Oitenta anos após a vitória dos Aliados, os Julgamentos de Nuremberg permanecem como símbolo da responsabilização por crimes de guerra nazistas. No entanto, pouco se discute sobre os Julgamentos de Tóquio (1946–1948), realizados contra os líderes do Império Japonês, com o objetivo de condenar crimes de guerra, crimes contra a paz e crimes contra a humanidade cometidos no teatro de guerra do Pacífico.
Instaurado oficialmente como Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (TMI-EO), o julgamento foi marcado por tensões políticas, seletividade jurídica e disputas ideológicas. A iniciativa foi comandada pelo general Douglas MacArthur, que, como Comandante Supremo das Forças Aliadas no Japão, governava o país com poderes quase absolutos após a rendição. Foi ele quem emitiu a ordem de criação do tribunal, em 19 de janeiro de 1946, nomeou os juízes e procuradores — entre eles o estadunidense Joseph B. Keenan, procurador-chefe — e estabeleceu as regras do julgamento.
Te podría interesar
MacArthur também atuou politicamente para moldar os rumos do processo. Sua autoridade garantiu o controle da narrativa ocidental, evitando, por exemplo, que os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki fossem considerados crimes de guerra. Ele impediu a responsabilização do imperador Hirohito, sob o argumento de que sua condenação poderia desestabilizar o Japão e comprometer os planos dos EUA de transformar o país em um aliado estratégico na Guerra Fria.
Apenas 28 réus — entre oficiais de alta patente, diplomatas e ex-primeiros-ministros, como Hideki Tojo — foram levados ao tribunal. Sete foram condenados à morte por enforcamento, 16 à prisão perpétua, e dois morreram antes da sentença. O imperador e os membros da família imperial foram poupados por decisão política dos EUA.
Te podría interesar
O tribunal contou com 11 juízes de países aliados: William Webb (Austrália, presidente), John Patrick Higgins (Estados Unidos), William D. Patrick (Reino Unido), I.M. Zaryanov (União Soviética), Henri Bernard (França), Mei Ju-ao (China), Bert Röling (Países Baixos), Edward McDougall (Canadá), Erima Northcroft (Nova Zelândia), Radhabinod Pal (Índia Britânica) e Delfín Jaranilla (Filipinas).
O juiz dissidente
Entre todos os magistrados, destacou-se o indiano Radhabinod Pal, o único a apresentar um voto integralmente dissidente. Em mais de 1.200 páginas, ele absolveu todos os réus — não por negar os crimes, mas por denunciar a hipocrisia e a seletividade do tribunal.
Para Pal, o TMI-EO era uma “encenação de justiça” conduzida pelos vencedores, que julgaram os vencidos com base em leis formuladas após os fatos, violando o princípio fundamental do nullum crimen sine lege.
Ele argumentava que as agressões imperialistas cometidas durante séculos por potências como Estados Unidos, Reino Unido e França nunca haviam sido julgadas. O Japão, portanto, não estava menos comprometido com a paz do que os impérios ocidentais. A diferença, escreveu, “é que o Japão perdeu a guerra”.
O juiz também criticou a dupla moral dos Aliados, ao destacar que muitos dos países que condenavam o expansionismo japonês mantinham vastos impérios coloniais sustentados por ocupações violentas, pilhagens e massacres.
Em sua análise, o julgamento ignorava o contexto histórico de dominação europeia na Ásia, rotulando como “agressão” qualquer resistência asiática ao domínio ocidental, ao mesmo tempo em que naturalizava os próprios crimes coloniais da Europa.
Pal questionou ainda por que ações dos Aliados — como os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki ou os ataques incendiários a Tóquio — não foram incluídas como crimes de guerra. Para ele, a distinção entre criminoso e herói de guerra reduzia-se à vitória no campo de batalha.
Defensor da autodeterminação dos povos asiáticos, Pal via no julgamento uma oportunidade perdida de reconhecer o direito dos colonizados à autonomia. Ao punir apenas os japoneses e preservar o legado imperial dos Aliados, o tribunal — segundo ele — reforçava a hegemonia ocidental sob o disfarce da justiça internacional.
O voto de Pal tornou-se símbolo da resistência anticolonial no Japão, onde há monumentos em sua homenagem. Seu posicionamento antecipou muitas das críticas que hoje reverberam nos debates sobre seletividade, poder e legitimidade no direito internacional.
Ecos do voto de Pal reverberam até hoje
O voto dissidente de Pal permanece como uma das mais incisivas críticas à seletividade do direito internacional. Ele se recusou a legitimar um tribunal que, segundo sua análise, punia apenas os derrotados, enquanto os vencedores — também responsáveis por atrocidades — escapavam impunes.
Para Pal, o Tribunal de Tóquio expressava um projeto político, e não um ideal de justiça universal. Sua crítica continua atual: nenhum líder estadunidense ou britânico jamais foi julgado por ações militares que resultaram em milhares de mortes civis no Vietnã, Afeganistão, Iraque ou Líbia. Em contrapartida, inimigos do Ocidente — como sérvios, ruandeses ou sudaneses — têm sido levados aos tribunais internacionais.
A criação do Tribunal Penal Internacional (TPI), décadas após os julgamentos de Nuremberg e Tóquio, parecia responder ao apelo por uma justiça imparcial. Fundado em 1998 pelo Estatuto de Roma, o TPI foi concebido para julgar crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra com alcance global. No entanto, os Estados Unidos se recusaram a ratificar o tratado.
Em 2002, o Congresso estadunidense aprovou a chamada Hague Invasion Act, que autoriza o uso da força para libertar qualquer cidadão do país detido pelo TPI — uma medida que confirma a previsão de Pal sobre a instrumentalização do direito.
O atual conflito em Gaza expõe, com clareza, essa disparidade. Enquanto a Corte Penal Internacional investiga lentamente possíveis crimes cometidos por Israel, os EUA atuam para impedir mandados de prisão contra líderes israelenses. Ao mesmo tempo, os palestinos enfrentam acusações formais, mesmo sendo vítimas de bombardeios, expulsões e cercos reconhecidos por entidades como Human Rights Watch e Amnesty International como apartheid.
A visão de Pal ecoa nesse cenário: para ele, não pode haver justiça internacional legítima sem imparcialidade — tampouco sem responsabilização das grandes potências. A seletividade reforça exatamente aquilo que ele combateu em Tóquio: a transformação da justiça em instrumento ideológico da hegemonia ocidental.
Sua crítica — formulada em 1948 — antecipa dilemas ainda centrais no século XXI. A omissão diante dos crimes cometidos por potências, o bloqueio à responsabilização de aliados estratégicos e a blindagem dos vencedores revelam uma estrutura profundamente desigual. O direito internacional, embora prometa universalidade, continua se aplicando sob medida — um paradoxo que persiste, de Tóquio a Gaza.
O que representa o imperador para os japoneses
O imperador do Japão é uma figura histórica e simbólica de profundo significado para a cultura, a religião e a identidade do país. Mais do que um chefe de Estado, ele encarna a continuidade da nação japonesa, atravessando séculos de transformações sociais e políticas.
Na tradição xintoísta, religião nativa do Japão, o imperador é considerado descendente direto da deusa do sol, Amaterasu-omikami. Segundo o mito fundador, o primeiro imperador, Jimmu, foi enviado por ela para governar a Terra, conferindo à dinastia imperial um caráter sagrado. Esse simbolismo perdura até hoje, mesmo que a autoridade divina tenha sido oficialmente renunciada.
Desde o século VII, o trono imperial passou a representar a unidade do Estado japonês. Mesmo em períodos de dominação militar por xoguns ou governos civis, a figura do imperador manteve-se como um ponto de referência de legitimidade e estabilidade.
Durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente sob o reinado do imperador Hirohito, o imperador foi reverenciado como chefe supremo das Forças Armadas. Soldados japoneses morriam em seu nome, e sua imagem era tratada com devoção quase religiosa. O conceito de tenno heika ("Sua Majestade Imperial") expressava essa veneração.
Com o fim da guerra e a rendição do Japão em 1945, sob ocupação dos EUA, o general Douglas MacArthur exigiu que Hirohito renunciasse publicamente à sua natureza divina. A declaração, feita em janeiro de 1946, marcou uma virada simbólica e política. A nova Constituição japonesa de 1947 transformou o imperador em “símbolo do Estado e da unidade do povo”, retirando-lhe qualquer poder político.
Hoje, o imperador do Japão exerce funções puramente cerimoniais. Ele participa de rituais religiosos, compromissos diplomáticos e eventos públicos, sendo amplamente respeitado como representante da tradição, da coesão nacional e da continuidade histórica do país. Ainda que sem poder político, sua figura permanece central no imaginário coletivo japonês.
Livro revisita o Julgamento de Tóquio
O livro Judgment at Tokyo: World War II on Trial and the Making of Modern Asia, do professor Gary J. Bass (Universidade de Princeton), foi lançado em 17 de outubro de 2023 pela editora Knopf. Com 912 páginas, a obra é resultado de uma década de pesquisa em arquivos de 18 países e entrevistas com descendentes dos envolvidos no julgamento.
Bass — também autor de The Blood Telegram, finalista do Prêmio Pulitzer — oferece uma análise abrangente do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente. O autor destaca a complexidade geopolítica do julgamento, que contou com juízes de 11 nações aliadas e julgou 28 líderes japoneses por crimes de guerra.
Um dos focos é a decisão dos EUA de poupar o imperador Hirohito, medida estratégica para manter a estabilidade do Japão no pós-guerra. Bass também dedica atenção especial ao voto dissidente de Pal, considerado por ele uma das críticas mais potentes à seletividade do tribunal.
O livro foi aclamado pela crítica e incluído nas listas de melhores publicações do ano por veículos como The Washington Post, The New Yorker e The New York Times. Ainda não há versão em português.
Minissérie na Netflix
A minissérie O Julgamento de Tóquio (Tokyo Trial), lançada em 2016 e disponível na Netflix, dramatiza os eventos do tribunal. Com quatro episódios, a produção internacional traz nomes como Jonathan Hyde e Irrfan Khan, que interpreta o juiz Pal. A série retrata os desafios enfrentados pelos juízes e as complexas decisões políticas e jurídicas envolvidas no processo.
Tanto o livro quanto a minissérie oferecem perspectivas complementares sobre esse capítulo crucial da história do século XX, aprofundando o debate sobre justiça internacional e as dinâmicas de poder no pós-guerra.