FUTEBOL FEMININO

Copa do Mundo Feminina: por que os salários delas são menores que os dos jogadores

Dentro do futebol brasileiro, os salários das principais atletas do futebol feminino se equiparam aos da Série C do Brasileirão masculino; fora do Brasil, o quadro não é diferente

Seleção dos EUA campeã da Copa do Mundo de 2019 cobrou salários iguais durante comemoração.Créditos: appaIoosa/Flickr
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A isonomia salarial não é, nem de longe, uma marca das nossas sociedades tuteladas pelo neoliberalismo há pelo menos quatro décadas. Por uma mesma função e carga horária, que exigem a mesma qualificação, é comum a constatação de que homens ganham mais do que mulheres e brancos ganham mais do que negros, por exemplo. Essa triste e desigual realidade é registrada diariamente em todas as áreas, e no futebol profissional não é diferente. Com a aproximação da Copa do Mundo Feminina, que ocorre na Austrália e na Nova Zelândia entre julho e agosto, volta à baila o debate em torno das disparidades salariais entre boleiros e boleiras.

No último Mundial, disputado em 2019 na França e vencido pela seleção dos Estados Unidos, as jogadoras da equipe campeã fizeram protestos ao longo do torneio chamando atenção para a disparidade de salários entre elas e as estrelas do futebol masculino. À época, a revista Exame publicou uma pesquisa com 10 mil profissionais da bola no Brasil, a partir de dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) da Secretaria de Previdência e Trabalho do então Ministério da Economia. A discrepância é assustadora.

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De acordo com o levantamento, o salário médio das boleiras brasileiras girava em torno de R$ 2,5 mil, enquanto o dos boleiros estava na média de R$ 5,5 mil. Aqui, é importante pontuar que os supersalários de estrelas das principais equipes da Série A e que geralmente ganham as páginas dos jornais esportivos representam, em números absolutos, uma porção ínfima mesmo do futebol masculino. O Brasil tem 783 clubes de futebol profissionais cadastrados na CBF que se dividem em inúmeras divisões de 27 campeonatos estaduais – incluindo o Distrito Federal. Somadas, séries A, B e C nacional têm 60 clubes. Ou seja, há 723 clubes – no âmbito do futebol masculino – que dispõem de recursos muito mais limitados do que estamos acostumados a acompanhar. Por isso que a média de salários da modalidade não é astronômica.

Mas mesmo não sendo astronômica, a média salarial dos homens apresenta uma diferença de 118% para a das boleiras no Brasil e, na ocasião da publicação do levantamento, duas jogadoras comentaram os números. Thais Picarte, à época goleira do Santos e vice-presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais de Futebol do Município de São Paulo, indicou que os salários das melhores jogadoras do país, as que atuam por Santos, Corinthians, Ferroviária, São Paulo e outros clubes que se destacam na categoria, equivalem aos salários de clubes das séries B, C e D do Brasileirão masculino.

“Essa diferença salarial é um absurdo. Pior é que não sei a gente vai conseguir isso algum dia”, lamentou Cristiane, outra jogadora – e estrela da modalidade – que comentou os dados, à época jogando pelo São Paulo e hoje no Santos.

Com passagem pelo Paris Saint-Germain, mesmo clube em que Neymar atua pela equipe masculina, Cristiane revelou que na Europa as coisas não são diferentes. “Dificilmente você encontra uma atleta que ganhe 15 mil euros”, explicou.

Ainda que muitos dirigentes brasileiros recorram à consolidação do futebol masculino como negócio, em detrimento do esforço que ainda é empregado pela afirmação do futebol feminino, o que geraria mais interesse para os boleiros, há um dado interessante que, de alguma maneira, contradiz tal argumentação.

Nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, o futebol feminino é muito mais forte e vitorioso do que o masculino. As americanas já venceram quatro Copas do Mundo e ganharam outras quatro medalhas de ouro olímpicas, enquanto os varões ianques não faturam sequer medalhas de prata e bronze desde o início do século 20. Mesmo assim, em 2019 elas tinham um salário mínimo de 16,5 mil dólares, enquanto o deles era de 70 mil dólares. Além disso, as premiações também deixam a desejar. Eliminados da Copa de 2014 nas oitavas de final, os boleiros receberam um bicho de 5,4 milhões de dólares. No ano seguinte, elas foram campeãs mundiais pela terceira vez na Copa do Mundo Feminina do Canadá. O bônus das tricampeãs foi de 1,7 milhão de dólares. Ao vencerem o mundial seguinte, em 2019, na partida de futebol mais assistida até então na televisão dos EUA, as americanas começaram um forte movimento por igualdade salarial no esporte.

Explicações

Ainda em 2019 as federações se explicaram sobre as diferenças salariais. Para a USSF, a federação dos EUA, as discrepâncias “se baseiam nas diferenças de rendas geradas pelas diferentes equipes e/ou qualquer outro fator que não seja o gênero”. No entanto, conforme reportagem publicada pelo El País à época, o argumento não se expressa na realidade daquele país. Entre os anos anteriores, de 2016 a 2018, o futebol feminino ultrapassou a renda gerada pelo masculino: 51 milhões a 49 milhões de dólares.

No Brasil a desculpa é a mesma, ainda que por aqui, realmente, o futebol masculino tenha uma trajetória bastante consolidada em relação ao dos EUA. Questionado pela revista Placar, ainda em 2019, o então coordenador das seleções femininas da CBF, Marco Aurélio Cunha, avaliou que é uma diferença no próprio modelo de negócios o que explica a falta de isonomia salarial. “São unidades de negócios diferentes. Um é consolidado e lucrativo no país, e o outro está em formação e ainda precisa de investimentos. Eles podem ser iguais financeiramente?”, questionou.

É bem verdade que o futebol masculino brasileiro está mais consolidado que qualquer outra modalidade, masculina ou feminina. O sucesso dos campeonatos estaduais que começou um século atrás e firmou os principais clubes do país somado ao sucesso da própria seleção brasileira a partir da década de 1950 e à unificação do futebol nacional a partir dos anos 1970 são marcos para a popularidade do futebol masculino no Brasil. E tais marcos coincidem, no primeiro caso, com a popularização do rádio e, no segundo e terceiro, com a da televisão. De fato, esse acúmulo o coloca adiante em relação ao futebol feminino que hoje luta para se expandir como esporte e como negócio.

Recorte de jornal da época. Arquivo Museu do Futebol de São Paulo

Em todo caso, a diferença poderia ser menor se, por exemplo, uma lei de 14 de abril de 1941, promulgada por decreto pelo então ditador Getúlio Vargas, não tivesse proibido as mulheres de praticar “esportes que não são adequados à natureza feminina”. O futebol não estava citado nominalmente na lei, mas na sua aplicação prática era incluído. A lei só caiu em 1979.