2023 está terminando e o Oriente Médio segue sendo um cenário de mudanças constantes e de extrema importância para o cenário global.
Conversamos com professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e especialista em Oriente Médio Renatho Costa para entender um pouco mais dos movimentos que marcaram 2023 na região.
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Desde 7 de outubro, o conflito aberto pelo Hamas que desembocou em um genocídio escancarado contra os palestinos de Gaza dominou as notícias. Renatho comentou, claro, sobre o tema, mas também falou de outros temas que concernem as relações na região e as perspectivas para o ano que vem. Confira a entrevista:
Revista Fórum: É difícil falar das perspectivas do Oriente Médio atualmente sem falar de Gaza. Mas o que poderíamos falar do Oriente Médio no período que antecedeu o 7 de outubro? Quais foram as grandes mudanças de perspectiva na região?
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Renatho Costa:. A gente pode entender um pouco, tentar aventar alguns cenários para as questões que lá ocorrem, que algumas vêm perdurando por muitos anos. Mas, como você pergunta antes de Gaza, eu acho que o principal evento que nos chamou muita atenção foi em abril, quando, através da mediação do governo chinês, o Irã e a Arábia Saudita reestabeleceram as relações diplomáticas.
Isso foi de fundamental importância porque mudou substancialmente as características geopolíticas da região. Até então, todas as análises que a gente fazia apontavam para esse enfrentamento entre os dois estados, com o que a gente chamava de arco xiíta, que era uma linha de aliados que iria do Hezbollah, no Líbano, passando pela Síria, depois pelo Iraque, através do Irã, e chegaria até o Iêmen.
Esse era o grande risco, pelo menos para a Arábia Saudita. A perspectiva saudita era de que ela poderia vir a ser engolida, que perderia o espaço dentro do Oriente Médio nessa luta pela construção de um domínio da região.
A Arábia Saudita e o Irã já vinham tentando anteriormente reestabelecer as relações. Eles tinham feito, tinham mantido contatos até em 2021, que foi por iniciativa do governo do Omã, mas [o processo] não avançou.
Depois, surgiu aquele problema com a Mahsa Amini, aquela moça que morreu após uma ação violenta da Polícia de Costumes do Irã, e a Arábia Saudita fez fortes críticas. Mas isso são questões acessórias. O mais importante seria como se desdobrará essa relação entre Irã e Arábia Saudita, porque, mais do que reestabelecer as relações diplomáticas, eles também devem ampliar as relações comerciais, e isso mudaria bastante a geopolítica local.
RF: Pensando no 7 de outubro pra cá: de que maneira Gaza alterou essas perspectivas? Que tensões e aproximações ocorreram na região a partir desse conflito?
RC: Houve substancialmente uma mudança. Diversos estados estavam normalizando as relações com o governo israelense, como veio acontecendo durante o período Trump, em estados como Emirados, Bahrein e também Marrocos.
Essa normalização de relações com o Estado de Israel, em certa medida, enfraquece a causa palestina, porque uma das bases da causa era, de fato, a negação não da existência do Estado de Israel, mas da legitimidade deles ocuparem as terras palestinas.
Quando eles normalizam essas relações, isso gera um certo enfraquecimento para a causa palestina. Quando acontecem os ataques inicialmente do Hamas e depois toda essa brutalidade que está levando ao genocídio da população palestina, isso gerou um problema.
Porque a Arábia Saudita [que negociava a normalização] também é um estado que apoia a causa palestina, é um dos grandes apoiadores. Aqueles estados que normalizaram relações com Israel, é evidente que eles não vão retornar, não vão romper. Existem acordos comerciais, acordos relacionados à segurança, etc.. No entanto, é muito difícil hoje esses países e outros países virem a buscar a normalização com as relações com o Estado de Israel, porque é inegável o genocídio que está acontecendo na região.
A própria Arábia Saudita fez um afastamento, a Turquia, por sua vez, também fez severas críticas contra o governo israelense, e a própria comunidade árabe na região condena o genocídio que está acontecendo.
Isso foi um certo retrocesso nas relações que o Estado de Israel vinha tentando construir com os países árabes. Isso não quer dizer que os estados que já tinham normalizado as relações, vão romper. Mas conforme esse conflito e o genocídio vai se agravando, é muito difícil outro estado árabe buscar a normalização de relações. Ou seja, a tensão na região pode aumentar.
RF: Pensando na disputa pela primazia econômica entre EUA e China, de que maneira o Oriente Médio e seus principais atores tem se posicionado ou pendulado em 2023?
RC: A China há muito tempo já exerce uma influência substancial, principalmente no que tange a questão econômica.
Eu mencionei que a China foi a mediadora entre o acordo China-Arábia Saudita e Irã. Ela tinha interesses substanciais, principalmente por ser a principal importadora de petróleo da Arábia Saudita, e também por ser uma importadora de petróleo do Irã, porque o Irã passa por diversos embargos. A China é uma grande apoiadora tanto da Síria, quanto também do Irã e de outros estados pela região.
É fato que os Estados Unidos ainda mantêm uma influência muito grande. Eu tinha mencionado a questão da normalização das relações com Israel, por exemplo. Ela vem junto com apoio financeiro, com acordos econômicos, acordos de segurança, então ele não abre mão de sua influência na região.
Não é porque a China intermediou esse acordo entre Irã e Arábia Saudita que a Arábia Saudita deixou de ser uma apoiadora dos Estados Unidos. Existem bases estadunidenses na Arábia Saudita. Portanto, a China acaba sendo um aliado primordial para uma questão econômica, então para eles é interessante manter essa relação, ainda que a China, no que tange ao Oriente Médio, ela ainda não busca uma influência política, pelo menos não diretamente.
É claro que é possível pensar de alguma forma como que essa relação econômica com o Irã coaduna, pelo menos em parte, com a postura política do país, que busca ampliar a sua zona de influência no Oriente Médio.
A China consegue, com a ampliação das suas redes econômicas, das suas relações econômicas com o Oriente Médio, com vários países, com a Síria, com o Líbano, e o Irã mesmo que eu mencionei. Ela consegue ampliar a influência dela, mas não ainda no que tange à questão política.
Os Estados Unidos ainda exercem uma certa influência dentro do Iraque, apesar do Irã hoje ter uma influência forte no Iraque, os Estados Unidos ainda tem uma questão econômica muito forte. A Arábia Saudita eu já mencionei. Os outros países que mantêm relações com os dois, tanto o Catar, que é um país pequeno, mas é um grande produtor de hidrocarbonetos, ele mantém relação com os dois atores, tanto com o Irã, com a China e com os Estados Unidos.
Existem alguns que mantêm essa relação pendular, ou dupla ao mesmo tempo, seja como a gente for entender. Mas é notório o crescimento da influência chinesa na região. Quando isso vai se reverter, ou se vai se reverter de uma forma tradicional de influência política, ainda é muito cedo dizer. Não é a forma com que a China está atuando tradicionalmente, até porque não existe o interesse de um enfrentamento direto com os Estados Unidos. Então o que é notório é que a China vai ganhando espaço e buscando apoios e investimentos cada vez maiores na região.
RF: Pensando na questão climática, em especial nos países do Golfo, ainda há uma dependência muito grande do petróleo e uma imposição forte dos hidrocarbonetos na economia regional? 2023 foi um ano de mudança ou de manutenção do status quo?
RC: A gente tem visto uma mudança substancial. O Catar publicou em 2008 a Visão Nacional do Catar 2030, um documento que apresenta as metas do país para desenvolver e modernizar a sua economia e assim como para melhorar sua participação no âmbito internacional. O que é isso efetivamente? É a utilização dos seus recursos, dos hidrocarbonetos, de maneira a diversificar sua economia.
A gente viu, no caso do Catar, já no ano anterior, a Copa do Mundo, que era resultado de uma tentativa de mudança. Tem um pouco a ver com o sport washing, que é uma tentativa de mudar a imagem com que o Catar é visto internacionalmente. Mas também há uma tentativa de diversificar, de mudar, transformar o país em uma potência em outras áreas. E todos esses recursos que eles vêm utilizando estão repercutindo positivamente.
A Arábia Saudita também é um outro ator que tem se preocupado muito com isso. Eu entendo que, se a gente for analisar as questões relacionadas ao meio ambiente, acredito que esse ano houve, de fato, uma mudança substancial. Claro que ainda muitos desses países, e a economia deles, eminentemente depende dos hidrocarbonetos. Então eles não vão abrir mão disso, não podem. A própria produção da Arábia Saudita é uma das maiores do mundo. Então eles não têm condições de abrir mão dos hidrocarbonetos.
No entanto, os programas que têm sido desenvolvidos por esses países já demonstram que há uma perspectiva de mudança. Como eu disse, até 2030 já vai haver uma mudança substancial com relação até à utilização de energia limpa e assim por diante. Esses países do Golfo têm buscado essa mudança na perspectiva. Eu acho que houve um avanço substancial nesse momento.
RF: Quais são as perspectivas para 2024? O Oriente Médio pode caminhar para a paz?
RC: A questão que está vinculada aos conflitos no Oriente Médio, eles têm como raiz a própria intervenção e a interferência ocidental. O petróleo é um que a gente estava mencionando na questão anterior e acaba sendo um dos principais interesses dessas potências ocidentais.
Elas não vão deixar de ter esse interesse, pelo menos na próxima década ou até a seguinte. Então, os conflitos que a gente tem ali certamente vão perdurar. A gente teve uma mudança no que tange ao conflito no Iêmen, mas isso estava muito mais relacionado até o acordo que ocorreu entre a Arábia Saudita e Irã.
A questão de Gaza é a que mais nos preocupa, porque nós estamos vendo um genocídio. A gente não tem noção ainda da sua repercussão. Se de fato houver o extermínio que os israelenses procuram, se houver o extermínio da população palestina de Gaza e ali se transformar em mais assentamentos israelenses... Tudo vai depender de como os outros estados vão perceber essa questão.
Não é fácil, não é assimilável com facilidade uma população ser dizimada, dois milhões de pessoas serem dizimadas, e daí isso ser tratado como algo natural. Muito provavelmente vai ser difícil para os povos árabes e para os muçulmanos assimilarem essa questão com facilidade.
Isso pode vir através de uma cobrança mais dura das Nações Unidas. Porque é inaceitável que aconteça um genocídio aos olhos do mundo, transmitido por todas as redes, e a ONU não possa fazer absolutamente nada. E se o Estado de Israel tem esse salvo conduto para fazer um genocídio, então qual é a finalidade da ONU?
Se for concretizado esse genocídio e houver a dizimação da população palestina dali, ou mesmo que ela seja expulsa para alguma outra região, isso vai ter algumas implicações, talvez até numa reversão da normalização de relações que foram feitas com o Estado de Israel por alguns países árabes.
É muito difícil a gente imaginar que, depois de um genocídio, você possa ter a pacificação de uma região. Muito pelo contrário. O Estado de Israel, se até hoje ele tinha alguns aliados e tinha alguns apoiadores no mundo árabe, vai ser praticamente insustentável mantê-los.
Está sendo uma situação difícil, por mais pragmáticos que alguns estados sejam. Dependendo do grau, eu acho que já estamos num grau elevadíssimo e inaceitável, mas isso vai ter um fim. E qual será o fim que eu acho que vai implicar diretamente nos desígnios da região?
Vamos ver se o Estado de Israel vai ficar ainda mais isolado. Isso depende também do posicionamento dos países ocidentais. Os Estados Unidos agora vão passar por eleições. Ainda não se sabe se o presidente Trump poderá concorrer efetivamente à eleição, mas isso é um risco.
É muito difícil ainda falar em paz, porque esse conflito gerou, ao mesmo tempo, um tensionamento sobre o que vai acontecer com a população na Cisjordânia, em Gaza, mas isso tem repercussão fora. Os países árabes não podem se omitir diante de uma questão como essa. Então, paz dificilmente a gente vai ter. Você pode tentar pacificar, mas a partir da violência. Só que aí o risco é que, a qualquer momento, a preservação desse status vai ser violada, vai ser rompida, porque manter uma paz através das armas é uma situação muito instável. Então, não vejo muita perspectiva de paz por enquanto.
RF: Por fim, se você pudesse citar um evento para ficarmos de olho em 2024 e uma dica cultural.
RC: Talvez seja repetitivo, mas é muito difícil nós deixarmos de prestar atenção na questão de Gaza. Gaza eu acho que vai ser a chave para o Oriente Médio nesse 2024. Dependendo de como esse conflito for concluído, qual vai ser a dimensão do genocídio que vai ser imposto ali, se Israel vai ocupar todo o território, se ele vai deixar uma pequena parcela, um espaço mínimo para viver um milhão de pessoas ou mais, em que condições que essas pessoas viverão...
Tudo isso vai ter repercussão nesse momento. A gente precisa entender até onde a barbárie vai ser levada pelo Estado de Israel e qual é o nível de aceitação que o sistema internacional vai ter sobre isso.
Porque, certamente, a forma com que ele está tolerando a gente ver esse genocídio e nada fazer, isso vai ter repercussão futura. Não necessariamente só no Oriente Médio, mas é uma desumanização de uma população.
Os árabes e os muçulmanos estão sendo desumanizados, eles se transformaram em algo que pode ser assassinado, pode ser jogado em covas rasas, e tudo isso é tolerado.
Isso tem um peso muito grande e um custo para uma estrutura de um sistema internacional que busca se pautar dentro dos princípios do direito internacional e coisas assim. Não quero dizer que sejamos ingênuos e acharmos que a ONU pode fazer e pode resolver.
Só que, a partir do momento em que os estados tentam pautar as suas relações através de um mínimo, que é a valorização da vida, o respeito à soberania e tudo isso, e, de repente, um Estado como o Estado de Israel opta por cometer um genocídio de uma forma aberta, todos vendo e nada é feito, eu acho que isso coloca em xeque muito do que se pensa e de como essa sociedade, essa comunidade internacional vai se desenvolver nas próximas décadas. Então, eu acho que não tem como não ficarmos de olho nessa situação dos palestinos de Gaza e dos palestinos da Cisjordânia, porque esse caso já está sendo espraiado para a Cisjordânia há muito tempo.
As pessoas continuam sendo presas, sendo assassinadas, casas sendo destruídas, mais assentamentos sendo criados, e isso é naturalizado. Muitas das questões que vinham sendo normalizadas no sentido de que as pessoas naturalizaram o conflito como algo que estava ali e nem precisava ser visto.
Isso era interessante para o Estado de Israel, porque ele atuava ampliando o seu território, ampliando os seus assentamentos e tal. Só que, com a ação em outubro, isso mudou substancialmente.
A gente tem que ver o fim disso para depois entender como o sistema internacional vai se reconstituir. Eu acho que se ele se reconstituir e não houver nenhum tipo de penalização ao Estado de Israel depois de um genocídio como esse, muito provavelmente vai ser a sua falência. Vai ser a aceitação de que, realmente, quem tem o apoio das grandes potências pode fazer o que quiser.
E uma dica cultural. Eu vou cometer até uma indelicadeza, vou fazer uma sugestão de um livro, que é um livro que eu, o Rodrigo Duque Strada Campos e o Lucas Bonato escrevemos em 2020, e depois foi publicado na Inglaterra e, em 2021, foi publicado aqui no Brasil pela editora Memo, que chama-se Sem Caminhos para Gaza.
Ele conta a nossa tentativa, nós três íamos fazer um documentário em Gaza, só que o Estado de Israel proibiu, e depois nós tivemos que fazer essa viagem pelo deserto do Sinai.
Nós mostramos como a polícia corrupta, o exército corrupto, o Estado egípcio corrupto, de uma forma geral, foi nos impedindo. Mesmo o governo nos impediu de todas as formas, com violência. Foram momentos muito difíceis.
E aí, quando nós chegamos na porta de Rafah, que é onde hoje todos estão mostrando o que está acontecendo, quando nós chegamos ali, a Universidade Islâmica de Gaza, que foi também bombardeada, estava nos esperando lá em Gaza, o governo egípcio nos proibiu de entrar ali.
Mas a gente conta todos os bastidores disso e a trajetória, como as pessoas, como os palestinos vivem a violência, a brutalidade que eles sofrem para entrar ali em Gaza. Isso de um governo árabe. Então, se eu puder sugerir, eu sugeriria esse livro, Sem Caminhos para Gaza.
O nome completo é "Sem Caminhos para Gaza: Uma crônica de aventura e fraude sob o bloqueio egípcio". Espero que o pessoal goste também. E ele tem uma narrativa muito numa pegada jornalística. Acho que ele vai contribuir muito para as pessoas entenderem um pouquinho melhor a causa palestina.