ARGENTINA

O desafio do peronismo após a condenação de Cristina Kirchner

Em discurso após a sentença que a condenou a seis anos de prisão, Cristina Fernández de Kirchner afirmou: “não quero foros, não vou ser candidata a nada em 2023”

Cristina Kirchner.Cristina KirchnerCréditos: Divulgação
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Buenos Aires, Capital Federal, 6 de dezembro. Por volta das 15 horas, a sensação térmica era de 35 graus. Na porta dos tribunais da rua Comodoro Py 2002, militantes uniformizados esperavam o veredito do processo que, após três anos e meio, condenou Cristina Fernández de Kirchner a seis anos de prisão, por fraude ao Estado, e inabilitação perpétua para exercer cargos públicos. Cristina escutou a condenação em seu gabinete no Congresso. É a primeira vez na história argentina que uma vice-presidente é condenada. Logo após a sentença, a ex-mandatária fez um discurso de 56 minutos através de suas redes sociais e afirmou: “Não quero foros, não vou ser candidata a nada em 2023”. Com a renúncia a qualquer candidatura, Cristina, ao deixar claro que não é “mascote do poder”, abre mão da manutenção do foro privilegiado como vice ou da imunidade parlamentar, caso se candidatasse e ganhasse para senadora. Segundo o que se conhece de CFK, a renúncia certamente é uma estratégia política. Pois, ainda assim, sua posição de centralidade na política argentina permanecerá intocável, também mesmo condenada.  

Apesar da concentração nas imediações dos tribunais, que nesta terça-feira (6) estavam completamente cercados com grades, o kirchnerismo deu marcha atrás e freou as mobilizações de apoio a Cristina. Segundo o analista político, Pablo Ibáñez, no jornal “El diarioAR”, alguém muito próximo à vice teria dito, "não importa que o peronismo esteja mobilizado. O povo precisa reagir, o resto...". É certo que naquela mesma hora, quando se ditava a sentença, representantes dos movimentos piqueteiros interditaram a avenida 9 de Julio para exigir “melhoria salarial e trabalho digno”, disse alguns dos trabalhadores, quando passei pela avenida, que estava completamente lotada e era bastante difícil transitar por ali.

Outro fator que se discute é que a renúncia de Cristina Kirchner poderia abrir caminho a novas alianças e acordos na coalizão “Frente de Todos”, para as eleições do próximo ano. E, como se sabe, essas articulações políticas todas passariam pelo crivo da vice. É certo também que, possivelmente, Cristina continue ditando os rumos políticos do atual governo, como o fez ao indicar o ministro da Economia, Sergio Massa.

Sobre sua situação jurídica, apesar de condenada, Cristina Kirchner ainda tem foro privilegiado, ao menos até 10 de dezembro de 2023. Ao não se candidatar, pois é considerada uma forte candidata, as chances de ser presa aumentam. Mas ainda precisam se esgotar todas as possibilidades de apelação da defesa, o processo tem que chegar às instâncias superiores, à Corte Suprema. Esse desenrolar da causa pode durar anos. A vice-presidente foi absolvida da acusação de ser chefe de associação ilícita, assim como os outros 12 réus também não foram condenados por essa razão.

Em seu primeiro dia como condenada, Cristina lança uma cartada política e deixa o peronismo com o desafio de encontrar um candidato presidenciável com chances de ser eleito. Em seu discurso após a sentença, Cristina Kirchner se dirigiu diretamente ao dono do grupo Clarín, maior conglomerado de meios da Argentina, Héctor Magnetto, e o que ela acusa de ser um conluio entre juristas e a mídia. “Para mim, administração fraudulenta do Estado? E para esses, os amarelos (em referência à oposição que usa o amarelo na bandeira), que nos deixaram 45 bilhões de dólares de dívida com o Fundo Monetário Internacional, que andam de avião do Clarín? Bom, não vou ser candidata. Muito boa notícia para você, Magnetto".

Os juízes e o escândalo do “Telegram Página12”

Após a condenação, Cristina em seu discurso nas redes sociais mencionou o escândalo do vazamento de uma conversa no Telegram, entre juízes, um secretário da prefeitura de Buenos Aires, principal oposição ao governo, e altos executivos do grupo Clarín, que tramavam como ocultar uma viagem a “Lago Escondido”, na Patagônia. Julián Ercolini, que está entre os juízes do grupo no Telegram, é um dos que conduziu o processo contra Cristina.

"No avião, foram todos juntos para o Lago Escondido, quase como uma “junta” (utilizou um jogo de palavras, pois em espanhol “junta” é diretoria, conselho administrativo). A “junta” do Lago Escondido, assim como houve “juntas militares” num período muito sombrio em nosso país, agora também há “juntas” em nosso país que governam e decidem em todos os níveis", declarou a vice-presidente. O vazamento ficou conhecido como “Telegram Página12”, pois foi o jornal de mesmo nome que fez a denúncia.

"O Judiciário argentino atua em coordenação com os grandes meios de comunicação. É o sistema que me condena, que não vai tolerar ninguém que não faça o que eles dizem". Em outro momento, Cristina Kirchner, também em referência ao poder dos grupos de mídia, afirmou contundente: “Eu não sou uma mascote. Eu nunca serei uma mascote do poder”.

O presidente Alberto Fernández falou em cadeia nacional e pediu explicações sobre o referido episódio, bem como a abertura de investigação para averiguar quem financiou a suposta viagem, a quem pertencia o avião. O vazamento da conversa foi notícia no último fim de semana e os principais meios do país mantiveram silêncio de 36 horas sobre o caso.