Uma viagem de algumas horas pela mídia árabe e muçulmana do planeta revela pontos-de-vista sobre o conflito entre Israel e o Hamas que não são expressos na mídia comercial brasileira -- ou, quando são, aparecem de forma absolutamente minoritária.
500 milhões de pessoas no planeta são árabes. 1,8 bilhão professam o islamismo.
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O desconhecimento do que pensam leva a cálculos desastrados, como a de autoridades dos Estados Unidos que imaginaram que tropas norte-americanas seriam recebidas com flores ao invadir o Iraque, em 2003, sob o falso pretexto de que o regime de Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa:
"Acho que as coisas ficaram tão ruins dentro do Iraque, do ponto de vista do povo iraquiano, que acredito que seremos, de fato, recebidos como libertadores", disse famosamente o vice-presidente dos EUA Dick Cheney em entrevista à rede NBC em 16 de março de 2003.
A ocupação do Iraque completou 20 anos em 2023. Os Estados Unidos se retiraram oficialmente do país em 2011, deixando para trás um regime fortemente influenciado pelo Irã.
O balanço feito por um instituto da universidade de Brown, nos Estados Unidos, não deixa dúvidas:
Entre as consequências [da ocupação do Iraque] houve o aumento da política sectária, violência generalizada e a ascensão do grupo militante Estado Islâmico. [...] Estima-se que 315 mil pessoas tenham morrido devido à violência direta da guerra no Iraque, enquanto os efeitos continuam a matar e adoecer centenas de milhares de pessoas.
Uma semana depois do ataque do Hamas a civis israelenses, a mídia árabe e muçulmana está focada essencialmente no sofrimento dos civis moradores de Gaza.
A Indonesia é o maior país muçulmano do mundo, com mais de 230 milhões de habitantes. O país mantém relações diplomáticas com Israel e não está entre os mais ativos na defesa da causa palestina.
Mesmo assim, a foto de capa do Jakarta Post mostra um homem caminhando a pé com uma criança de colo, atendendo ao ultimato de Israel pela retirada do norte de Gaza. A ênfase da cobertura é na abertura de um corredor humanitário.
O jornal traz as declarações do ministro das relações exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdollahian: "Irã pede aos Estados Unidos que controlem Israel para evitar uma guerra regional".
Publicações em inglês no mundo árabe e muçulmano, como o Jakarta Post, costumam ser voltadas para as elites regionais.
O The National, dos Emirados Árabes Unidos, que reatou relações diplomáticas com Israel, conta em manchete a história de Alma, uma criança de Gaza que ficou ferida e perdeu um sobrinho durante o bombardeio israelense.
No Irã, financiador do Hezbollah e apoiador do Hamas, o Tehran Times reflete a linha política de um governo que integra o chamado "arco de resistência" a Israel.
A manchete principal deste sábado fala em "Corações partidos e punhos fechados: Somos todos palestinos". As imagens são de grandes manifestações pró-Palestina que aconteceram em várias partes do mundo.
O Irã exerce liderança incontestável entre os 360 milhões de xiitas do planeta.
O jornal registra as intensas conversações entre o chanceler do Irã e seus colegas. Numa visita a Beirute, ele afirmou em entrevista coletiva:
Se os crimes de guerra do regime sionista não forem impedidos, qualquer possibilidade é concebível. Anunciamos a nossa disponibilidade para uma reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros da Organização de Cooperação Islâmica há três dias. Tivemos uma coordenação inicial com o Secretário-Geral desta organização. Acreditamos que os crimes de guerra contra o povo da Palestina devem ser interrompidos imediatamente e que o cerco humanitário, que corta a água, a electricidade e os medicamentos ao povo de Gaza, deve ser levantado.
O envolvimento do Hezbollah em uma guerra regional contra Israel é possível, mas improvável.
O Irã acaba de fechar um acordo com os Estados Unidos pelo qual libertará norte-americanos presos em troca do acesso a U$ 6 bilhões que estão congelados em um banco do Catar. O dinheiro, ainda não liberado, só poderá ser usado em causas humanitárias.
Nos Estados Unidos, o governo de Joe Biden está sob fogo da extrema-direita pelo acordo. Fake news contra o democrata dizem que foi com o dinheiro do acordo que o Irã financiou o ataque do Hamas a Israel.
De longe, a manchete mais importante é a do Arab News, da Arábia Saudita, que até recentemente esteve envolvida em negociações para normalizar relações diplomáticas com Israel, agora congeladas.
"Segunda Nakba", diz a manchete principal, refletindo uma opinião corrente no mundo árabe: Israel está se aproveitando da ocasião para esvaziar Gaza, numa ação de limpeza étnica que tem apoio dos Estados Unidos e do Ocidente.
Quando Israel foi criada pelas Nações Unidas, em 1948, avançou sobre terras árabes, no que ficou conhecida como Catástrofe [Nakba], que causou o deslocamento de milhões de palestinos para outros países.
Pela primeira vez desde a restauração de relações diplomáticas, num acordo patrocinado pela China, o presidente do Irã, Ebrahim Raisi, e o príncipe saudita Mohammed bin Salman conversaram por telefone.
Uma agência saudita resumiu a conversa: "A unidade islâmica foi reforçada e ambos acreditam que os crimes do regime de Israel e a luz verde dos Estados Unidos vão causar insegurança destrutiva para Israel e seus apoiadores".
De acordo com a agência, o líder saudita destacou "a necessidade de aderir aos princípios da lei humanitária internacional e expressou profunda preocupação com a situação em Gaza e seu impacto em civis".
A conversa entre ambos tem grande significado, uma vez que Irã e Arábia Saudita já estiveram em pé de guerra, com os sauditas acusando o Irã de influenciar minorias xiitas a se voltar contra governos sunitas.