Quando chegou à Praça da Paz Celestial, em Pequim, na China, nesta sexta-feira (14), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi recebido pelo mandatário chinês, Xi Jinping, com grande pompa e ao som da canção "Novo Tempo", gravada por Ivan Lins em 1980 e que foi executada por uma banda militar.
"No novo tempo / Apesar dos perigos / Da força mais bruta / Da noite que assusta / Estamos na luta", diz um trecho da música, que soa como um recado do governo chinês à comunidade internacional de que sua reaproximação com o Brasil visa inaugurar um novo tempo de governança global, alterando as correlações de força que, há décadas, hegemonizam o poder geopolítico aos Estados Unidos e Europa.
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De fato, este foi o tom dos discursos de Lula e Xi Jinping após suas reuniões bilaterais, que também destacaram a importância da manutenção e ampliação das relações comerciais entre os dois países - atualmente, a China lidera o ranking das nações que mais compram produtos brasileiros, à frente dos EUA e Argentina.
Ao todo, os dois chefes de Estado assinaram 15 acordos que envolvem desde comércio, tecnologia e inovação até combate à fome, entre outros temas. A questão geopolítica, entretanto, foi outro ponto considerado de extrema importância na reaproximação simbólica entre Brasil e China após 4 anos de isolamento e obscurantismo diplomático imposto pelo governo de Jair Bolsonaro.
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“É importante dizer que a China tem sido uma parceria preferencial do Brasil nas suas relações comerciais (...) e é junto com a China que nós temos tentado equilibrar a geopolítica mundial, discutindo os temas mais importantes. Queremos elevar o patamar da parceria estratégica entre os nossos países, ampliar fluxos de comércio e, junto com a China, equilibrar a geopolítica mundial”, disse Lula.
“Os nossos interesses na relação com a China não são apenas comerciais. (…) Temos interesses culturais, temos interesses políticos e nós temos interesses em construir uma nova geopolítica para que a gente possa mudar a governança mundial dando mais representatividade às Nações Unidas”, declarou ainda o mandatário brasileiro.
Xi Jinping, por sua vez, endossou Lula e destacou seu desejo de construir uma nova ordem mundial a partir da ampliação da participação dos países emergentes nos processos decisórios da comunidade internacional. "desenvolvimento constante". Segundo o líder chinês, ambos os países são "importantes mercados emergentes dos dois hemisférios" que possuem "interesses em comum.
"A parceira [entre Brasil e China] saudável e estável desempenhará papel positivo importante para a paz, o desenvolvimento e a prosperidade das regiões e do mundo", assinalou.
Para entender quais os significados e possíveis efeitos geopolíticos que permeiam a retomada da parceria estratégica entre Brasil e China, Fórum conversou com três especialistas: Ariane Roder, professora do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ); Ana Tereza L. Marra de Sousa, professora e integrante do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB) da Universidade Federal do ABC (UFABC); e Rodrigo Gallo, coordenador da pós-graduação em Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
Retomada da política externa brasileira: questões comerciais e geopolíticas
A professora Ariane Roder, da da Coppead/UFRJ, contextualiza explicando que o presidente Lula, em seus dois primeiros mandatos, pautou sua política externa na chamada "autonomia pela diversificação”.
Segundo a especialista, nos governos petistas anteriores "o país buscou primeiramente atuar sem um alinhamento preferencial com uma determinada potência mundial e optou por diversificar suas parcerias internacionais dentro de uma perspectiva mais pragmática, assumindo um papel de maior relevância nas relações internacionais".
"Questionar a geografia política do poder global foi uma das diretrizes que marcou esse período, sendo expressos na articulação do G-20 no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC, o arranjo trilateral do IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), na constituição do BRICS (Brasil, Rússia, Índia e África do Sul) e na busca incessante pela conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU", detalha.
Essas pautas, entretanto, foram interrompidas nos últimos quatro anos com o governo Bolsonaro que, segundo Ariane Roder, "fez com que o Brasil se colocasse em uma posição mais secundária nos debates e decisões que ocorreram no âmbito desses foros globais".
"Com o retorno do Lula ao poder, nesses primeiros 100 dias de governo, a diplomacia vem demonstrando uma busca por recuperar essa trajetória que vinha sendo feita ao longo dos governos petistas no campo da política externa. A relação com a China está dentro deste bojo, pois é um país que vem se configurando na última década como principal parceiro comercial brasileiro, tendo assumido o papel que antes era ocupado pelos Estados Unidos na balança comercial brasileira. Portanto, essa visita tem o caráter primeiramente de retomada de uma relação bilateral que tinha ficado estremecida durante o governo Bolsonaro, sobretudo, no caso particular das vacinas", elucida a professora.
Para além dessas relações comerciais, entretanto, Ariane Roder destaca o caráter geopolítico embutido na reaproximação entre o governo brasileiro e o chinês diante do atual cenário das relações internacionais.
"A China não é só um mercado potente para os fornecedores brasileiros, ou seja, um excelente parceiro comercial, mas também um país que tem assumido na história recente uma posição política e estratégica importante no cenário internacional. Para o Brasil, portanto, essa aproximação também busca ressignificar a posição que o país ocupa no jogo internacional, o que significa, dentre outras coisas, potencializar sua capacidade de influência e conquistar a tão almejada cadeira no Conselho de Segurança da ONU. É dentro deste contexto que o Brasil quer somar esforços com a China nas negociações para a paz no que tange a Guerra Rússia-Ucrânia. Além disso, buscar revitalizar espaços de poder alternativos, tais como o BRICS e as coalizões Sul-Sul, de modo a dar mais poder de negociação aos países em desenvolvimento frente as grandes negociações internacionais"
A professora Ana Tereza L. Marra de Sousa, da UFABC, por sua vez, também enxerga dois objetivos principais no encontro entre Lula e Xi Jinping: a intensificação da parceria comercial e a tentativa de uma reconfiguração das correlações de força no âmbito político mundial.
"Em âmbito mais geral, considerando tensões geopolíticas existentes hoje entre EUA e China, e as pressões que os EUA têm feito no mundo todo para que outros países o ajudem em uma estratégia de contenção ao país, essa reaproximação político-diplomática do Brasil com a China é simbólica, pois mostra a volta de um Brasil autônomo, pragmático e universalista - aspectos que haviam sido abandonados na política externa de Bolsonaro", analisa.
"Para o mundo, a viagem mostra um Brasil autônomo, a fim de abraçar oportunidades econômicas para o seu desenvolvimento e de contribuir com pautas da política global. Ainda, a retomada de uma postura de busca de equilíbrio em sua inserção internacional na qual substitui-se o alinhamento, pelo fortalecimento das relações com países diversos de modo a construir uma posição que lhe dê alguma barganha e maior poder de influência internacional".
Ana Tereza considera, ainda, que "o Brasil de Lula quer um mundo aberto para que se possa explorar oportunidades de desenvolvimento e aumentar a projeção do país no cenário internacional".
"Não interessa que o mundo se feche em áreas de influência ou que se compre o discurso – patrocinado pelos EUA – de uma nova divisão internacional em termos de democracias X autocracias, ou algo do tipo. Para a China, o país considera que precisa de um ambiente externo favorável no qual possa conduzir seu crescimento econômico, então também não interessa 'comprar' o clima de divisão ou nova Guerra Fria, no qual ela é extremamente afetada. Assim, faz sentido para ambos os líderes colocarem as relações em um lugar a partir do qual se favoreça a projeção de um mundo multipolar, por isso reafirmam a necessidade de aprofundar a parceria e reconhecem o importante papel que podem ter – em conjunto e com atuações individuais – dentro de um cenário geopolítico ampliado",
Já Rodrigo Gallo, da FESPSP, concorda que a retomada da parceria Brasil-China é um fator positivo para ambos os países no aspecto comercial e econômico, chamando a atenção para o fato de que não só para o governo brasileiro é importante manter e ampliar os negócios com os chineses, mas que também para o governo de Xi Jinping é de relevância fundamental possuir parcerias com a maior liderança da América do Sul.
O professor, assim como as duas outras especialistas ouvidas pela reportagem, porém, chama a atenção ainda para para a nuance política que a reaproximação Brasil-China traz e os possíveis efeitos desta relação para o mundo no ponto de vista político e diplomático.
"A gente está falando de dois países que são signatários da ONU, membros fundadores, a China membro permanente do Conselho de Segurança. Falar em paz é importante porque é uma premissa básica da ONU. Então, também é uma forma dos dois países sinalizarem que aproximações desse porte também visam de alguma forma reafirmar os compromissos com a carta de fundação da ONU. Quando a gente pensa nessa lógica de paz e desenvolvimento, aí já temos uma questão mais teórica e profunda. Existe um debate de que sem desenvolvimento social e econômico não há segurança, não há paz. Que países com condições econômicas ruim distribuem mal a renda e isso cria problemas de base, como pobreza, desigualdade, fome, etc. E são países potencialmente inclinados para conflitos, por razões diversas, que incluem a sobrevivência de grupos sociais de algum modo desassistidos pelo Estado", introduz Gallo.
"A característica da China enquanto Estado é diferente da Inglaterra, França, EUA… É um país visto pelo Ocidente como um país ainda economicamente e socialmente atrasado, por mais que tenham feito investimentos para aumentar seu PIB. Então, quando se fala em desenvolvimento e segurança em um evento que envolve Lula e Xi Jinping, a gente tem que lembrar desse histórico. Temos uma potência membro do Conselho de Segurança da ONU, na condição de permanente, e uma potência regional, o Brasil, que quer ser membro do Conselho de Segurança. E ambos têm um debate histórico que associa desenvolvimento com segurança. Isso é uma forma, nesse encontro, de mostrar para o mundo que são dois países comprometidos com duas causas. Uma, diretamente relacionada aos motivos que levaram a criação da ONU, a segurança. A outra, que são países com experiência para associar a segurança com questões de desenvolvimento econômico e social".
Nova governança global
Ao analisar o discurso de Lula ao lado de Xi Jinping em defesa de uma nova governança global, Rodrigo Gallo explica que isso consiste em pensar "novas formas de gerenciamento do sistema internacional".
"É um modo de indicar que aquela ordem criada pela ONU num contexto pós Segunda Guerra precisa ser revista. Talvez não dê para a gente pensar mais num mundo multipolar tendo à mente apenas aqueles países que eram grandes potências em determinado momento. A gente tem que entender que hoje o Hemisfério Sul, ou países considerados emergentes, como a Índia e a China, dispõe de condições diferentes para oferecer alternativas de crescimento econômico, alternativas para negociações para a paz global. Então, a gente está falando de uma tentativa de mudar certos mecanismos da arquitetura do sistema internacional. É algo difícil, o próprio Lula admitiu isso, mas são tentativas de reformular o funcionamento do sistema internacional".
A professora Ana Tereza destaca, ao tratar da nova governança global proposta por Lula e Xi Jinping, aspectos que envolvem, por exemplo, as questões climáticas, combate à fome e possibilidade do Brasil obter uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU.
"Uma atuação conjunta dos países pode jogar a luz para questões específicas como as relacionadas à fome e à pobreza extrema, ao direito ao desenvolvimento e ao combate as questões climáticas – que são temas no qual há concordâncias gerais entre os países e que eles podem explorar concertadamente na política global. Ainda, ambos lutam por uma maior atuação de países em desenvolvimento e uma maior abertura a eles em alguns espaços de poder internacional. Em linhas gerais, os países devem continuar a fazer por meio do BRICS pressão para reformas em instituições financeiras, no sistema ONU e por um melhor funcionamento da OMC. Por mais que não haja completa coincidência em todos os pontos (por exemplo, a China nunca apoiou o Brasil abertamente a obter uma cadeira permanente do Conselho de Segurança da ONU), ao falar em conjunto com a China, o Brasil eleva sua voz no cenário externo, e a China divide com outro país o ônus de propor mudanças".
Hegemonia do dólar questionada
Em seu primeiro dia na China, na véspera do encontro com o presidente do país, Lula esteve na cerimônia de posse de Dilma Rousseff como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o chamando Banco dos BRICS, em Xangai, e fez um forte discurso questionando a hegemonia do dólar nas transações comerciais em todo o mundo e defendendo que o lastro das relações comerciais entre países do bloco seja suas próprias moedas.
"Pela primeira vez, um banco de desenvolvimento de alcance global é estabelecido sem a participação de países desenvolvidos em sua fase inicial. Livre, portanto, das amarras das condicionalidades impostas pelas instituições tradicionais às economias emergentes. E mais: com a possibilidade de financiamento de projetos em moeda local. A criação deste Banco mostra que a união de países emergentes é capaz de gerar mudanças sociais e econômicas relevantes para o mundo", declarou o mandatário brasileiro antes de questionar a imposição do dólar.
“Por que não podemos fazer o nosso comércio lastreado na nossa moeda? (...) Quem é que decidiu que era o dólar? Nós precisamos ter uma moeda que transforme os países numa situação um pouco mais tranquila, porque hoje um país precisa correr atrás de dólar para exportar", disparou.
Segundo a professora Ana Tereza, a declaração de Lula sobre o dólar, politicamente, "reafirma a posição de autonomia do Brasil perante o cenário externo, em especial, aos EUA".
"Em termos práticos, a declaração incentiva que os países do BRICS continuem a organizar os instrumentos financeiros e monetários que vão propiciar que as operações possam ocorrer em moedas locais. O NBD já emitiu, por exemplo, títulos em RMB [Renminbi, nome oficial da moeda chinesa]. O desafio será pensar nas outras moedas e avançar no uso da chinesa. Especificamente, no que diz respeito a Brasil e China, o uso de suas moedas bilateralmente inclui operar Clearing de RMB no Brasil e a integração ao sistema de pagamentos internacionais da China (o CIPS), que estão em acordo. Com a declaração, Lula tenta induzir os agentes privados que atuam no comércio bilateral, em especial, a pensarem no uso do RMB", detalha.
A especialista, contudo, alerta que há inúmeros desafios para a implementação da medida, entre eles o fato de que o uso do dólar oferece menos custos transacionais e que a moeda chinesa não é considerada plenamente conversível.
"Por outro lado, a ascensão da moeda chinesa é um dado da realidade hoje e deve continuar ganhando importância de acordo com que a China também torna-se cada vez mais central para o mundo. Assim, é saudável que mecanismos sejam desenvolvidos entre os países visando o uso da moeda, contudo, não é algo que em um horizonte previsível desbanque hegemonia do dólar", emenda Ana Tereza.
Rodrigo Gallo vai na mesma linha. O professor da FESPSP explica que "a proposta de usar moeda local pra fazer negociação entre os países do BRICS é uma forma de desafiar não só essa diplomacia do dólar criada pelos EUA num contexto de pós-Segunda Guerra, mas é também uma maneira de condições para proporcionar uma outra mudança de base multilateral".
"Isso é uma forma de indicar que há um caminho de transformação. Mas, claro, provavelmente haverá muita pressão norte-americana para que isso não aconteça. Então, não é um trabalho que se realiza a curto prazo. Os mecanismos de troca a partir desse novo sistema precisam ser desenhados, mas também requerem negociações diplomáticas bem feitas com EUA e países ocidentais para garantir que não haja problemas com relação a essa mudança. É uma proposta interessante mas que depende de todo esse conjunto de negociações", sublinha.
A professora Ariane Roder, por sua vez, adverte que a reaproximação entre Brasil e China, tanto no âmbito comercial e financeiro quanto geopolítico, "pode trazer efeitos colaterais" dada a rivalidade que vem se intensificando entre o país asiático e os EUA na disputa pelo poder global.
"Isso significa que essa aproximação do Brasil com a China pode implicar nas relações com os Estados Unidos (também um importante e histórico parceiro estratégico e comercial). O Brasil precisa ficar atento para não se colocar numa posição delicada e virar pêndulo nessa tensão. Outro ponto de alerta é que a China tem intensificado sua presença na América do Sul e ocupado um espaço importante em uma zona de influência que tradicionalmente foi do Brasil. Essa equação política também precisa estar no radar diplomático de modo que o pragmatismo impere, sendo bem equacionados os custos e benefícios de cada movimento diplomático internacional", atesta a especialista.