DIPLOMACIA

"Tem a digital dos EUA", diz Nasser sobre mudança de posição do Brasil na guerra entre Ucrânia e Rússia

Brasil destoou do bloco dos Brics, que optou pela neutralidade, e votou a favor da resolução que pede a retirada das tropas russas do território ucraniano de forma incondicional. Posição foi entendida como aceno ao "ocidente".

Lula, Janja e o chanceler Mauro Vieira no Itamaraty.Créditos: Bernardo Spinelli/MRE
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A mudança de posição da diplomacia brasileira que votou, juntamente com 140 países, a favor da resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que pede retirada de tropas da Rússia da Ucrânia de forma incondicional causou polêmica e vem sendo alvo de críticas, de que seria um ponto fora da curva diante da posição do presidente Lula, que propõe a constituição de um grupo de países neutros para negociar um acordo de paz na guerra, que completou um ano nesta sexta-feira (24).

A mudança de posição da diplomacia se deu no mesmo dia em que o vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Mikhail Galuzin, elogiou a posição de Lula para mediar o conflito, ressaltando "a posição de equilíbrio do Brasil na atual situação internacional, sua rejeição a medidas coercitivas unilaterais tomadas pelos EUA e seus satélites contra nosso país e a recusa de nossos parceiros brasileiros em fornecer armas, equipamentos militares e munição para o regime de Kiev".

Ao mesmo tempo, a chancelaria russa alertou sobre a pressão que o Brasil tem sofrido de Washington - especialmente após o encontro de Lula com Joe Biden na Casa Branca - e destacou que a "postura soberana" do Brasil "merece respeito".

Esse é, segundo Reginaldo Nasser, professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, o principal ponto que merece atenção nessa mudança de postura da diplomacia brasileira na ONU.

"Sem dúvida nenhum que isso tem a digital dos EUA, que sempre pensa numa Pax Imperial", afirmou Nasser em entrevista à Fórum - veja ao final da reportagem.

Segundo ele, a polêmica se dá em torno de um ponto da resolução que diz que a Rússia deve se retirar do território ucraniano de forma "incondicional", ou seja, sem nenhum tipo de acordo.

"Como ter acordo se o pressuposto é não ouvir as demandas da Rússia?", diz Nasser, que levanta especulações sobre o "preço a pagar" ao "apoio de Biden à legitimidade da vitória de Lula".

"Mas, queria chamar a atenção também para especular quais os objetivos que estão por traz dessa resolução. É difícil imaginar uma vitória total sobre a Rússia ao estilo da Segunda Guerra Mundial como foi com a Alemanha e Japão. A maioria das guerras termina em negociações ainda mais envolvendo diretamente grandes potencias com capacidade nuclear. Portanto, essa resolução, embora não tenham nenhum poder de eficácia, serve apenas para acirrar os ânimos. Os EUA e os seus vassalos europeus precisam entender que o mundo vai muito além da Europa", afirma.

"Saiu do muro"

A análise de Nasser é compartilhada por outros especialistas em relações internacionais. Elias Khalil Jabbour, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ e pesquisador do modelo chinês do "socialismo de mercado", afirma que ao "sair do muro", o Brasil se distancia dos próprios parceiros dos Brics.

China, Índia, e África do Sul - integrantes do Brics com o Brasil -, além do Irã, se abstiveram de votar a resolução, permanecendo em uma posição de neutralidade.

"A Federação Russa foi amplamente derrotada em votação ocorrida no âmbito da ONU. O Brasil, ao contrário dos outros membros dos BRICS, 'saiu do muro' e compôs essa maioria. Os problemas são múltiplos deste tipo de voto. O primeiro deles é o alinhamento com o chamado 'Ocidente'. O problema é que o Brasil só interessa ao 'ocidente' para este tipo de serviço. Do ponto de vista nacional/pragmático o que este voto agrega? Qual o preço deste voto? O Brasil terá alguma fatia do bolo que Biden está preparando em matéria de política industrial? Não. A Alemanha vai instalar indústrias de ponta no Brasil para fugir dos seus próprios custos de produção? Não. Logo, se não estava em jogo nenhum grande interesse estratégico de nosso país esse voto pode ser paradigmático sobre o futuro de nossas relações exteriores", afirmou Jabbour em sequência de tuites.

Após se abster de votar a resolução, a China destacou novamente sua posição tanto de preservar efetivamente a "soberania, independência e integridade territorial de todos os países", condenando a invasão do território ucraniano pelos russos, quanto a de "abandonar a mentalidade da guerra fria".

"A segurança de uma região não deve ser alcançada pelo fortalecimento ou expansão de blocos militares", disse a diplomacia chinesa em comunicado, criticando a tentativa dos EUA, via Organização do Tratado Atlântico Norte, a Otan, de expandir sua fronteira militar, via Ucrânia, à fronteira com a Rússia.

Para Ana Prestes, analista internacional e colunista da Fórum, a resolução da ONU sobre Ucrânia terá pouca ou quase nenhuma efetividade na dissuasão da guerra e na promoção da paz. "Ela serviu mesmo para EUA e UE contarem garrafinhas no velho estilo: 'estão conosco ou estão contra nós'".

Ana criticou a posição do Brasil ao "votar nessa resolução-armadilha puxada por EUA e UE", que pode prejudicar o projeto de Lula de se colocar como mediador do conflito.

"Com uma abstenção, o Brasil se colocaria ao lado dos países dos Brics, como China, Índia e África do Sul. E ainda ficaria melhor posicionado para uma mediação das negociações", escreveu também no Twitter.

Para Javier Vadell, professor de Relações Internacional na Puc-Minas, os ganhos do Brasil ao votar a favor da resolução são negativos e "tem direta relação com pressões dos EUA".

Leia a entrevista de Reginaldo Nasser à Fórum na íntegra:

FÓRUM: Como vê a mudança de posição da diplomacia brasileira ao votar a favor da resolução da ONU sobre a guerra da Ucrânia que exige a imediata retirada das tropas russas e afirma que não reconhecerá as anexações territoriais feitas durante o conflito?

REGINALDO NASSER: Presidente Lula estava assumindo, claramente, uma posição neutralista ou, se quiser, de não alinhamento (termo usado durante a guerra fria para se referir aos países que não se alinhavam a nenhum dos blocos: capitalista ou comunista). Se manifestou sempre contra a invasão da Ucrânia pela tropas russas, mas advertiu que não apoiava a forma pela qual a OTAN estava se portando, enviando armas à Ucrânia. Aliás, Lula disse isso ao presidente Biden no encontro em Washington. Lula se recusou a fornecer insumos militares à Alemanha com o argumento que estaria se posicionando de um lado do conflito. O ministro das Relações Exteriores querendo mostrar que o Brasil está sendo coerente, mesmo votando a favor dessa resolução, está dizendo que o  Brasil foi responsável por incluir a proposta do 'fim das hostilidades', mas se verificar onde essa proposta está inserida torna-se obsoleta. Vejamos o que diz: '(ONU) Reitera sua exigência de que a Federação da Rússia retire de imediato, por completo e incondicionalmente, todas suas forças militares do território da Ucrânia dentro de suas fronteiras reconhecidas internacionalmente, e pede que cessem as hostilidades'. Chamo a atenção para a parte 'unconditionally'. Como ter acordo se o pressuposto é não ouvir as demandas da Rússia? Sem dúvida nenhum que isso tem a digital dos EUA, que sempre pensa numa Pax Imperial.

FÓRUM: Essa mudança de postura do Brasil pode comprometer a tentativa de Lula de se colocar como mediador do conflito depois que a própria Rússia chegou a elogiar a proposta do presidente brasileiro?

REGINALDO NASSER: Pois é. Um dia antes a Rússia elogiou a posição brasileira. Vamos ver o que vão dizer agora. De toda forma, parece que Lula ter um encontro com [o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey] Lavrov e uma conversa com Putin, ainda tem jogo pela frente e Lula é muito habilidoso nessas questões.

FÓRUM: De que forma essa mudança da diplomacia brasileira vai impactar as relações internacionais do governo Lula? Abre ou fecha mais portas?

REGINALDO NASSER: Creio que se trata de um “ponto fora da curva” nos caminhos que Lula estava traçando, mas é possível realinhar novamente. O episódio é importante, mas não podemos exagerar e querer retirar consequências de mudanças drástica. Podemos especular que o apoio de Biden à legitimidade da vitória de Lula tem seu preço a pagar. De toda forma, a votação do Brasil destoando dos demais países que compõem o Brics chama a atenção, Lula deverá exercitar suas habilidades diplomáticas como nunca.