xi e destaca suas ideias e práticas relacionadas ao socialismo com características chinesas na nova era. Os volumes apresentam o pensamento do líder chinês sobre temas como governança, desenvolvimento econômico, políticas sociais, diplomacia e reforma global.
Os textos, organizados pelo Departamento de Comunicação do Comitê Central do PCCh, buscam fornecer uma visão detalhada sobre como o partido aborda desafios domésticos e internacionais. A coleção enfatiza o papel do marxismo adaptado ao contexto chinês e a construção de uma comunidade global de futuro compartilhado.
Publicada em vários idiomas, inclusive em inglês e português, a obra é amplamente utilizada como referência para entender o modelo de governança da China e suas estratégias políticas e econômicas. Com quatro volumes já lançados, a coleção serve como uma ferramenta diplomática e ideológica para fortalecer a compreensão do público internacional sobre o caminho de desenvolvimento escolhido pela China.
O artigo dos australianos, no entanto, escolheu centrar sua tese em uma única referência literária feita em um contexto diplomático. Essa escolha resultou na distorção do significado da citação para apoiar uma narrativa pré-determinada.
O discurso em questão, para quem tem a mínima boa vontade de ler e interpretar, ofereceu uma visão clara das prioridades de Xi para o BRICS e destacou temas como paz, justiça e desenvolvimento.
Xi reafirmou a necessidade de reformas na governança global, com foco em equidade e multilateralismo. Nas palavras dele:
“Devemos construir um BRICS comprometido com a justiça [...] e garantir que a reforma da governança global seja guiada pelos princípios de equidade, justiça, abertura e inclusão.”
O sinal de alerta deste artigo no New York Times é que esse tipo de abordagem enviesada e desonesta molda a compreensão pública e influencia as decisões políticas.
Ao distorcer apelos por paz em declarações de guerra e filtrar tudo pela lente do conflito, grandes jornais do ocidente criam um ambiente em que qualquer tentativa de diálogo construtivo com a China é vista como ingenuidade ou suspeita. Esse pode ser, afinal, o objetivo principal.