USINA DE FAKE NEWS

Caso Epstein: um fiapo de verdade forja novelos de mentiras

Fake news e teorias da conspiração a todo vapor em ano eleitoral dos EUA

Créditos: Fotomontagem (Wikimedia Commons) - Donald Trump, seguidor do QAnon, Jeffrey Epstein e Hilary Clinton
Escrito en GLOBAL el

Em ano eleitoral nos EUA, a divulgação da 'Lista de Clientes de Epstein' turbinou a usina frenética de fake news da extrema direita.

O movimento 'Make America Great Again' (MAGA, 'Faça a América Grande de Novo', em tradução livre), que remete ao slogan de Donald Trump, em dobradinha com a turma do QAnon, inundou as redes sociais com teorias da conspiração requentadas a partir de fragmentos de verdades.

Quatro anos após o suicídio do criminoso sexual Jeffrey Epstein na prisão, os teóricos da conspiração de extrema direita continuam apaixonados pela noção de que ele é a chave para provar que democratas proeminentes constituem uma conspiração secreta de pedófilos. 

Com os documentos judiciais relacionados a um processo civil contra sua co-conspiradora de tráfico de pessoas, Ghislaine Maxwell, começando a ser abertos na semana passada, muitos ultradireitistas acreditam que seus inimigos políticos estão prestes a sentir a ferroada da justiça.

Há tempos conteúdo falso de Epstein atravanca o X/Twitter, oficialmente uma fossa de notícias falsas de direita graças a Elon Musk

Com a liberação desses novos documentos sobre o escândalo de Epstein, há uma corrente incessante de mentiras correndo solta no esgoto no qual a web se transformou.

Nesses últimos dias há um frenesi de postagens que supostamente compartilham imagens da “Lista de Clientes de Epstein”.

O termo "Lista de Clientes de Epstein” tem sido uma tendência intermitente na plataforma de Elon Musk nos últimos dias. Mas não é uma descrição precisa do que são os documentos.

Listas sem fontes, espúrias e cheias de erros de digitação nomearam democratas conhecidos e críticos liberais de Trump no mundo do entretenimento como visitantes da ilha privada de Epstein nas Caraíbas.

Já notórios promotores do QAnon, como a jornalista Liz Crokin e contas de fãs populares de Trump, afirmam que o ex-presidente tinha sido na verdade um ator crucial na exposição de Epstein e na prisão de 2019.

O truque é passar pano e minimizar a amizade de longo prazo fortemente documentada entre os dois homens que supostamente terminou em 2004.

Fiapo de verdade para novelo de mentiras

Para isso, um fiapo de verdade forja um novelo de mentiras. Depois que alguns arquivos foram divulgados na última semana, comentaristas de extrema direita procuraram transformá-los em formas favoráveis aos republicanos e a Trump em particular. 

Wikimedia Commons - Benny Johnson

O youtuber e plagiador em série Benny Johnson extraiu dois trechos de depoimentos de testemunhas para declarar que o tesouro de documentos “livra [Donald Trump] de qualquer irregularidade”.

O inventor do Pizzagate, Jack Posobiec, fez uma afirmação semelhante, assim como o rei da bobagem do MAGA conhecido como Catturd, com mais de dois milhões de seguidores.

Duas testemunhas que disseram que nunca viram Trump nas propriedades de Epstein não provam nada de conclusivo sobre o seu relacionamento, que teria ocorrido desde a década de 1980 até meados da década de 2000, quando os dois se tornaram licitantes rivais numa propriedade em Palm Beach, na Flórida. 

Fato é que Trump era um convidado notável nas casas de Epstein até então.

A foto foi tirada em 1997. Jeffrey Epstein e Donald Trump participavam de um evento realizada no resort Mar-a-Lago Club

Alguns internautas também distorceram uma ordem judicial informando que o nome de Doe 107 seria mantido sob sigilo até pelo menos 22 de janeiro, como prova de que uma pessoa estava atrasando o processo por medo de ser nomeada como associada de Epstein.

Um processo judicial anterior, informa a Rolling Stones, Doe 107 é uma suposta vítima e teme pela sua segurança no seu país de residência culturalmente conservador, caso a sua identidade seja revelada.

Isso não impediu que certos direitistas a considerassem, para dar um exemplo, uma “PEDÓFILA FEMININA superpoderosa”, ou sugeriram descaradamente que ela poderia ser qualquer pessoa, de Oprah Winfrey a Angelina Jolie. 

Um outro tuíte alegou falsamente a intenção do diretor Steven Spielberg de “deixar os Estados Unidos se a Lista de Clientes de Epstein for divulgada” e circulou em sites pró-Trump.

Há um fato lascivo sobre Bill Clinton que a direita aproveitou nos documentos não editados. Trata-se do testemunho em que a acusadora Johanna Sjoberg se lembra de Epstein lhe ter dito que “Clinton gosta delas jovens, referindo-se às moças”. 

Embora perturbadora, essa declaração está perfeitamente em conformidade com as acusações que os conservadores têm feito ao ex-presidente durante anos, se não mesmo décadas.

Seth Rich, o Celso Daniel dos trumpistas

Wikimedia Commons - Seth Rich

Em 10 de julho de 2016, Seth Rich foi morto com dois tiros nas costas. Seu relógio, carteira e telefone foram encontrados com ele. A polícia de Washington diz que o assassinato de Seth foi um assalto de rua que deu errado. O caso permanece sem solução.

A morte de Seth rapidamente se tornou uma história nacional, à medida que os teóricos da conspiração se agarravam à atmosfera febril das eleições presidenciais de 2016.

O momento do assassinato e o fato de ele ter trabalhado para um partido político acionaram as engrenagens da fábrica de mentiras da extrema direita.

Poucas semanas após sua morte, o Wikileaks publicou 20 mil e-mails obtidos de computadores do Comitê Nacional Democrata por meio de uma fonte anônima.

A morte de Seth tornou-se objeto de uma série de teorias da conspiração. Dependendo da política dos especuladores, Seth foi morto pelos Clinton ou assassinado por agentes russos. 

Várias teorias o chamavam de fã enrustido de Bernie Sanders, de republicano disfarçado que vazava segredos para a Rússia de Putin ou de patriota morto por um sistema corrupto.

O caso de Seth Rich se assemelha ao caso da morte de Celso Daniel, prefeito de Santo André (SP). Ele foi sequestrado em janeiro de 2002 e encontrado morto dias depois. O caso gerou grande controvérsia e especulação, especialmente por envolver um político de alto perfil do PT.

Assim como os trumpistas, os bolsonaristas e extremistas de direita volta e meia desenterram o episódio para atacar, principalmente, o presidente Lula.

O que foi Pizzagate

Wikimedia Commons - Fachada da Comet Ping Pong

Em março de 2016, o WikiLeaks, conhecido por divulgar documentos confidenciais do governo dos EUA, expôs e-mails privados de John Podesta, líder da campanha de Hillary Clinton para a presidência naquele ano, cujas eleições ocorreram em novembro.

Inicialmente, os e-mails pareciam inofensivos, mas a frequente menção de termos como "pizza" e "queijo" atraiu a atenção de internautas em fóruns anônimos de discussão, como o 4Chan e o Reddit.

Os usuários de fóruns online decidiram iniciar uma investigação por conta própria e concluíram que a expressão "cheese pizza" era um código para "child pornography" devido à semelhança inicial das palavras.

Eles interpretaram que a palavra "pizza", quando mencionada isoladamente, referia-se a "menina", enquanto "hot-dog" seria o código para "menino". Além disso, acreditavam que "sauce" significava "orgia".

Daí emergiu o Pizzagate, teoria da conspiração que sustenta que o mundo é governado por uma inexplicável confraria de traficantes sexuais infantis satânicos. Assim como a QAnon, prospera na decodificação de mensagens supostamente secretas.

Segundo a teoria, os abusos ocorreriam no porão da pizzaria Comet Ping Pong, localizada em Washington. Tony Podesta, um conhecido lobista da capital dos EUA e irmão do coordenador da campanha de Hillary, era frequentador do estabelecimento e teria apresentado James Alefantis, o proprietário da pizzaria, a importantes figuras do Partido Democrata.

E-mails hackeados indicariam que Alefantis e John Podesta organizaram juntos um evento de arrecadação de fundos para a campanha de Hillary Clinton em abril de 2016.

De acordo com a teoria, a pizzaria Comet Ping Pong apresentava vários elementos que sugeriam ser mais do que um simples restaurante. Um deles era seu logotipo, que supostamente continha referências satânicas.

Além disso, a decoração incluía uma pintura na parede, obra do artista plástico Arrington de Dionyso, conhecido por retratar pessoas nuas, cenas de sexo e violência, e que nesta obra específica mostrava pessoas segurando cabeças, inclusive de crianças.

Afirmava-se também que o cardápio da pizzaria continha um símbolo similar ao utilizado por pedófilos na deep web para indicar discretamente suas preferências sexuais.

O caso é visto como um exemplo do perigo que teorias da conspiração da internet podem trazer para o mundo real. Em 4 de dezembro de 2016, um homem chamado Edgar Welch foi com três armas ao Comet Ping Pong disposto a investigar por conta própria a rede de exploração sexual. Ele chegou a disparar três tiros que, por sorte, não atingiram ninguém, antes de se dar conta de que não havia nada errado ali. Welch foi preso.

Porta-voz da conspiração

Liz Crokin - Wikimedia Commons

Uma das principais divulgadoras da conspiração do Pizzagate é a jornalista Liz Crokin.  Ela frequentou a Universidade de Iowa onde cursou ciências políticas e jornalismo. Lá, foi organizadora do Students for Bush, uma organização de apoio à campanha presidencial de George W. Bush em 2000. 

Crokin foi estagiária no Departamento de Estado durante o primeiro mandato de Bush. Depois, fez estágio no programa do analista conservador Bill O'Reilly, The O'Reilly Factor, na Fox News.

No início da carreira, em 2002, Liz cobria notícias de celebridades de Chicago e, depois, Los Angeles.

Em setembro de 2012, ela desenvolveu uma forma viral de meningite que evoluiu para meningoencefalite e causou enxaquecas diárias, vertigens e fotofobia resultantes de danos cerebrais. Seus problemas de saúde resultaram na perda do trabalho em 2013.

Em 2015, Crokin retomou sua carreira como colunista escrevendo para Townhall.  Embora as suas colunas para essa revista se concentrassem principalmente em crimes sexuais, em 2016 ela publicou um artigo intitulado Trump Does the Unthinkable, que listava boas ações atribuídas ao então candidato presidencial Donald Trump.  Essa coluna tornou-se muito popular nas redes sociais entre os de trumpistas.

Durante os primeiros meses da pandemia de Covid-19, ela transmitiu a hashtag #FilmYourHospital, como uma tentativa de provar que a pandemia era uma "mentira" arquitetada pela "cabala" e pela China.

Crokin acabou sendo banida por todas as principais plataformas de mídia social por suas campanhas de desinformação. Até voltar para o X sob a gestão de Musk, que reabriu as tampas do bueiro de mentiras da extrema direita.

O ano eleitoral nos EUA promete vastas emoções na busca por fatos em novelos de mentiras e conspirações mirabolantes da extrema direita a partir de fiapos de verdade.