Em paralelo à ascensão da extrema direita mundo afora, cresce um movimento preocupante de revisionismo histórico — especialmente em relação à Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Nas redes sociais e na imprensa comercial, multiplicam-se tentativas de apagar os horrores do nazifascismo ou relativizar suas alianças e consequências.
Nesse contexto, a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas celebrações pelos 80 anos da vitória aliada sobre o nazismo, em Moscou, tornou-se alvo de ataques da oposição bolsonarista e de setores da grande imprensa.
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Lula foi o único líder de uma grande democracia ocidental a participar do evento, ao lado de chefes de Estado de países do Sul Global, como China, Cuba, Belarus e Egito.
A imprensa comercial e figuras da extrema direita tentaram associar a viagem a um “alinhamento simbólico” com Vladimir Putin, ignorando o caráter histórico da cerimônia e o fato de que a antiga União Soviética foi responsável por cerca de 70% das baixas sofridas pela Alemanha nazista — um dado fundamental na vitória dos Aliados.
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Críticos acusaram Lula de demonstrar apoio à Rússia em meio à guerra na Ucrânia. Em resposta, o presidente reiterou que sua presença visava fortalecer o compromisso do Brasil com o multilateralismo e a paz. Em entrevista, afirmou ter pedido pessoalmente a Putin o fim do conflito, reafirmando a posição brasileira em defesa da soberania e da integridade territorial das nações. A participação no evento também foi um gesto de respeito à memória histórica — algo que, no Brasil, nem sempre foi tratado com a devida seriedade.
O Brasil e a simpatia histórica com o Reich
A tentativa de desvincular o Brasil da história do nazismo ignora fatos documentados. Durante o período entre guerras e a ascensão de Adolf Hitler, o Partido Nazista fundou seções em diversos países por meio da Auslands-Organisation (AO), compostas exclusivamente por cidadãos alemães natos residentes no exterior. No Brasil, essa seção foi a maior fora da Alemanha.
Fundado em 1928, o partido operou em 17 estados brasileiros, com maior concentração em São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Paraná e Espírito Santo. O Brasil chegou a registrar 2.822 membros oficiais do Partido Nazista, cuja sede nacional ficava no Rio de Janeiro. Sua atuação incluía atividades culturais, promoção do nacional-socialismo, difusão da ideologia de superioridade racial e organização de eventos com símbolos do Terceiro Reich.
Embora a filiação fosse restrita a cidadãos alemães, muitos descendentes de alemães atuavam como simpatizantes, cooperando com escolas, associações culturais e clubes germânicos. Com a entrada do Brasil na guerra, em 1942, o governo Vargas proibiu o partido, prendeu membros e nacionalizou instituições ligadas à Alemanha. O Estado brasileiro, que flertava com o fascismo nos anos 1930, só se alinhou com os EUA após pressões diplomáticas e o afundamento de navios brasileiros por submarinos do Eixo.
Estadão e a hipocrisia editorial
Um dos principais críticos da presença de Lula em Moscou foi o jornal O Estado de S. Paulo — o mesmo que, em 17 de setembro de 1935, estampou em sua capa: “Importante discurso do Sr. Hitler perante o Reichstag – Medidas contra o bolchevismo e os judeus”. O tom da matéria era neutro e protocolar, reproduzindo o conteúdo antissemita do ditador alemão sem qualquer crítica editorial. Hitler era tratado como “Sr.”, e suas falas veiculadas como pronunciamentos legítimos.
Esse episódio revela a postura conivente do jornal frente à ascensão do nazifascismo. Em nome do anticomunismo, muitos veículos reproduziam com simpatia os discursos de Hitler e Mussolini, exaltando a “ordem” e “disciplina” dos regimes. A crítica ao nazismo só se tornaria enfática após o rompimento do Brasil com o Eixo.
O editorial “Uma escolha muito difícil”, publicado em 2 de outubro de 2018, é outro marco dessa ambiguidade. O Estadão declarou que votar em Jair Bolsonaro seria “menos danoso” do que a volta do PT ao poder. O texto foi duramente criticado por normalizar a retórica autoritária do então candidato, promover falsa equivalência entre dois projetos políticos distintos e minimizar riscos reais à democracia. Após a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, o editorial passou a ser citado como exemplo de erro histórico e conivência com o autoritarismo.
Nazistas lotam o Madison Square Garden
Nos EUA, o Partido Nazista atuou por meio do German American Bund, fundado em 1936. Com cerca de 20 mil simpatizantes e 2 mil membros ativos, o grupo realizava comícios com saudações nazistas, bandeiras com suásticas e discursos antissemitas. O mais notório foi em 1939, no Madison Square Garden, reunindo cerca de 20 mil pessoas.
O curta-metragem A Night at the Garden (2017), dirigido por Marshall Curry e indicado ao Oscar em 2018, recupera imagens desse comício e evidencia como o extremismo pode se infiltrar mesmo em democracias consolidadas. O Bund foi dissolvido após a entrada dos EUA na guerra, mas o anticomunismo pós-guerra relativizou rapidamente a violência nazista.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos adotaram uma política ambígua em relação a oficiais nazistas, particularmente os que poderiam ser úteis em seu projeto de poder e na corrida tecnológica contra a União Soviética durante a Guerra Fria. Um dos casos mais emblemáticos é o do engenheiro Wernher von Braun, que liderou o desenvolvimento de foguetes nazistas e, mais tarde, se tornou figura central no programa espacial americano.
Imediatamente após a guerra, os EUA iniciaram a Operação Paperclip, um programa secreto conduzido pela inteligência militar estadunidense com o objetivo de recrutar cientistas, engenheiros e técnicos nazistas — especialmente aqueles envolvidos em áreas estratégicas como armamentos, foguetes e medicina.
Cerca de 1.600 cientistas e especialistas foram levados para os Estados Unidos. Muitos deles eram ex-membros do Partido Nazista e estiveram envolvidos em crimes de guerra ou colaboraram com o regime de Hitler. Washington apagou ou reescreveu registros de afiliação ao nazismo para facilitar a entrada desses profissionais, sob o pretexto de que seriam valiosos na disputa tecnológica contra a URSS.
Von Braun foi o principal responsável pelo desenvolvimento do míssil V-2, o primeiro foguete balístico do mundo, usado pelos nazistas para bombardear Londres e outras cidades europeias, causando milhares de mortes. O V-2 foi desenvolvido com trabalho escravo, especialmente de prisioneiros do campo de concentração de Mittelbau-Dora.
Apesar desse histórico, von Braun foi tratado como herói nacional nos EUA. Ele se tornou diretor do Centro de Voo Espacial Marshall da NASA e liderou o desenvolvimento do foguete Saturn V, que levou o homem à Lua em 1969.
O uso de ex-nazistas nos programas dos EUA gerou críticas desde os anos 1950, mas foi amplamente silenciado ou justificado em nome da segurança nacional e do avanço científico. Só décadas mais tarde o público estadunidense e a imprensa passaram a tratar o tema com mais profundidade e criticidade.
Nazismo tipo exportação
Na Suíça, o National Front chegou a reunir 9 mil membros antes de ser banido em 1943. No Paraguai, a primeira célula oficial do partido fora da Alemanha surgiu em Villarrica, em 1927. Na Argentina, grupos como o Local Group Buenos Aires operavam desde 1931 e, após a guerra, o país se tornou rota de fuga de criminosos nazistas. Apesar de muitos descendentes de alemães não aderirem ao partido, houve uma ampla rede transnacional de apoio ideológico ao nazismo.
A fita de São Jorge e a distorção da memória
Lula e outros líderes internacionais usaram a fita de São Jorge (faixa preta e laranja), e a imprensa brasileira tentou associá-la exclusivamente ao governo de Putin. A fita, no entanto, remonta a 1769, como parte da Ordem Imperial de São Jorge, e foi resgatada pela União Soviética durante a Segunda Guerra. Desde 2005, é distribuída como símbolo civil de memória aos mortos na “Grande Guerra Patriótica”.
Após a anexação da Crimeia, em 2014, o símbolo foi apropriado por grupos pró-Rússia e banido em países do Leste Europeu. Ainda assim, seu uso segue amplo, sendo um emblema de memória histórica, utilizado por veteranos e líderes como Xi Jinping, Díaz-Canel e Abdel Fattah al-Sisi. Reduzir o gesto a propaganda putinista é silenciar o legado da luta antifascista.
Neofascismo no século XXI
O neonazismo, longe de extinto, cresce em países como Brasil, EUA, Alemanha, Itália e França. No Brasil, os grupos ativos passaram de 334 em 2015 para mais de 1.100 em 2022, segundo dados da pesquisadora Adriana Dias. Esses grupos atuam principalmente online, propagando racismo, misoginia, antissemitismo e LGBTQIA+fobia.
Nos EUA, o FBI já classificou o extremismo doméstico de direita como a maior ameaça terrorista interna. Grupos como Atomwaffen Division, The Base e National Socialist Movement atuam com treinamento paramilitar e propaganda digital. Casos como o atentado à sinagoga de Pittsburgh (2018) e o cerco ao Capitólio (2021) ilustram essa ameaça.
A memória falha da França
Em 10 de maio de 2025, cerca de mil ativistas de extrema direita marcharam em Paris, organizados pelo Comitê 9 de Maio. A manifestação foi inicialmente proibida, mas liberada judicialmente. Portando símbolos neofascistas e entoando slogans nacionalistas, o grupo reacendeu o debate sobre os limites da liberdade de expressão.
Exatamente 85 anos antes, em 10 de maio de 1940, a Alemanha nazista invadiu a França. Paris foi ocupada e, em 22 de junho de 1940, a França assinou armistício com o Reich. O governo de Vichy colaborou com os nazistas até 1944, quando os Aliados libertaram o país.
Ver manifestações fascistas nas mesmas ruas onde judeus foram perseguidos e deportados é um lembrete urgente: a vigilância democrática é uma tarefa permanente.
As vestes do fascismo mudam, mas os padrões se repetem: revisionismo histórico, ciberativismo extremista, culto à força e apropriação de crises para fins autoritários. O neonazismo e o neofascismo seguem vivos, adaptados ao século XXI, mobilizando massas e penetrando instituições.
Diante disso, a presença de Lula em Moscou não foi apenas um gesto diplomático. Foi, acima de tudo, um ato de memória. Um grito simbólico contra o esquecimento, a distorção e o avanço dos novos rostos do totalitarismo.
Se a história é território de disputa, é preciso defendê-la com rigor, coragem e compromisso com a verdade. Porque esquecer — como mostra a linha editorial cínica e perigosa de veículos como o Estadão e a marcha neofascista em Paris — é permitir que tudo aconteça outra vez.