Autor dos livros “Os Aiatolás e o Receio da República Islâmica do Irã” e "Intrigas no Reino de Allah", este último em parceria com o sheik Rodrigo Jalloul, Renatho Costa, professor de relações internacionais da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), disse em entrevista exclusiva à Fórum que o ataque do governo sionista de Israel ao Irã nesta sexta-feira (19) tem uma ambientação política e, sem danos aparentes, foi desencadeado por Benjamin Netanyahu para aplacar as críticas internas e, assim, manter-se no poder.
"Parece-me que o maior receio mesmo é de que Netanyahu se veja isolado em Israel e no mundo, pois daí terá de recuar em suas ações em Gaza e assumir a 'derrota' frente ao Irã", diz Costa.
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Da Tunísia, onde aprofunda seus estudos sobre Oriente Médio, Costa afirma que, para Israel, tragar o Irã para o conflito no Oriente Médio acaba legitimando o genocídio do povo palestino na Faixa de Gaza.
"Transformar o Irã num país agressor é tentar legitimar todas as ações de Israel, inclusive o genocídio em Gaza. Pretende-se vincular o Hamas ao Irã e estabelecer que o Irã é o responsável por todos os atos dos membros do Hamas. Mas é uma construção absurda, pois o mundo está sendo espectador do genocídio e entendendo cada vez mais que esse fato tem raízes históricas", diz.
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Segundo ele, o ataque de Israel ao Irã ainda tem como objetivo ampliar a visão estigmatizada pela mídia do Ocidente a partir da revolução islâmica, que fez com que o país saísse do domínio cultural e financeiro dos EUA.
"Por mais que o modelo de governo fosse completamente distinto do que era entendido como democrático pelo Ocidente, a transição para uma República Islâmica atendeu à grande maioria da população. Nesse sentido, tendo como base os mais diversos eventos que têm ocorrido desde então, a mídia ocidental tenta transformar o Irã num país distinto dos demais, que viola direitos humanos, que pratica terrorismo, que impõe censura à mídia, entre outros", diz.
"Ao Irã é atribuído o rótulo de “País não Confiável”, contudo, não há notícia de qualquer guerra iniciada pelos iranianos pós-revolução", emenda.
Leia a entrevista na íntegra.
FÓRUM: Quais as consequências práticas desse ataque de Israel ao Irã? É uma ação mais psicológica e de guerra de informação do que um ataque com fins de causar danos?
Renatho Costa: Esse ataque, até certo ponto, foi inesperado, pois contraria o posicionamento dos EUA e aliados europeus. Mas, por outro lado, Netanyahu precisa se manter no poder a todo custo e legitimar suas ações para os grupos internos que o avalizam. De fato, até o momento, o que a mídia iraniana tem mostrado é que não houve qualquer dano ao seu território. Não somente a PressTV tem exposto esse posicionamento, como a Al Jazeera. Evidentemente que muitas informações não são trazidas imediatamente e mesmo podem vir a ser veiculadas posteriormente, mas o que aparenta é que os ataques de Israel não surtiram qualquer efeito.
Partindo de sua pergunta e das análises que foram trazidas, de que o governo israelense teria se fragilizado diante do ataque do Irã a Israel, o receio do primeiro-ministro israelense de perder suas bases fez com que ele lançasse esse ataque, contudo sabendo que não teria impacto destrutivo. Até porque, segundo a mídia regional, houve o abate dos mísseis antes de alcançarem seus alvos. Parece-me que o maior receio mesmo é de que Netanyahu se veja isolado em Israel e no mundo, pois daí terá de recuar em suas ações em Gaza e assumir a "derrota" frente ao Irã. Ainda considero que não há a possibilidade de essa situação escalar de modo que se torne uma guerra em que diversos atores sejam envolvidos. Israel pretende, mesmo, é que o Irã deixe de ser visto como um "ator pária" do sistema internacional, o que vem sendo construído pelo Ocidente e pelos israelenses há décadas. Transformar o Irã num país agressor é tentar legitimar todas as ações de Israel, inclusive o genocídio em Gaza. Pretende-se vincular o Hamas ao Irã e estabelecer que o Irã é o responsável por todos os atos dos membros do Hamas. Mas é uma construção absurda, pois o mundo está sendo espectador do genocídio e entendendo cada vez mais que esse fato tem raízes históricas. Enfim, esse suposto ataque de Israel ao Irã está longe de ser parte de uma estratégia de guerra tradicional, sua intenção é isolar o Irã ainda mais e tirar a atenção de Gaza e da Cisjordânia, onde cada vez mais a mídia está expondo as atrocidades que têm ocorrido por parte das forças militares israelenses e mesmo da violência dos colonos contra os palestinos. Israel está tentando concluir a barbárie que iniciou em Gaza. Mas precisa de tempo, e, em certa medida, trazer o Irã para um conflito midiático é percebido como uma boa estratégia.
FÓRUM: O ataque a Israel colocou o Irã novamente nos noticiários, e com isso, a versão estigmatizada pela mídia. Como foi criada essa visão do Irã pela mídia liberal e quais são as principais mentiras dessa narrativa?
Renatho Costa: A imagem do Irã é reflexo direto da ruptura ocorrida com a Revolução Islâmica, em 1979. Até então, o governo do shah era completamente alinhado aos interesses estadunidenses na região, contudo, a partir do momento que os iranianos passaram a ter sua própria agenda e buscar ampliar sua influência na região, tanto os Estados Unidos quanto alguns países ocidentais iniciaram um processo de desconstrução da legitimidade do governo instaurado no Irã. Por mais que o modelo de governo fosse completamente distinto do que era entendido como democrático pelo Ocidente, a transição para uma República Islâmica atendeu à grande maioria da população. Nesse sentido, tendo como base os mais diversos eventos que têm ocorrido desde então, a mídia ocidental tenta transformar o Irã num país distinto dos demais, que viola direitos humanos, que pratica terrorismo, que impõe censura à mídia, entre outros.
Na verdade, o Irã busca atuar como uma potência regional que tem seus interesses, que, por sua vez, colidem com os interesses estadunidenses. Daí, a desconstrução do Irã como um regime legítimo é algo que a mídia tradicional vem fazendo há anos. O regime teocrático iraniano tem problemas que podem ser encontrados nos mais diversos países do mundo, no entanto, no caso do Irã, é potencializado. Há restrições à participação de oposição em eleições, mas em diversos outros Estados apoiados pelos Estados Unidos sequer há eleições, e essa questão não é um problema para o estabelecimento de relações políticas e comerciais. Ao Irã é atribuído o rótulo de “País não Confiável”, contudo não há notícia de qualquer guerra iniciada pelos iranianos pós-revolução. O apoio a organizações que lutam contra a ocupação israelense também é outra questão frequentemente exposta e entendida como negativa, contudo o Irã é muito coerente em não reconhecer Israel, porém nunca realizou qualquer ataque o país até esta semana. A ausência de relações entre os países não é algo incomum no sistema internacional e isso não pode ser motivo para que um Estado, como o Irã, viva sob o mais rigoroso sistema de sanções.
Enfim, ao buscarem a classificação do Irã como um “país não confiável”, reforça-se a necessidade de se impor as mais diversas sanções para que seu governo seja deposto e se busca a via da ocidentalização. No entanto, no caso do Irã, historicamente já se sabe aonde a ocidentalização levou o país. O governo no período do shah é um exemplo. Assim, em vez de o Irã ser tratado como um pária internacional, para atender aos interesses israelenses e do Ocidente, haveria a necessidade de se entender que o Oriente Médio não é propriedade das potências ocidentais, como era do entendimento de França e Grã-Bretanha quando dividiram a região, no início do século 20. Hoje há outros atores relevantes na região, e mesmo o papel de Rússia e China é fundamental para que o Irã seja considerado um ator que dificilmente será tratado como foram Iraque, Afeganistão e Síria.
FÓRUM: Como analisa o potencial de ação do Irã caso Israel entre em guerra aberta? Há condição de enfrentar as forças sionistas?
Renatho Costa: Esse cenário não é o mais provável, mas se formos tratá-lo como uma possibilidade viável teríamos de considerar que o Estado de Israel tem um forte potencial bélico porque conta com apoio de Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha, entre outros. Caso essa guerra venha a se converter num enfrentamento direto entra Irã e Israel, certamente os iranianos também passarão a contar com o apoio da China e da Rússia, o que poderá reforçar o potencial de destruição do território israelense. Sabe-se que os equipamentos utilizados pelos iranianos não são sua mais alta tecnologia em armamentos, contudo, em um cenário de ataque de fato, onde não haja aviso e que a estratégia seja mais destrutiva do que ameaçadora, o Estado de Israel estará mais vulnerável. Nesse último ataque, os israelenses ainda contaram com o apoio estadunidense e britânico para o abate de mísseis e drones, mas, em uma circunstância mais “realista”, a participação desses atores poderá ser entendida como um risco de eles também se tornarem alvo dos iranianos.
Aventa-se a possibilidade de o Estado de Israel utilizar armas nucleares. Historicamente, entende-se que esse poder é apenas de dissuasão, nenhuma potência nuclear tem a intenção de lançar mão de suas armas com receio da escalada do conflito. Tivemos a oportunidade de conferir mais uma vez esse paradigma no caso dos russos na Ucrânia, em que não utilizaram, apesar de em alguns momentos terem ameaçado o fazer. Assim, não me parece provável que Israel venha a romper esse paradigma e atacar o Irã com armas nucleares, mas, mesmo assim, seu potencial bélico tem o poder de gerar grande destruição aos iranianos. Haveria a necessidade de avaliar como os aliados iranianos entrariam na guerra, se apenas como fornecedores de armamento ou se encararão Israel como um Estado inimigo. Diversos outros desdobramentos adviriam do revide israelense, mas por ora me parece uma opção menos viável.
FÓRUM: Qual o risco de esse conflito direto realmente acontecer? Há potencial para se transformar em um conflito mundial?
Renatho Costa: As possibilidades, no dia de hoje, são pequenas. Israel está envolvido com o genocídio em Gaza e não conta com uma boa imagem internacional. Os israelenses têm desrespeitado medidas da ONU e mesmo tendo conflitos com o presidente Biden, no entanto, ainda assim, não é possível concluir que os Estados Unidos não apoiem Israel, eles continuam apoiando.
Agora, mesmo com a tentativa de o governo israelense criar a sensação de que foi atacado brutalmente pelos iranianos, a comunidade internacional não tem o interesse de abrir um conflito direto com o governo dos aiatolás. Até porque o lançamento de mísseis e drones foi parte de uma resposta à violação “do território iraniano” na Síria, ao terem sua representação diplomática destruída por ataque israelense. Como se percebe, o ato iraniano foi de revide, além do mais, os iranianos seguiram um protocolo muito claro de que não tinham a intenção de gerar danos ao avisarem o que fariam e como fariam. Ou seja, para que a comunidade internacional embarque numa guerra ao lado do Estado de Israel, somente se ele tiver muito a ganhar com o conflito e certeza de sua capacidade de limitar os danos. Neste momento, é evidente que não é possível que um conflito como esse venha a ter um vencedor como num jogo de soma zero, muito provavelmente o conflito poderia se expandir e os efeitos para a economia mundial – que é com que os liberais mais se preocupam – seriam catastróficos. Ou seja, neste momento, é provável que a comunidade internacional faça o que tem feito ultimamente, ou seja, irá condenar o Irã sem considerar como um direito de resposta à violência sofrida e tentará deixar os crimes cometidos pelo governo israelense em Gaza de lado, para que o genocídio deixe a mídia por alguns instantes, assim a máquina de extermínio israelense poderá concluir seu trabalho.
FÓRUM: Caso a guerra seja iniciada e os EUA/Otan resolvam ficar ao lado de Israel, com quais atores internacionais o Irã pode contar?
Renatho Costa: Nesse caso, o mais provável seria que China e Rússia passassem a apoiar os iranianos. A China já vem mantendo relações com os iranianos há décadas e é a grande responsável pela economia iraniana continuar viva. Os chineses não cumprem as sanções como os EUA estabelecem, mas não há muito a ser feito. Nesse sentido, devido às relações próximas entre Irã e China, o apoio Xi Jinping seria fundamental. Provavelmente, a China optaria por bloquear todos os mecanismos de atuação na ONU, como os Estados Unidos têm feito no caso do genocídio em Gaza, e, na sequência, passariam a dar suporte bélico aos iranianos, mas não armas nucleares. A Rússia, que já passa por um processo de exclusão do sistema internacional, certamente buscaria um alinhamento ao Irã. Com esses três atores alinhados no Oriente Médio, dificilmente os Estados Unidos lançariam mão de um ataque terrestre ao Irã, o que poderia significar a entrada dos dois grandes apoiadores do Irã. Por outro lado, Israel somente teria a capacidade de atacar o Irã utilizando força aérea, sem conseguir atuar por terra.
É certo que outros desdobramentos poderiam ser aventados, como a entrada do Hezbollah no conflito, e mesmo do governo sírio e dos houthis do Iêmen. Mas é bem pouco provável que esse cenário se estabeleça, o próprio Irã já afirmou que sua ação de represália contra o ataque de sua representação diplomática foi concluída. Cabe, nesse momento, os Estados Unidos fazerem o Estado de Israel perceber que deve assimilar os ataques que sofreu e não escalar o conflito.
FÓRUM: Há possibilidade de uma guerra nuclear entre os dois países?
Renatho Costa: Bem pouco provável. Uma resposta de Israel utilizando armas nucleares significaria a quebra de um paradigma das relações internacionais, Depois de os Estados Unidos utilizarem armas nucleares contra o Japão, no final da Segunda Guerra Mundial, elas passaram a ser um instrumento de dissuasão.
O Estado de Israel, se viesse a utilizar suas armas, teria praticamente o mundo islâmico contra si, independentemente de serem xiitas ou sunitas, além de perder o apoio de parte das potências ocidentais, que alertam os russos sobre a utilização desse armamento e estariam apoiando os israelenses. Não seria possível manter o apoio de quem vier a utilizar armas nucleares, ainda mais quando o que o Irã fez foi simplesmente revidar um ataque sofrido.
O maior receio dos israelenses é que o Irã alcance a tecnologia do armamento nuclear e nunca mais seja vulnerável. Não é porque o governo iraniano seja diferente do turco, do saudita ou de algum dos emirados, na verdade, o risco – para os israelenses – é que o Irã se torne inviolável. Esse é o papel dos armamentos nucleares nos dias de hoje. O caso clássico é a Coreia do Norte, que consegue manter-se inviolável devido ao seu poderio nuclear. Em certa medida, é do que os ucranianos mais lamentam, se tivessem mantido sua capacidade nuclear e não tivessem “acreditado em promessas”, dificilmente a Rússia teria invadido o país.