CHILE

Panamá Papers, herança de Pinochet e repressão a protestos: quem foi Sebastián Piñera

Ex-presidente do Chile morreu após queda do helicóptero que pilotava em lago na região central do país; A 40 metros de profundidade foi encontrado o corpo do mandatário que revoltou os chilenos

Jair Bolsonaro e Sebastián Piñera.Créditos: Jorge Villegas/Xinhua (agência estatal de notícias oficial do governo da República Popular da China)
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Miguel Juan Sebastián Piñera Echenique, ou apenas Sebastián Piñera, morreu nesta terça-feira (6) após o helicóptero que ele próprio pilotava cair no Lago Ranco, na região central do Chile. Ele voltava de encontro com um amigo e, quando o resgate chegou ao local, a aeronave já estava totalmente submersa. A 40 metros de profundidade foi encontrado o corpo do ex-presidente que revoltou os chilenos a partir de 2019.

Piñera tinha 74 anos de uma vida muito bem vivida com uma fortuna avaliada em R$ 15,4 bilhão de reais (2,8 bilhões de dólares) segundo dados de 2021 da Revista Forbes. Empresário e político, chegou a ocupar por duas vezes a presidência do Chile, de 2010 a 2014 e de 2018 a 2022. Entre os dois mandatos foi o primeiro presidente ‘pro tempore’ da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos) e, após seu último mandato, foi presidente ‘pro tempore’ da Prosul (Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul), cargo que ocupava até o óbito.

Formado em economia em 1971 pela Universidade Católica do Chile,o magnata foi professor de “economia política” até 1988. Em 1989 entrou para a política e foi o chefe de campanha de Hernán Buchi, ex-ministro das finanças do ditador Augusto Pinochet. Seu primeiro cargo viria logo em seguida. Foi uma cadeira no Senado do Chile, ocupada entre 1990 e 1998. Antes disso, se dedicava aos negócios.

Foi dono da Chilevisón, a terceira rede de televisão mais antiga do país, entre 2005 e 2010. No mesmo período foi dono de 26% da Lan Airlines e manteve participação acionária em uma série de empresas. Entre elas a ABSA, de logística, com sede em Campinas, no interior de São Paulo. Ainda nesse sentido foi dono de 13,77% da Sociedad Blanco y Negro, a controladora do Colo-Colo, clube de futebol mais popular do Chile.

Primeiro mandato: conflito de interesses e terremoto

Ele vendeu quase todas as suas participações em ações em 2010, logo que foi eleito presidente. Menos uma. Seus títulos da Axxion tiveram uma alta de 52,73% logo no primeiro mês do seu primeiro mandato e ele foi criticado por não tê-las vendido antes.

Mas seu primeiro mandato não foi criticado apenas pela questão dos conflitos de interesses em relação ao cargo e sua posição como player financeiro. Em 27 de fevereiro de 2010, no seu segundo mês à frente do país, um terremoto assolou o Chile. Ele colocou em marcha um exitoso plano de construir 30 mil novas casas para os atingidos. O problema é que mais de 1,5 milhão de casas e prédios foram destruídos na tragédia que deixou pelo menos 800 mortos.

Ultraliberalismo e herança de Pinochet

Entre 2001 e 2004 Piñera foi o presidente da Renovação Nacional, fruto de três diferentes grupos de direita que estiveram em atividade no país ao longo dos anos 80. A ideologia ultraliberal na economia e conservadora nos costumes ficou evidente logo no começo do seu segundo mandato, em 2018, quando ele propôs a “Agenda Mulher” como resposta institucional das manifestações feministas que tomavam o Chile.

O pacote foi muito criticado por oferecer uma visão conservadora sobre o papel da mulher na sociedade chilena, basicamente como progenitoras, além de oferecer soluções liberalizantes, como a criação de conselhos de paridade de gênero em empresas, que pouco tocavam a situação de precariedade registrada à época no mercado de trabalho feminino. Na ocasião, 31% das mulheres trabalhavam sem contrato, proteção social ou acesso à saúde.

Mas para além do pacote insosso, a situação foi alimentada durante décadas pelo desmonte dos direitos e garantias sociais e trabalhistas realizado pela ditadura do general Augusto Pinochet e revalidada com o advento da nova democracia. Tocando em miúdos, instituições como a previdência social e o sistema público de saúde estiveram nas mãos das famigeradas AFPs (Associações de Fundo de Pensão).

“O sistema das AFP não cumpriu a sua promessa. A promessa era simples: o participante desse modelo poderia aposentar-se com 70% do seu último salário. A média do que o sistema paga, hoje, é de 35%. Muito abaixo do prometido. Especialistas em fundos de pensão dizem que, com a atual estrutura, o sistema não tem como melhorar, pois não superará tais números”, disse Andras Uthoff, ex-assessor da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2019, aos jornalistas Felipe Bianchi e Leonardo Wexell Severo.

“O atual sistema de aposentadoria chileno tem 38 anos e foi imposto pela ditadura de Augusto Pinochet, em 1981. Não houve discussão. O parlamento era uma junta militar, composta por um representante de cada segmento das Forças Armadas. Os generais e o ministro do Trabalho da época, José Piñera, irmão do atual presidente do Chile, Sebastian Piñera, criaram as AFP. Hoje, a capitalização faz nossos idosos morrerem trabalhando e a taxa de suicídio bater recorde”, afirmou, na mesma época e aos mesmos jornalistas supracitados, o representante do movimento No+AFP (Chega de AFP), Mario Villanueva. O dirigente condenava “a perversão de um sistema desenhado para que grandes grupos econômicos e seguradoras transnacionais ampliem seus lucros se aproveitando do sacrifício de milhões de aposentados”.

E era justamente a revolta da juventude chilena que, ao olhar tal sistema de aposentadorias e prever um futuro de “trabalho até a morte”, que as revoltas de 2019 tomara o Chile. E Piñera foi, é claro, um dos principais alvos.

Repressão aos protestos

Os protestos contra contra a catástrofe ultraliberal chilena irromperam em 18 de outubro de 2019 com dezenas de milhares de pessoas ocupando as ruas da capital e das principais cidades do país. De início, os Carabineros – versão ‘chilensis’ da nossa PM – reprimiriam duramente a massa mas também encontraram forte resistência, principalmente dos jovens oriundos das favelas e de movimentos mais radicalizados das cidades, que empreenderam uma rebelião direta contra a ordem vigente.

Foram meses de protestos, que atravessaram inclusive a própria pandemia, e desembocaram na Constituinte que desarmou a política econômica oriunda da ditadura. Também contribuiu, indiretamente, com um aumento de hegemonia do pensamento de esquerda que levou à eleição de Gabriel Boric em 2022.

Fora das instituições, a revolta teve um forte caráter anticapitalista e se opunha a tarifaços no transporte público, aumento do custo de vida, desigualdade de renda e aumento do desemprego. Pautavam, ainda, o acesso à saúde e direitos sociais e o impeachment de Piñera, pego de calças curtas pelo Panamá Papers.

Cerca de 40 pessoas foram mortas nos protestos segundo o Instituto Nacional de Derechos Humanos do Chile. Mais de 3000 civis também foram hospitalizados e 2 mil policiais registraram ferimentos decorrentes da violenta repressão que recaiu sobre a juventude pobre do país.

Panamá Papers

Nos Panamá Papers, Piñera apareceu em mais um conflito de interesses. Segundo reportagens baseadas no documento e publicadas à época, em 2021, ele teria usado de informação privilegiada na venda da Minera Dominga em 2010, uma mineradora que pertencia à família. O Ministério Público chileno pediu investigações sobre o caso enquanto as ruas se mobilizavam pelo seu impeachment.

Em troca do negócio, o comprador, que era seu amigo próximo, pediu a Piñera a não criação de uma área ambiental na zona de operação da empresa, a fim de não atrapalhar a exploração de minérios. A transação movimentou o equivalente a R$ 838 milhões e a área em disputa, é claro, não foi demarcada como sendo de proteção ambiental. Os acordos foram realizados na Ilhas Virgens Britânicas, um famoso paraíso fiscal no Caribe.

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