A Arábia Saudita, país que deve sediar a Copa do Mundo de 2034, acaba de ser denunciada na Organização Internacional do Trabalho (OIT) por promover graves violações de direitos humanos, em especial pela prática do trabalho análogo à escravidão no setor da construção civil. Cerca de 21 mil trabalhadores de uma série de empresas do país reclamam o não pagamento de salários. Duas dessas empresas, as principais devedoras, declararam falência.
A denúncia é da Internacional de Trabalhadores da Construção e da Madeira (ICM), uma federação sindical internacional com sede central em Genebra, na Suíça, e escritório no Brasil e no Panamá para atender a América Latina. São cerca de 12 milhões de trabalhadores da construção civil, madeira e silvicultura por ela representados através dos 361 sindicatos filiados em 115 países.
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Em nota divulgada para a imprensa, a organização pede que a OIT faça uma investigação completa sobre o setor da construção civil saudita e demanda que a Fifa dê atenção à denúncia, uma vez que o país deve ser a única candidatura para sediar a Copa do Mundo de 2034.
Em resposta à reclamação da ICM, diversos sindicatos do sul e sudeste da Ásia, Europa, América Latina, África e organizações de direitos humanos que identificaram e documentaram violações semelhantes na Arábia Saudita e estão apoiando o apelo à OIT. Entre essas organizações estão Anistia Internacional, Equidem, FairSquare, Human Rights Watch e Solidarity Centre.
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A denúncia enfatiza as más condições de vida e de trabalho imposta à vasta força de trabalho migrante do país e a ICM compilou uma série desses casos a partir de entrevistas com 200 trabalhadores. Em 85% dos casos foi verificada a servidão por dívida e em 65% dos casos houve retenção de passaportes e documentos de identidade. Em outros 63% dos entrevistados foram registradas restrições a rescisões e saídas de contratos e, em 46%, houve retenção de salários.
"Estes abusos são agravados pelo fracasso da Arábia Saudita em respeitar várias convenções internacional do trabalho ratificadas, incluindo a Convenção 29 sobre Trabalho Análogo à Escravidão", diz um trecho do documento divulgado à imprensa pela denunciante.
Resumo dos casos de destaque
Entre os casos que a denúncia está o de um trabalhador migrante que acabou caindo num regime de servidão por dívida ao ser encarregado de taxas de recrutamento consideradas ilegais. Ele chegou a pedir dinheiro para sobreviver e tratar de problemas de saúde, mas a ajuda não foi suficiente e veio a falecer. Outros relatos apontam para a retenção de passaportes e documentos de identidade, e até crimes sexuais, como forma de coerção dos trabalhadores para que aceitassem as condições de trabalho impostas.
"Nós sofriamos. Dormíamos em um armazém com ratos e mosquitos. Passávamos fome. Fomos obrigados a fazer bicos. Alguns de nós não puderam estar com nossos entes queridos no seu leito de morte. Tivemos que sofrer com o frio e o calor. Ficamos doentes sem receber atendimento médico", diz um trecho de relato de trabalhador divulgado pela ICM. A entrevista foi feita em maio de 2024.
A denúncia aponta que entre os cerca de 21 mil trabalhadores que estariam sem receber, uma parte começou a ter os pagamentos quitados após quase uma década de "reclamações prolongadas". No entanto, o número de trabalhadores que estão em situação de vulnerabilidade por conta das dívidas trabalhistas segue alto.
"A Arábia Saudita, onde os sindicatos são proibidos, desrespeita descaradamente as normas internacionais do trabalho e não protege os trabalhadores migrantes que sofrem abusos há mais de uma década. Com a decisão da FIFA sobre a candidatura à Copa do Mundo de 2034 se aproximando e a construção de pelo menos dez novos estádios e infraestrutura, é imperativo que a FIFA e a Arábia Saudita resolvam os salários atrasados de mais de 20.000 trabalhadores - sobre os quais fornecemos evidências - e estabeleçam mecanismos que impeçam qualquer abuso adicional antes mesmo de considerar a candidatura. A FIFA deve parar de se colocar acima das normas internacionais de trabalho e de suas próprias obrigações estatutárias de direitos humanos", declarou Ambet Yuson, o secretário-geral da ICM.
A denúncia faz um apelo à Fifa apontando para sua política de direitos humanos adotada em 2017 que, entre outras coisas, prevê a adoção de medidas para mitigação de abusos trabalhistas e de violações de direitos humanos. O Artigo 7 da Política de Direitos Humanos da FIFA, por exemplo, afirma que "a FIFA se envolverá construtivamente com as autoridades relevantes e outras partes interessadas e fará todos os esforços para defender suas responsabilidades internacionais de direitos humanos".
A Arábia Saudita e os direitos humanos
Os trabalhadores migrantes, particularmente os empregados domésticos e da construção civil, representam mais de um terço da população da Arábia Saudita. Eles são altamente vulneráveis devido ao sistema de patrocínio de vistos chamado Kafala, que cria um desequilíbrio de poder em favor dos empregadores e perpetua abusos.
O país enfrenta críticas frequentes de grupos de direitos humanos devido ao seu histórico duvidoso em relação aos direitos humanos, exacerbado pela discriminação racial e práticas discriminatórias contra trabalhadores migrantes oriundos de países em desenvolvimento. Apesar dos planos de diversificação econômica, a economia saudita continua dependente do petróleo.
Apesar das reformas anunciadas em 2021, o sistema Kafala ainda está em vigor, gerando preocupações sobre o tratamento adequado dos trabalhadores migrantes. Projetos de desenvolvimento como a megacidade NEOM levantam preocupações adicionais sobre despejos forçados e emprego precário para trabalhadores migrantes.
"Pesquisas da Anistia, ICM e outros mostram que a realidade para os trabalhadores migrantes na Arábia Saudita continua terrível, com não pagamento generalizado de salários, confisco de passaportes e restrições à mudança de empregador, o que significa que muitos são submetidos a trabalho análogo à escravidão. A OIT deve agora agir para examinar a queixa da ICM e apelar à Arábia Saudita para que reforme fundamentalmente as suas leis laborais de acordo com as normas internacionais. Com a Arábia Saudita também se candidatando para sediar a Copa do Mundo masculina de 2034, a FIFA também pode desempenhar um papel crucial simplesmente aplicando suas próprias políticas de direitos humanos. Ao negociar acordos vinculativos de direitos humanos antes de finalizar qualquer decisão, a FIFA poderia fornecer um estímulo muito necessário para a reforma trabalhista. Ao não fazê-lo, praticamente garantiria que o trabalho análogo à escravidão estivesse no centro de seu principal torneio", analisa Steve Cockburn, chefe de direitos trabalhistas e esporte da Anistia Internacional.