SÉCULO 21

Por que governos árabes abandonaram o Hamas

Muita retórica, quase nenhuma ação

Geopolítica.O Golfo Pérsico é o novo centro do mundoCréditos: Reprodução
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Governos árabes e islâmicos se reuniram conjuntamente na Arábia Saudita para definir uma resposta ao bombardeio de Israel contra a faixa de Gaza que, na contagem deste domingo, 12, causou até agora mais de 11.100 mortos, a maioria mulheres e crianças.

A nota final foi um traque, diante do que pretendia a representação da Palestina: pedido de embargo na venda de armas a Israel e que o Tribunal Penal Internacional analise se Israel cometeu crimes de guerra.

O embargo é como uma miragem no deserto: empresas dos Estados Unidos e do Reino Unido faturam bilhões de dólares fornecendo armas não só para Israel, mas para os próprios países árabes, especialmente a Arábia Saudita.

Dependendo do desempenho na ocupação de Gaza, não é improvável que o tanque israelense Merkava, renomeado, seja colocado no mercado internacional.

O território palestino também está sendo um campo de provas sem precedentes para as bombas de penetração fabricadas nos Estados Unidos, voltadas para destruir bunkers e túneis.

Os caças, mísseis e munição utilizados por Israel, fabricados nos Estados Unidos, alimentam uma indústria que emprega direta e indiretamente 4 milhões de pessoas.

Os fabricantes são a Lockheed Martin, a Raytheon, a Boeing, a Northrop Grumman, a General Dynamics e a britânica BAE Systems.

Estas empresas e seus fornecedores tem presença em praticamente todos os 435 distritos eleitorais que elegem representantes para a Câmara Federal dos Estados Unidos.

No ano passado, as empresas dos EUA venderam mais de 100 bi de dólares em armas ao Exterior. Israel compra de 70 a 90% das suas armas de Washington. Reino Unido e Itália são outros fornecedores importantes. 

TRIBUNAL PENAL

Em março deste ano, o Tribunal Penal Internacional aprovou mandado de prisão contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin, acusado de deportação e transferência ilegal de população da Ucrânia para a Rússia.

A Rússia não reconhece o TPI.

O mandado foi expedido pouco mais de um ano depois da Rússia invadir a Ucrânia.

Um promotor do TPI já está debruçado sobre supostos crimes de guerra cometidos pelo Hamas e por Israel no atual conflito.

Porém, com a cobertura dos Estados Unidos, Israel tem um histórico de desconhecer decisões internacionais tomadas pelas Nações Unidas, sendo a violação mais grave a expansão de assentamentos sobre a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, território palestino sob ocupação militar.

Em outras palavras, recorrer ao TPI não fará Israel recuar um milímetro sequer em seus planos de ocupação de Gaza.

O PAPEL DO GOLFO

Em 2020, sob patrocínio do governo Trump, os assim chamados Acordos de Abraham normalizaram relações de Israel com o Marrocos, o Sudão, os Emirados Árabes Unidos e Bahrein. O candidato seguinte seria a Arábia Saudita.

Os acordos fazem parte de uma estrutura econômica mais ampla patrocinada por Washington, o chamado Corredor Índia-Oriente Médio-Europa.

É um projeto de integração que daria papel central aos países do Golfo Pérsico aliados dos Estados Unidos, dentre os quais se destacam a Arábia Saudita, Omã, Emirados Árabes e Bahrein.

Montados em bilhões de dólares de reservas, estes países buscam oportunidades seguras para fazer investimento, já antevendo o fim da era do petróleo.

Israel já está exportando as tecnologias de controle de população que desenvolveu em Gaza e na Cisjordânia para várias monarquias árabes. 

A "ocupação silenciosa" de território palestino, afinal, se baseia em reconhecimento facial, drones e outras tecnologias de ponta que governos árabes empregam contra suas próprias populações, especialmente depois do susto da "Primavera Árabe".

Considerando que o crescimento econômico do planeta está se deslocando para a Ásia, muitos destes países colocam o pé em duas canoas.

A Arábia Saudita, por exemplo, aderiu aos BRICs junto com o Irã, com o qual reatou relações diplomáticas recentemente.

A cúpula de Riad, aliás, marcou a primeira visita de um presidente do Irã à Arábia Saudita em onze anos.

Teerã entrou recentemente para a Organização para a Cooperação de Xangai e tem negociações secretas em andamento para aliviar o embargo econômico que sofre dos Estados Unidos.

É neste contexto que se explicam ações aparentemente inexplicáveis no conflito de Israel com o Hamas.

Jordânia e Arábia Saudita interceptaram mísseis lançados pelos hutis, do Iêmen, contra Israel, nos últimos dias.

Arábia Saudita e parceiros abateram as propostas da Palestina feitas no encontro de países árabes e muçulmanos, uma das quais previa proibir o tráfego aéreo de aviões civis de Israel sobre território árabe.

Mesmo as escaramuças até agora limitadas do Hezbollah -- fortemente influenciado pelo Irã -- contra Israel refletem esta nova realidade do mundo multipolar.

Teerã, depois de agir como "poder moderador" no Iraque, tem ambições regionais de integração econômica com a Rússia, a China e seus vizinhos, inclusive o Afeganistão -- um delegação do Talibã visitou Teerã recentemente.

A Organização para a Cooperação de Xangai, além de China e Rússia, junta Índia e Paquistão no mesmo balaio, além do Irã e de cinco ex-repúblicas soviéticas.

Incorre em erro quem pensa que o Hezbollah é hoje uma força de ataque. Trata-se, na verdade, de força de último recurso defensivo do Irã contra eventual ataque nuclear de Israel.

Por isso, a causa palestina foi colocada em segundo plano e tornou-se até mesmo um "incômodo" para algumas elites governantes árabes, especialmente do Golfo Pérsico, interessadas nos bons negócios que podem advir do fato de que a região se tornou hub de integração de negócios florescentes entre o Ocidente e o Oriente.

O Hamas, por isso, será sacrificado no altar da realpolitik.

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